quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A pedra com que David matou Golias

De manhã tenho uma energia que sou capaz de combinar encontros e marcar trabalhos que enchem a agenda de uma semana. O problema depois é cumprir tudo o que agendei, combinei e imaginei que era capaz de realizar.

Um amigo de longa data, empresário de antiguidades (não sei bem se o ofendo chamando-lhe comerciante porque ele faz negócios vendendo desde quadros dos pintores mais famosos aos objectos mais raros em ouro e prata), contou-me que há muitos anos vendeu a um milionário, dono de umas termas, a pedra com que David matou Golias. As outras histórias, que lhe ouvi ao longo dos anos, fazem crer que esta é mais uma das suas invenções para me fazer passar a mensagem de que ainda está em idade de me ensinar muitas coisas como quando o conheci e aprendi com ele lições preciosas para o meu novo trabalho da altura. No dia da nossa conversa andei de volta das edições online do Público e do El País,  leituras em atraso que me levaram três horas da noite da véspera de terça-feira que é geralmente o dia em que tenho mais trabalho e o tempo não chega para um mergulho na piscina que é a minha bênção do dia.

Vai daí, depois de ter lido cinco edições do Ípsilon, o melhor suplemento literário dos jornais portugueses, e duas edições do Babélia, embora ainda ficassem outras tantas para ler, senti uma vontade de tirar de cima de mim o seirão com os problemas normais de um jornalista operário que passou a noite em branco à procura do nome de um mago, santo ou bruxo, que me pudesse ajudar a combater o vício do trabalho. Não dormi e, para castigo, na terça-feira, o dia a seguir a esta noite em branco, tive um dos dias mais trabalhosos da minha vida. Estávamos em vésperas da organização das cerimónias do Galardão Empresa do Ano e da entrega dos prémios às nossas Personalidades e alguém tinha que escrever os textos e, desta vez, mais uma vez, calhou-me a mim. 

Escrevo ao correr da pena, antes de dormir na tal noite de segunda-feira que, por acaso, é a última deste ano que passo o dia e a noite a trabalhar. Vou cruzar o Atlântico para gozar umas férias grandes e nos primeiros dias não andar a bater com a cabeça nas paredes sem saber muito bem como é que vou passar os dias sem atender o telefone, ajudar a organizar a agenda dos camaradas mais novos, ou mais novinhos, que adoram fingir que não acontece nada se não se sentirem apertados num sítio que só eu sei.

Fico por aqui neste texto que põe a nu o jornalista que sou cada vez menos e o operário em construção que sou cada vez mais, agora que entrei no mês em que posso pedir a reforma por limite de idade (tinha que deixar aqui esta informação para não pensarem que falo de boca cheia e que ainda tenho uma vida eterna pela frente).

De verdade, sem falsas juras, é o que sinto todos os dias. De manhã tenho uma energia que sou capaz de combinar encontros e marcar trabalhos que enchem a agenda de uma semana. O problema depois é cumprir tudo o que agendei, combinei e imaginei que era capaz de realizar.

Não acabo a crónica roubada ao sono sem dar conta que no dia do fecho desta edição, e no dia seguinte, em que o jornal chega a todos os leitores, vamos voltar a premiar os melhores empresários da região ribatejana e as personalidades do ano. Vai ser uma festa como sempre. E vamos mostrar que, embora sejamos boicotados por vivermos e trabalharmos longe dos poderes de Lisboa, conseguimos dar provas que Portugal resiste apesar dos Vieiras, dos Sócrates, dos Salgados e dos Rendeiros, para não falar daqueles seus apaniguados que formam um exército de libertação dos dinheiros dos impostos para os paraísos fiscais, que depois faltam no SNS e na Justiça, para haver juízes e funcionários suficientes que façam funcionar o Sistema.

Ainda a tempo; acabei a crónica sem satisfazer a curiosidade dos leitores que adoram conhecer lugares de férias maravilhosos. Infelizmente não posso desvendar o meu destino de férias porque o lugar não tem luz eléctrica e vou ter que pescar todos os dias para não morrer de fome. Quem me invejar que morda a língua que é o menor mal que sou capaz de desejar aos invejosos. JAE.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Vai sair cara a resistência

Esta edição de O MIRANTE tem dois cadernos e comemora 34 anos de publicação ininterrupta sob o lema que nos inspira desde o primeiro número: “caminhante não há caminho, o caminho faz-se a andar”.

