quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

As lojas de bairro e o exemplo de “oPonto” no Bom Retiro

Um pão grosseiro e uma mão cheia de azeitonas novas retalhadas fizeram o meu momento de felicidade dos últimos dias. Um pretexto para falar das lojas de bairro, e de uma em particular, que é um lugar diferente logo à entrada do Bom Retiro onde, entre prédios, há um dos mais bonitos miradouros sobre o Tejo.

As lojas de bairro fazem a minha felicidade quando tenho tempo para desviar caminho e parar para comprar pão grosseiro, azeitonas novas retalhadas, fruta madura da época, bolachas baunilha e mais um sem número de produtos que gosto de encontrar, ao acaso, e que não aparecem todos os dias aos nossos olhos mesmo que moremos ao lado de uma grande superfície comercial. Foi assim que me perdi no último dia da última semana no Bom Retiro, em Vila Franca de Xira, depois de uma visita a uma lojinha que faz toda a diferença. Luís Piazê vende o melhor café do país, na chávena, mas também no pacote, bolinhos de coco e brigadeiros, feitos pela Helga, sua mulher, entre muitos outros produtos caseiros e comprados ao produtor, como mel e vinho. Não é um minimercado, é mesmo uma lojinha de bairro, com produtos diferentes, que não encontra noutro lugar, onde também não falta uma estante de livros, alguns de sua autoria. “oPonto” fico escondido numa rua sem saída, (Rua António Ferreira) que tem entre prédios um dos miradouros para bonitos para a lezíria ribatejana, com a Ponte Marechal Carmona em fundo, e o rio Tejo, imponente, com os galões de ser o melhor vizinho das terras baixas e alagadiças da Lezíria Ribatejana.

A visita a “oPonto” fica para outro texto editorial; o que tenho para contar desse dia foi a supressa na visita a um minimercado que fica ali a 20 metros da lojinha do Luís Piazê e da Helga. Foi lá que encontrei um “pão de 22”, para usar um termo que guardei de outros tempos, quase só côdea, e umas azeitonas retalhadas meio amargas que me proporcionaram a viagem mais saborosa que já fiz até hoje no regresso a casa. Já com o dia meio cego, durante cerca de meia hora de viagem comi uma mão cheia de azeitonas e metade do pão grosseiro, sem molhar o bico, o que até parece impossível mas é verdade, porque experimentei todos aqueles sabores sem misturar o gosto do chá, do café ou da cerveja, que são as minhas bebidas preferidas para acompanhar uma refeição. Gosto de vinho, claro, mas o chá, o café e a cerveja não turvam a vista e não dão ressaca; por isso bebo vinho à mesa quando o rei faz anos e só me embebedo quando quero mesmo perder a cabeça.

Guardo uma boa recordação das lojas de bairro da minha infância quando não havia supermercados. E acho que as autarquias têm um papel fundamental na preservação destes estabelecimentos de proximidade depois de terem facilitado, alguns vezes de forma criminosa, a construção de grandes superfícies à entrada das vilas e cidades, a exibirem as suas credenciais de tal forma que parece que são elas a marca do território onde nascemos e vivemos. Santarém é um bom exemplo dessa pouca-vergonha. Quem entra na cidade pelo Circular Urbana D. Luís 1º., vulgo rua O, até as paredes do edifício comercial são pintadas da cor da marca do supermercado, com símbolo e tudo, como se as regras urbanísticas da cidade fossem letra morta quando se trata de licenciar obras para os grandes grupos económicos.

Tenho boas recordações das lojas da D. Laura e D. Judite, e até da loja do Zé Mira que, embora seja menos antiga e tenha fechado mais recentemente, permitia-me comprar a um lojista de proximidade e conviver ao mesmo tempo. Foi na D. Laura que descobri todos os rebuçados, os primeiros palitos la reine, a bolacha baunilha e os caramelos que ainda hoje são os meus rebuçados preferidos. Falando de outros tempos, senti muitas vezes a alegria que só uma criança sabe explicar; com as guloseimas acabava por matar a fome.

