quinta-feira, 30 de março de 2023

Um escravo virou um escravizado e já não se pode cantar "atirei o pau ao gato"

Uma crónica que não mostra o verdadeiro inferno de calor onde vivi os últimos dias, os livros que carreguei, as chatices de não ter Internet e as saudades de mergulhar no rio Zêzere.


Não sei qual é a importância do rio Zêzere para o caudal da água do rio Tejo a partir de Constância, onde as águas dos dois rios se encontram, mas sei que o Zêzere para mim tem o encanto dos pequenos rios que se podem navegar de canoa, e visitar junto às margens, como se cada enseada ou palmo de areia fosse um pequeno paraíso que a natureza nos oferece sem pedir nada em troca.

Conviver com a água dos rios, e no meio das suas marachas, tem essa mística que pode ser comparada aos prazeres sexuais da juventude. Maria Gabriela Lansoll, a autora de "Um Falcão no Punho", explica isso de outra forma comparando a energia de quem lê um livro como uma espécie de prazer do sexo porque o acto de ler, segundo ela, "penetra profundamente e reproduz". 

Na minha estante há livros e autores que nunca li e com quem nunca tive química. Haruki Murakami é um deles. A culpa é minha, de certeza, mas cada um faz as suas opções e segue os seus instintos; Quando escolho passar o meu dia livre numa enseada do Zêzere, ou no areal do Tejo, a observar as pegadas dos cães ou dos javalis, a procurar pedras que formam pequenas esculturas, a cortar canas para construir pífaros, sei o que ganhei por não ter ficado em casa, por ter trocado o carro pela mota ou pela bicicleta. Sei que vou somar emoções à flor da pele que vão mexer com as minhas opções de vida.


O prazer é um luxo; para o desfrutar é preciso que a nossa segurança não esteja em risco. Roubo a frase a Stendhal que li muito jovem e que agora releio só para treinar a memória. Raros são os autores de outras épocas bem distantes que não são misóginos e reaccionários em relação às mulheres. Nem por isso, acredito, algum dia as feministas vão propor que se proíbam os textos de Ovídio, de Pascal ou de tantos outros que embora tenham escrito livros imortais não conseguiram deixar de tratar a mulher como tendo nascido da costela do Homem. Alterar os textos dos livros para crianças a pretexto de serem racistas, ou conterem termos em desuso, é uma parvoíce digna de gente pouco sábia, principalmente num tempo em que dois minutos na Internet podem ser mais perigosos que a leitura de todos os livros do mundo onde se incentiva "atirar o pau ao gato" ou coisa do género. 

Esta crónica nasceu para abordar um assunto que vai ter que ficar para outra altura; sabem o que é que me aconteceu entretanto? estive um dia a conviver à mesa, e depois palmilhando caminho, com uma ex-jornalista da Globo que recentemente trabalhou com a actual ministra da Cultura brasileira de forma a criar adendas às principais obras de escritores brasileiros que trataram a escravidão nas suas obras como coisa natural. Diz ela, e com alguma razão, que não se deve mexer na Obra mas os editores têm a obrigação de preparar as novas edições esclarecendo, em adendas, porque é que há 100 anos se dizia que as pessoas eram escravas quando se devia escrever, como agora, que eram escravizadas. Os exemplos nunca mais acabam, e alguns deles, para quem como eu não tem tento na língua, nem se considera racista, só depois de ouvidos e explicados fazem realmente sentido e provam (será que provam?) que andamos a aprender até morrer; e morremos sem saber de que terra somos. JAE.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Sair de casa duas ou três vezes por ano e só para subir ao telhado

"Sonho com um império onde cada província, cada cidade, seja administrada por um homem justo, temente a Deus, atento às queixas do mais fraco dos súbditos. Sonho com um Estado onde o lobo e o cordeiro bebam juntos, em toda a quietude, a água do mesmo riacho. Mas não me contento em sonhar; construo".


Não sei se Santarém vai ter ou não o futuro aeroporto internacional, que vai ser complementar ao aeroporto da Portela, em Lisboa. Não sei se o rio Tejo vai secar no Verão como um velho riacho ou se Portugal e os portugueses vão ter capacidade para se unir e encontrar uma solução que salve o rio, e as culturas de Verão, e os furos para regar as searas não sequem nem os poços nos quintais fiquem sem água. Não sei se as terras do Ribatejo, que eram ricas em laranjas e laranjais, um dia vão ser só terra de amendoais e nogueirais enquanto comemos as laranjas secas que chegam do Chile e um ou outro ribatejano vai remando contra a maré plantando couves e nabos para vender nos mercados locais. "Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não" e por isso é tão importante cantar os poetas, que não só os choramingas que escrevem versos, como lembrar quem lavra a terra e a semeia, para que muitos de nós, que nem sabemos pegar numa enxada, nem diferenciar uma semente de girassol de uma semente de feijão verde, não cheguemos a velhos tão cegos e pequerruchos como quando nascemos.