Quem ler esta edição de O MIRANTE, distribuída por dois cadernos, vai sentir o peso da leitura por mais que o seu espírito esteja folgado. Apesar da crise é a maior edição de aniversário de sempre e aquela que reúne mais investimento. 2021 tem sido um ano desafiante. Enquanto os jornais ditos nacionais vão caindo, alguns para tiragens insignificantes, O MIRANTE mantém os seus números na edição impressa e é lido na internet por mais de metade da população portuguesa. Certamente com a grande ajuda dos portugueses residentes no estrangeiro, e com o interesse dos seus familiares, mas não é isso que nos rouba a importância e o interesse que despertamos no mercado.

Vivemos um tempo de monopólio da informação; pior que isso: sofremos a concorrência de empresas e indivíduos que roubam a informação dos jornais como quem apanha amoras silvestres à beira da estrada. Começa nos facebooks e acaba no cidadão comum que distribui diariamente, em mensagens de telemóvel, dezenas de títulos de jornais roubados dos programas de assinaturas das editoras.

O sector da comunicação social vai resistir a tudo e a todas as contrariedades, inclusive aos governos que vêem o trabalho editorial das redacções por um canudo: querem os jornalistas e os jornais a fazerem serviço público mas depois fogem com a publicidade obrigatória e os deveres da transparência que uma boa governação exige. Vai sair cara a resistência. As bancas de venda de jornais são cada vez menos.  No mercado nacional só há uma distribuidora de jornais; e as dificuldades também apertam para quem vê as receitas diminuirem devido à quebra das vendas. Dos grandes jornais de referência O MIRANTE é dos poucos que aposta nas assinaturas da edição impressa. Os CTT vão cumprindo a sua missão embora em alguns pontos do país com problemas na distribuição. O papel aumentou 47 % nos últimos três meses assim como grande parte das matérias-primas associadas à impressão. As cativações e a lei da contratação pública, leis peregrinas que visam apenas dificultar a vida aos pequenos empresários, são aberrações do regime social-democrata em que vivemos, que privilegia descaradamente as grandes empresas e os grandes empresários que se escondem atrás de fundações e de offshores.

A pandemia, graças ao avanço da ciência, é uma brincadeira comparada com a desgraça que vai por aí no clima, com o drama dos refugiados, o avanço da China nos mercados internacioais com produtos a preços ridículos graças a tudo o que sabemos e, por fim, sem esgotar todas as grandes lutas das novas gerações, a falta de cultura democrática na administração dos organismos do Estado e, muitas vezes, nos gabinetes dos próprios governantes.

O MIRANTE comemora 34 anos de publicação ininterrupta. Chegamos aqui devido ao trabalho de uma equipa que nunca se dividiu, que criou raízes, que tem sabido adaptar-se aos novos tempos. Um dos grandes desafios de O MIRANTE é trabalhar em 23 concelhos onde as sensibilidades políticas e pessoais são variadas. Temos muitos mais parceiros que adversários; muitos mais aliados que inimigos; desde o primeiro número de O MIRANTE que trabalhamos em nome de um projecto editorial e nunca em favor de um projecto político, pessoal ou empresarial. E é assim que vamos continuar sob o lema que nos inspira desde o primeiro número: “caminhante não há caminho, o caminho faz-se a andar”. JAE.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Um jornal para os vizinhos

Na última década extinguiram-se centenas de títulos de jornais locais e regionais. Em Portugal vive-se uma realidade que, por incrível que pareça, é antagónica à realidade do resto da Europa.

 

“Os verdadeiros meios de comunicação líderes são os jornais regionais”. O título é de um artigo de jornal que sintetiza um congresso sobre jornalismo realizado em Valladolid, que serviu ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine como ponto de partida para analisar o estado da imprensa espanhola e onde é citado o chefe de redação do La Voz de Galicia, Xosé Luís Vilela, que afirma que “Nós fazemos o jornal para os vizinhos”.