No bairro onde vivo agora, mais permanentemente, em Lisboa, há um pequeno supermercado de uma grande marca onde entro com frequência. É normal as meninas da caixa tratarem-me por vizinho, o que corresponde à verdade mas só territorialmente; não as conheço de lado nenhum e nunca falei com elas mais do que “quanto custa” e “venda-me um saco por favor”. É só uma última nota para concluir que até as grandes marcas já fazem da palavra “vizinho” e “proximidade” uma ferramenta para se venderem. Outros tempos e outras artes. JAE.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

“Uma epidemia de votos em branco” para lembrar que 2022 é o ano do centenário de José Saramago

2022 é o ano de José Saramago, o escritor da Azinhaga que nos deixou uma Obra de grande valor, reconhecida em todo o mundo e merecedora do Nobel da Literatura. Falemos dele em tempo de eleições para questionarmos também as questões políticas na sua Obra

O ano de 2022 é o do centenário de José Saramago. O escritor da Azinhaga deixou uma marca que não se apagará nos próximos séculos, a confiar naquilo que aprendemos com a História da Humanidade; o mundo rendeu-se aos seus romances e à forma inventiva como criou personagens e trabalhou a memória de outras, mais ou menos conhecidas, mais ou menos famosas, que se podem encontrar em títulos como “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Memorial do Convento” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, livro que lhe valeu um acto de censura num dos governos de Aníbal Cavaco Silva, que acabou por incentivá-lo a mudar de vida comprando casa na ilha espanhola de Lanzarote. Aproveito a festa do centenário do escritor para deixar aqui, preto no branco, que vou participar na homenagem ao autor ribatejano já no dia das próximas eleições votando de acordo com as ideias e os ideais que defendeu nos últimos anos de vida, que era a do voto em branco como sinal de protesto pelo facto de estarmos sempre a eleger os mesmos políticos mentirosos, tema do livro “Ensaio sobre a Lucidez”, que levanta uma questão quase utópica de poder haver um dia uma espécie de epidemia de votos em branco.

José Saramago ganhou o Prémio Nobel em 1998 mas em 1992 ainda participava em encontros com os seus conterrâneos sem a presença de jornalistas e de televisões. Foi isso que aconteceu na Golegã, no dia 10 de Agosto, numa conversa integrada num denominado Encontro de Arte Contemporânea. O autor desta crónica era o único jornalista presente, se bem me lembro, e o registo da conversa está na edição de O MIRANTE de 15 de Agosto de 1992. A memória mais marcante desse encontro foi a atitude firme de José Saramago com um conterrâneo que tentou desconversar obrigando o escritor a levantar a voz numa atitude de pedir respeito pelos outros participantes.

Se Portugal tivesse uma democracia tão exemplar como nos Países Baixos ou Reino Unido (escrevo sem complexos e orgulhoso de ser português), António Costa tinha pedido desculpa aos portugueses por se ter envolvido na eleição de Luís Filipe Vieira no Benfica, mesmo não havendo ainda qualquer julgamento sobre os factos que vieram a público. Num país civilizado o primeiro-ministro de Portugal recebia todos os meses uma listagem dos imigrantes que estão inscritos no SEF à espera de legalização e tomava decisões em vez de deixar que Portugal seja governado por negociantes como no tempo da escravatura; se António Costa quisesse acrescentar valor ao que já aprendemos em democracia, depois da queda de Salazar, punha os médicos a enviar receitas por SMS para todos os doentes crónicos que se levantam da cama às quatro da madrugada, de Verão e de Inverno, para irem para as filas do centro de saúde, muitas vezes sem conseguirem os seus objectivos; ajudava a modernizar o sistema de Justiça com funcionários suficientes e acabava com o escândalo do Tribunal Administrativo onde os processos, por norma, demoram a julgar entre dez a vinte anos, por ser também um tribunal onde o Estado aproveita para se respaldar. 

Depois de termos vivido num país governado por um socialista chamado José Socrates, que nos fez todas as maldades já conhecidas, e que ficarão por julgar graças ao sistema alimentado pelos políticos que com ele conviveram (alguns fazem parte do actual Governo demissionário de António Costa), esperava-se mais, muito mais, deste antigo presidente da Câmara de Lisboa. Não tenho dúvidas de que tentou fazer o melhor que sabe mas, na minha opinião, fez muito pouco para aquilo que todos esperávamos dele. Citando José Saramago no “Manual de Pintura e Caligrafia”, António Costa só pode reconhecer o ridículo da sua governação mas o problema é que o ridículo não suporta que o olhem. JAE.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Em tempo de debates políticos para as eleições continuam as mudanças de turno nas urgências dos hospitais

Estamos em tempo de campanha eleitoral e nunca como nestes tempos os políticos se puseram a jeito para serem os palhaços de serviço das televisões. Esta crónica é tudo menos política e começou numa urgência de um hospital.