Lavrar livros é um termo que gosto de usar quando tenho tempo para recuperar leituras antigas, onde bebi a minha sabedoria de pastor que se prepara para nos próximos vinte anos, se a alma e o esqueleto forem resistentes, sair duas ou três vezes de casa e em todas as vezes só para subir ao telhado.

Por enquanto estou agarrado ao computador, a pôr o trabalho em dia, como se agarrado com unhas e dentes a um corpo erótico quando de verdade cumpro uma missão que não só me vai ajudar a descansar uma boa parte do resto do dia como sei que vai ajudar quem espera de mim o sacrifício do cordeiro.

O que me deu alento para escrever esta crónica, e onde roubei a ideia de que nos próximos anos só vou sair de casa para subir ao telhado, foi a releitura do livro Samarcanda, que tem um pequeno parágrafo que vou deixar aqui para justificar o interesse que mantenho sobre o destino do futuro aeroporto ou do leito do rio Tejo; "Sonho com um império onde cada província, cada cidade, seja administrada por um homem justo, temente a Deus, atento às queixas do mais fraco dos súbditos. Sonho com um Estado onde o lobo e o cordeiro bebam juntos, em toda a quietude, a água do mesmo riacho. Mas não me contento em sonhar; construo".

"Assim como o mar não tem vizinhos e o príncipe não tem amigos", o cronista não tem como saber quais os temas que os leitores de jornais mais gostam de ver tratados nas páginas meio encardidas do papel de jornal. Por isso, em vez de opinar sobre o que cada dirigente político, a começar nos deputados do regime, deveriam trazer para a opinião pública, a mostrar que existem, e que tem opinião, e que não são uns estupores que apenas comem da gamela do Orçamento do Estado em vez disso, recorro aos livros que já li, e agarrado ao computador, como aos cornos de um boi, pergunto onde é que andam esses trambolhos dos políticos que passam o dia ao telemóvel a falar e a fazer negociatas como se fossem os Seljúcidas dos tempos de José Sócrates, João Rendeiro, Zeinal Bava, entre tantos outros. JAE.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Sou grato a quem me pariu

De vez em quando sentimos que a nossa profissão nos consome a vida mas deixa um doce agradável na boca. É o caso esta semana em que não estou a trabalhar à secretária mas nem por isso deixo de trabalhar e pensar no trabalho.


Subir aos céus num A320neon da TAP, à meia-noite, a meio da semana, depois de um dia normal de trabalho, e não sentir a ansiedade da partida, é tudo o que procuro desde que me conheço. Agora já posso dizer que sou capaz de viver numa cabana quando começarem a construir resorts nas nuvens. Não sei quando regresso desta viagem e inspiro-me num livro de Olivier Rolin (O meu chapéu cinzento) para falar com Deus que ficou em terra a desejar-me boa viagem, já que viajo para escrever, “o que implica um desacordo com o mundo”.


A profissão de jornalista permite que falemos do nosso trabalho sem que nos julguem em bicos dos pés. Dificilmente encontraremos nos jornais ou nos livros testemunhos de mestres da carpintaria, correeiros, sapateiros, ferradores, pedreiros, ladrilhadores, entre tantos outros profissionais e profissões. Jornalista tem a faca e o queijo na mão, como se costuma dizer, daí a tentação de se julgar com direito a falar de si enquanto escreve sobre o seu trabalho.

Precisei desta introdução para contar que recentemente vi-me a fechar uma edição de O MIRANTE como nos velhos tempos chegando a casa exausto, sem sono, nervoso, incapaz como noutros tempos de dormir, o que me obriga a passar mais de metade da noite a ler, que é quase como continuar a trabalhar, embora em modo de formação para a batalha seguinte. O mais estranho é que o incidente acontece numa altura em que estou de saída da proa do barco e comecei a desenhar a tal casa nas nuvens para onde quero viajar mais vezes até um dia ficar lá a morar para sempre. 