Gosto da citação para substituir “jornalismo de proximidade” que costumamos usar nas campanhas de O MIRANTE para angariar leitores. Tenho que reconhecer, no entanto, que a realidade espanhola é substancialmente diferente da portuguesa. Há mais de três décadas que acompanho a evolução da imprensa em Portugal e os jornais regionais perderam importância em contra-ciclo com o resto da Europa. Na última década extinguiram-se centenas de títulos de jornais locais e regionais. Em Portugal vive-se uma realidade que, por incrível que pareça, é antagónica à realidade do resto da Europa. Em terras lusas tenta vender-se a ideia que temos o maior número de jornais centenários e alguns iluminados falam mesmo em candidatá-los a Património Imaterial da Humanidade. Nada contra se os jornais cumprissem a sua função, o que não é o caso na grande maioria, ou por falta de jornalistas ou por estarem a ser dirigidas por pessoas que estão a viver ainda nos anos de chumbo. É dificil olhar para um jornal que não tenha uma política editorial que faça com regularidade o escrutínio das instituições e dos seus protagonistas; que não dê prioridade aos assuntos de sociedade e não esteja do lado dos mais desvaforecidos da comunidade.

A falta de auto-critica e a subserviência das instituições do sector ao poder instituído, assim como a falta de interesse pelo associativismo da classe, faz de Portugal um país de caciques e de pobres diabos que continuam a fazer do jornalismo local e regional uma actividade para asilados. Entretanto as tiragens dos quatro jornais de referência em Portugal caíram para menos de metade nos últimos anos. A publicidade tradicional desapareceu e as consequências são o emagrecimento das redacções e, consequentemente, a falta de tempo para os jornalistas trabalharem na rua. Hoje, como ontem, a grande maioria dos profissionais das televisões e dos jornais de referência são poucos para acompanharem a classe política em Lisboa ou quando passeiam pelo país. 

90 por cento dos jornalistas que saem das universidades querem serem pivot de televisão; por isso passam anos sentados às secretárias a fazerem trabalho de escriturários, na maioria das vezes sem qualquer influência na qualidade da informação publicada. O resultado dessa ideia de que jornalismo é apresentar telejornais, mais tarde ou mais cedo, faz de jovens licenciados em comunicação maus caixas de supermercados, maus vendedores de imóveis e automóveis, etc, sendo que uma boa maioria deles acaba a trabalhar, em frente a um computador, para o Facebook, o Tik Tok a Google e a Amazon, as grandes empresas que já dominam o mundo através da internet.

Portugal é dos países da Europa desenvolvida o que menos se preocupa com o futuro dos seus jovens trabalhadores, sejam eles jornalistas, médicos, engenheiros, arquitectos, pedreiros ou mecânicos.

A bagunça na distribuição do dinheiro do orçamento do Estado favorece a especulação e a pobreza que se instalou na sociedade. A grande maioria das empresas que não depende de trabalho especializado tem que recorrer à emigração. A geração rasca, de que falava Vicente Jorge Silva, ainda não se extinguiu; pelo contrário, continua uma imensa maioria incentivada por um ensino universitário sem qualidade e sem ligação à realidade do mundo do trabalho.

Parafraseando a nossa (ainda) ministra da Agricultura, a pandemia ainda pode ser uma boa oportunidade para Portugal. A China já controla a luz eléctrica que nos ilumina as casas e faz trabalhar as fábricas; as barragens já foram vendidas à Engie; os bancos já são quase todos estrangeiros, e os que não são se-lo-ão a breve prazo; o Alentejo já é Marrocos aqui mais perto. Um dia destes vamos ter cientistas no Ribatejo a posicionarem-se para serem os primeiros a dissecarem os cadáveres dos antigos comunistas de Alpiarça, dos avós de José Saramago e, quem sabe, o de Ricardo Salgado, um antigo correeiro da Chamusca que tinha um nome famoso mas era, se fosse vivo, o honrado bisavô da Mafalda, que é minha neta e ainda não sabe ler. JAE.