Quando temos 20 ou 30 anos mal sabemos o que nos vai acontecer aos 60 ou aos 70 se tivermos a sorte de chegar a essas idades. Estou a escrever sobre o assunto porque ando por aqui a questionar-me espantado com as surpresas de todos os dias e a tentar adivinhar quantas horas, dias, meses ou anos ainda tenho para me rir de mim próprio já que o riso é o melhor remédio para a boa vida.
O facto de ser casado com uma ex-cabeleireira fez com que fosse ao longo de um grande período da vida a pessoa mais bem informada da minha terra. Como toda a gente sabe as cabeleireiras e os barbeiros são confidentes privilegiados, que sabem tudo sobre dramas familiares que incluem sexo e dinheiro, dois dos dramas maiores das famílias de todo o mundo. Cedo me habituei, por isso, a ouvir e a guardar segredo;
Neste capítulo nada mudou ao cimo da terra; graças a um amigo da política sei o que é que o primeiro-ministro António Costa mais gosta de comer às refeições; o mesmo com Rui Rio. Os dois candidatos a primeiro-ministro nas eleições do próximo dia 30 de Janeiro são tão diferentes um do outro como o Inverno do Verão; só há uma coisa em que são iguais: não trazem para o debate público o eterno problema do adiamento da reforma administrativa do país;  as soluções para o Serviço Nacional de Saúde; a falta de um acordo em nome do interesse nacional para as empresas como a TAP; a reforma da Justiça que não permita que os juízes e procuradores sejam palhaços uns para os outros, com vantagem para quem é criminoso e goza com o nosso sistema democrático.
No início desta semana fugi das urgências de um hospital público e fui queixar-me de uma dor abdominal às urgências de um hospital privado. Estive por lá quatro horas a fazer exames. Saí de lá com a certeza que ainda há médicos e enfermeiros em que se pode confiar, que não fazem intervalos para fumar um cigarro enquanto os doentes se contorcem com dores.
Apesar de ter deitado o olho aos debates eleitorais, que têm feito a delícia dos comentadores, resolvi ignorar o triste espectáculo dos políticos e escrever sobre a experiência de ter assistido à mudança de um turno num serviço de urgências depois de ter sido picado na veia por uma enfermeira que fazia o seu primeiro dia de trabalho e tremia que nem varas verdes a picar-me o braço para tirar sangue para análise. O resto conta-se em poucas palavras porque o estado de saúde da dona Maria (nome fictício), de 94 anos, é uma lista maior que o número de vezes que José Sócrates recebeu dinheiro em envelopes do João Perna, seu antigo chofer de serviço. A jovem enfermeira dava um filme a ler directamente no computador as dezenas de doenças da dona Maria que os colegas precisavam de saber para não a matarem enquanto ela avisava de cinco em cinco minutos que ia fazer xixi na fralda. E a forma como os dois enfermeiros chefes iam aproveitando a partilha para lhe fazer perguntas, e obrigar a saber do que estava a falar, foi exemplar e uma lição que um dia destes vou levar para uma reunião de trabalho da minha equipa.
Três dias antes de ter conhecido a dona Maria, e de uma dor abdominal me obrigar a trabalhar fora de horas por ter perdido meio dia no hospital, li uma entrevista com o médico e professor Manuel Sobrinho Simões que, em resposta a uma pergunta sobre imortalidade, avisa que “estamos a esticar demais a longevidade e o envelhecimento criando a ilusão que resolvemos o problema da morte”. Aconselho a leitura da entrevista no sítio do JN, publicada no dia 2 de Janeiro, em homenagem à dona Maria que, de tão magrinha e pequenina, parecia um bebé enfiada debaixo de uns lençóis a ouvir, sem ouvir, a enfermeira a dizer-lhe “faça xixi mulher, faça xixi as vezes que quiser”.
Nota: o título desta crónica é uma brincadeira para vincar o quanto a classe política, pelo que tenho ouvido, está longe dos grandes problemas da nossa sociedade, como é o caso das políticas de educação, de saúde, da justiça e da valorização do mérito e do profissionalismo. De verdade os nossos políticos são os melhores do mundo é a debater ideias em 20 minutos de televisão em directo. Que saudades dos debates entre Mário Soares e Álvaro Cunhal que jamais aceitaram ser os palhaços de serviços às televisões. JAE

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Os livros de 2021 na nossa ranhosa e babosa República das Letras

Para quem gosta de desafios deixo aqui algumas das minhas melhores leituras de 2021 com a certeza de que me esqueci de muitos livros e autores importantes.

“Contenho vocação pra não saber línguas cultas. A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão”. Roubo versos do poeta brasileiro Manoel de Barros para iniciar a crónica do anunciado ano de 2022 que vai ser de pandemia e de grandes desafios para quem nos governa e, mais ainda, para quem deve vigiar os governantes. Não cito Agostinho da Silva mas escrevo a pensar nele quando disse, ou escreveu, que um homem para sobreviver não precisa mais do que de um prato de sopa e uma côdea de pão por dia.