Sou um jornalista sem grandes méritos que não o de gerir uma boa equipa. Para mim chega, se juntar a esse sentimento de orgulho e gratidão as memórias que guardo de jornalistas como Fernando Piteira Santos, Luís de Miranda Rocha, Baptista-Bastos, António Paulouro, Orlando Raimundo, entre poucos mais, que me passaram no início da profissão, testemunhos inolvidáveis desta vida de servir as pessoas e as instituições sem pedir nada em troca que não seja a liberdade para trabalhar.

Não vou falar de nomes, mas hoje sou tão reconhecido a um conjunto de profissionais que me acompanham nesta jornada, em todas as áreas da empresa editora, como aos antigos amigos e conhecidos a quem roubei, sem eles darem por isso, a alma desta profissão.

A vaidade e a inveja não me assaltam o espírito. Sou grato a quem me pariu por me ter dado algumas qualidades que, entretanto, soube valorizar. O trabalho permitiu-me ainda não valorizar o dinheiro mais do que ele merece. Adoro comer latas de sardinha e de atum em tomate, café e pão com azeitonas, e confesso que não conheço, nem quero conhecer, os restaurantes mais famosos do país e do mundo.

Nunca me deixei corromper nem corrompi. Algumas vezes paguei caro algumas liberdades e ingenuidades. Se hoje sou mais ou menos inabalável também o devo a esses momentos em que ainda não tinha aprendido a cair.

Tal como um bom médico vai para casa todos os dias com a alma cheia por suar as estopinhas para atender todos os doentes, um jornalista que se preze não vai dormir ao fim do dia sem escrever o suficiente para fazer justiça à profissão que abraçou e muito menos vai sonhar para a cama enquanto a dura realidade não lhe passa das mãos para o teclado do computador. JAE.

quinta-feira, 9 de março de 2023

Um jornal pode ser tão importante para uma região como deixar sair a água de Castelo do Bode para Lisboa

O MIRANTE organizou em Tomar mais uma edição dos prémios Personalidades do Ano que encheu o Cine-Teatro Paraíso, assunto que ocupa algumas páginas desta edição. É um orgulho premiar e estar do lado das pessoas que fazem a gestão dos destinos da região e não viram a cara à luta embora muitas vezes o combate seja de David contra Golias.


Quem tem acompanhado as notícias nos últimos tempos sabe que vivemos uma Terceira Guerra Mundial que já nos aumentou os preços dos bens essenciais em mais de 50%, ainda estamos a viver uma epidemia, temos um sistema de justiça que funciona como uma ETAR avariada, um país rendido, quer gostemos quer não, aos burocratas que nos governam a partir dos gabinetes de Lisboa, e não menos perigoso para todos os que trabalham humildemente e cumprem com os seus deveres, estamos nas mãos de gente que adora negócios, adora, adora negócios, principalmente se não dão muito trabalho nem muitas chatices e o dinheiro puder ir para uma conta numa offshore.

Não estamos em Tomar para falarmos de desgraças. O que não queria mesmo era deixar passar a oportunidade de juntarmos tanta gente com responsabilidades políticas e associativas na região sem deixar uma mensagem que nos parece muito importante; estamos juntos para lutarmos por uma região com um aeroporto, com um projecto a sério para não perdermos os nossos rios, o Tejo, o Nabão, o Zêzere, o Almonda e o Sorraia, entre outros; não perdermos as grandes riquezas que só existem na nossa Lezíria, no nosso Bairro e a nossa Charneca, como já aconteceu em algumas zonas do país, nomeadamente no Alentejo e Trás-os-Montes, e em algum território da zona centro, onde estamos a bater no fundo ao nível da desertificação e da recuperação de património edificado.

Os prémios Personalidades do Ano que O MIRANTE começou a entregar há 18 anos têm hoje cada vez mais essa pretensão de unir pessoas, cimentar vontades, mobilizar afectos, ajudarmos a fazer a ponte entre o Norte e o Sul, o Este e o Oeste. Ligar uma região com um jornal não tem nada de novo se olharmos para grandes regiões do mundo, mas em Portugal, no Ribatejo, é um desafio que é preciso alimentar todos os dias, e a todas as horas, contra ventos e marés, cedendo um ombro para mais tarde conquistar um braço, recuando muitas vezes meio metro para mais tarde avançar dois metros; escrutinando o Poder dos outros mas também o nosso próprio mérito e capacidade de sermos escrutinadores enquanto também somos escrutinados.