Li recentemente que o D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, é o segundo livro mais lido em todo o mundo a seguir à Bíblia. E, no entanto, a frase que o tornou famoso só ocupa uma das cerca de 800 páginas, que é da investida de D. Quixote contra moinhos de vento. Foi o livro que reli em 2021 que mais prazer me deu. Vou, no entanto, manter-me fiel a dois escritores de língua portuguesa, vivos e de boa saúde, que considero os melhores da actualidade. Mário de Carvalho, que acabou de publicar um livro de memórias “De maneira que é claro”, que merece sempre ser revisitado no seu melhor livro “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde”, e Ana Miranda, a brasileira do Ceará, autora de “Musa Praguejadora” e “A Última Quimera”, que reli também em 2021 nas páginas de “O Retrato do Rei”, um romance sem paralelo na língua portuguesa, nunca editado em Portugal, que retrata uma época do século XVIII em que os portugueses andavam no Brasil na caça ao ouro, esse metal que “não é riqueza mas apenas um brilho instantâneo”.

O livro de 2021 em Portugal é “O Infinito num Junco”, da espanhola Irene Vallejo: Não sou só eu a reconhecê-lo porque não há no mercado outro livro com tantas reedições ao longo do ano; com justiça; o livro faz jus aos epitáfios e aos gritos de alma espalhados aos quatro ventos, ao longo dos séculos, de que “a instrução é a única das nossas coisas que é imortal e divina”, e que “só a inteligência rejuvenesce com os anos e o tempo, que arrebata tudo, dá sabedoria à velhice”.

Leila Slimani com “O País dos Outros” voltou às livrarias portuguesas para contar a história de uma mulher francesa que aceitou ir viver para Marrocos fazendo o percurso inverso da autora que saiu do seu país com 17 anos para ir estudar em Paris. O livro é cruel com a personagem principal, mas a autora de “O Jardim do Ogre”, o seu primeiro e melhor livro, merece ser lida com muita atenção por quem ama a literatura e as grandes histórias.

Paul Theroux teve direito à edição de dois livros em 2021: a redição de “A Arte de Viajem” e “Figuras numa Paisagem”, ambos da Quetzal. O escritor viajante é leitura obrigatória desde que me conheço; para quem coleciona romances recomendo a leitura de “Mão Morta - Um Crime em Calcutá”, um romance de 2011 onde podemos avaliar ainda melhor a mestria da escrita deste americano, nascido em 1941, que dizem viver agora à beira de uma praia no Havai.

Casimiro de Brito ( nasceu em 1938)  publicou dois livros em 2021: “No amor tudo se move” e “Amor Nu” na editora “Razões Poéticas”. É o poeta maior da poesia portuguesa e um dos mais injustamente ignorado pelas editoras, o que prejudica o conhecimento da sua vasta obra. 

Rosa Montero (1951) é autora de “A Louca da Casa”, um livro que vai ficar para a posteridade. Em 2021 editou um romance que se lê de um fôlego intitulado “A Boa Sorte” que considero imperdível para quem coleciona bons romances.

Gilda Santos assinou o volume X da Obra Completa de Eduardo Lourenço, um livro que reúne tudo o que o autor do “Labirinto da Saudade” escreveu sobre Jorge de Sena. O livro, além de coligir os ensaios dispersos, acrescenta inéditos, reedita toda a correspondência, enfim, é um serviço à cultura portuguesa e a duas das grandes figuras do pensamento e da cultura portuguesa de todos os tempos. 

Francisco Pinto Balsemão marcou o ano com a publicação da sua autobiografia. A história da política e do jornalismo em Portugal, depois do 25 de Abril de 1974, estão condensadas naquelas quase mil páginas. O livro já vai na terceira reimpressão mas a crítica ao livro foi a do país dos brandos costumes; Balsemão merecia que o jornalismo cultural em Portugal não estivesse entregue a meia dúzia de jornalistas que escrevem com luvas de pelica.

Há livros que não passam pelas estantes das grandes livrarias mas que vêm ao nosso encontro para nos despertar para a beleza das coisas que nos rodeiam. É o caso do livro de poesia de Maria F. Roldão, “Pequeno Sangue”; toda a poesia de Jorge Sousa Braga, incluindo muitas traduções; a poesia de Luís Filipe Parrado, que inclui igualmente excelentes traduções; toda a obra poética e diarística de Vergílio Alberto Vieira, e, para finalizar, a poesia de José Tolentino Mendonça que, de tanto publicar e gerar consensos, é talvez o poeta português mais lido e elogiado na nossa ranhosa e babosa República das Letras. JAE.