As notícias de O MIRANTE têm pernas compridas, chegam onde têm que chegar, não ficam pelo caminho, geram conversa, obrigam ao escrutínio, enfim, completam e justificam o nosso trabalho e os dos nossos parceiros de jornada. E isso é tudo o que justifica esta e outras inicativas de O MIRANTE que juntam todos os anos os principais responsáveis políticos e associativos da região. 

Um jornal independente, com jornalistas que não se acomodam, que não fazem fretes, que sabem de que lado é que está o interesse público, que sabem posicionar-se do lado certo quando se trata de uma luta entre fortes e menos fortes; um jornal assim é tão importante para uma região como deixar sair para Lisboa a água da barragem do Castelo do Bode.

Premiar pessoas e instituições é uma missão de um jornal como O MIRANTE que se sustenta na arte do jornalismo mas também num projecto empresarial de sucesso, apoiado numa equipa de trabalho em que uns escrevem notícias e outros vão atrás da publicidade; não há no mundo negócio mais limpinho do que este; só quando é assim, bem feito e bem gerido, é que resulta. JAE.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres

O nível da discussão pública em Santarém sobre as questões mais importantes para o futuro da cidade e do concelho tem baixado a um nível inimaginável. Entretanto, os bancos voltam a ser as empresas mais lucrativas do país, o que diz bem do estado da Arte.


Um resfriado que me chateia há algum tempo obrigou-me a ficar mais tempo em casa; por isso li mais nos últimos dias que nos últimos meses. Não sei se devia mas estou decepcionado com uma das minhas escritoras preferidas que abre o seu novo livro em edição portuguesa com agradecimentos a todos os editores e alguns tradutores. Só falta agradecer ao gato e ao cão. Não acredito na sanidade dos grandes autores que, de repente, começam a achar que têm que agradecer a chuva de elogios, a unanimidade da crítica, os milhões de leitores e seguidores nas redes sociais. Há qualquer coisa que não bate certo e nos faz temer o perigo de estar no seu perfeito juízo, que é assim que se chama o novo livro de Rosa Montero.


O custo de vida nos últimos tempos aumentou exponencialmente. Só sabe disso quem ganha pouco, ou não tem trabalho, ou paga renda de casa, tem filhos pequenos ou comprou mercadorias a prestações. Não vejo o Governo preocupado com a fiscalização das operadoras de comunicações, os distribuidores de alimentos, os preços do gás e da luz, as despesas com a nossa saúde fora do SNS, já que nem todos aceitam ficar 12 horas numa urgência de um hospital. Enfim, há um barco a afundar-se e estamos lá dentro sem sabermos se o comandante está solidário com os passageiros ou se tem um plano de fuga secreto para nos deixar no meio da tempestade enquanto ele se põe a salvo.


Apetece escrever que os grandes problemas da Humanidade não preocupam os nossos governantes. Os ricos estão cada vez mais ricos como provam os números divulgados todos os dias. Os bancos são, nesta altura, as empresas mais rentáveis do mercado. O Governo, que abandonou há dezenas de anos a sua responsabilidade na construção de habitação social, anda por aí num falatório a dizer que vai obrigar os proprietários a arrendar as casas vazias nem que seja à força. É evidente que o tema é só para entreter a malta e para desviar as atenções dos problemas reais. Este é o Governo que indemniza os gestores da TAP de forma aparentemente fraudulenta; o Governo que teve um ministro que anunciou um aeroporto e no outro dia foi desautorizado pelo seu chefe; um Governo que tem um primeiro-ministro que teve um secretário de Estado adjunto chamado Miguel Alves, que teve o mérito de dar a conhecer aos portugueses um Joe Berardo dos pobres, um caso tão triste que faz com que a imagem de Portugal no estrangeiro seja aquela que todos sabemos. 


O nível da discussão pública em Santarém sobre as questões mais importantes para o futuro da cidade e do concelho tem baixado a um nível inimaginável. O último debate realizado no campo Emílio Infante da Câmara foi a prova dos nove. Há uma dúzia de papagaios na cidade, sempre os mesmos, que continuam a monopolizar o debate batendo sempre nas velhas questões usando a crítica como quem usa a samarra no Inverno para se proteger do frio. No entanto, quem os ouve palrar até parece que ouve os santos a falarem do cimo de um altar. Curiosamente, os assuntos mais prementes, aqueles que mexem com os interesses instalados de certa gente, nunca são aflorados. É por causa de gente desta que nasceu em tempos imemoriais o ditado popular de que “vozes de burro não chegam ao céu”. JAE.