quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Colete Encarnado em Vila Franca de Xira e as memórias das festas que ficam para a vida

A festa do Colete Encarnado não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica, falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

A festa do Colete Encarnado junta uma multidão em Vila Franca de Xira durante 3 dias. Não há outra festa ligada aos toiros que junte tanta gente, sendo certo que a grande  maioria não vai às corridas nem às largadas e, certamente, uma parte também não aprecia as tradições tauromáquicas nem as aplaude. 

O Colete Encarnado tem uma tal dimensão ao nível da festa popular que os toiros e as touradas ficam para segundo plano. O forte da festa é a presença de milhares de pessoas, os encontros entre grupos de amigos, e, especialmente, a forma como o concelho mostra a sua actividade associativa. A festa nas ruas não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica e falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

Conheço mais de ouvir contar do que vivenciar as festas do Colete Encarnado.  O mesmo com a Feira de Maio, na Azambuja, ou Alenquer, as festas de Mação que também decorrem nesta altura, as de Abrantes que acabaram recentemente, e muitas outras que são notícia em O MIRANTE, e vão continuar a ser, se a redacção do jornal perceber que falar das festas locais é mais do que publicar o programa.  

Nos meus tempos de juventude sempre fui mais de bailaricos e largadas do que de petiscos e copos, embora me lembre de muitas ressacas, também quando era jovem, que me faziam corar de vergonha nos sete dias da semana seguinte. E, uma vez, uma única vez, por obrigação, peguei de caras à saída dos curros as quatro vacas de uma picaria nas festas de Vale de Cavalos, por razões que não é altura para explicar. Mas faço notar que ainda hoje guardo memórias dolorosas de algumas ressacas, e não me lembro de uma única razão para beber quase até cair para o lado.

Voltando ao Colete Encarnado: quando as galinhas tinham dentes, ia a Vila Franca de Xira todos os anos para ter que contar. Ainda hoje provo da mesma sopa. Aonde vou estou sempre a trabalhar. Foram nesses anos dourados, em que ainda tinha mau vinho, que mandava despejar a cerveja para o copo junto ao balcão para depois me juntar aos amigos e ninguém perceber que estava a beber cerveja sem álcool. Mesmo assim, com toda essa escola da vida que me obrigou bem cedo a ganhar juízo, ainda apanhei uns sustos nas varolas, a mota resvalou algumas vezes nas curvas, e cheguei a enfiar o barrete até quase tapar os olhos, mesmo tendo uma curta vida de forcado e nunca tenha vestido o traje de campino. JAE.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Beber água da torneira sem pagar e viver duas vidas sem protestar

Na minha aldeia há muita gente da terra e dos concelhos vizinhos que vão encher garrafões de água na fonte do Pinhão, uma herança da família Lopes da Costa que mantém a propriedade e uma coudelaria bem conhecida. Quando passo por lá também vou à bica beber água para matar a sede do momento, mas jamais acredito em águas milagrosas que não sejam as da chuva. Mas também tenho as minhas manias. Sempre que estou na terra vou à fonte pública dos Carrapiteiros beber água directamente da torneira do fontanário e encher a garrafa que sempre me acompanha no carro. Foi hoje o caso. Fui lá de propósito. A maioria das vezes calha no caminho para a beira do Tejo, onde tenho um bocado de terra e a esperança de um dia ser enterrado ao lado da campa de um cão, a quem eu próprio fiz o funeral há muitos anos. E agora também de uma linda raposa que recentemente foi morrer debaixo da laranjeira onde já dormi e quero continuar a dormir umas sestas.

No dia em que escrevo, varro o chão pela última vez de uma casa que aluguei e depois comprei há meio século, onde aprendi sozinho a trabalhar no ofício e a ganhar dinheiro.

Os últimos meses foram incríveis. Tudo o que foi ficando de uma vida de meio século, entre milhares de coisas e coisinhas, minhas e dos meus, deitei para o lixo, guardei e vendi a exemplo do que aconteceu também com o edifício.

Tive todo o tempo do mundo para sentir o peso de cada peça, de cada móvel, de cada quadro, de cada objecto que enchia os cantos à casa, os fundos às gavetas, enfim, de cada coisa que dantes era parte da minha vida e de um dia para outro passou à situação de dispensável. 

Não senti um pingo de sentimento por ser eu próprio a apanhar os cacos da loiça até ao último bocadinho. Nem quero saber se os gajos que me detestam, e juram vingança (não sei de quê nem porquê) estão por trás da facada que me deram, que por não me ter morto deixou-me mais forte. 

Ao fundo da rua onde escrevo, ainda estão de pé as paredes de uma antiga taberna e cervejaria que foi onde me fiz homem dos 11 aos 22 anos a trabalhar de borla para o meu pai.

Carreguei muitos milhares de quartões de vinho (e alguns de água)  para as quatro cartolas de quinhentos livros de onde saía o vinho a copo para o balcão.

Registo estas memórias enquanto espero pelo Filipe Barreiras que foi almoçar com o seu pessoal para depois darmos continuidade à limpeza, no dia de fecho desta edição, com o Bernardo e a Joana ao leme, e viagem marcada para os cus de judas, o lugar onde também mergulham nas nuvens outros gajos como eu que já fizeram o seu caminho e, agora, só precisam de não faltarem às consultas e não esquecerem de tomar a medicação. 

Nota: Dedico esta crónica à minha avó Ilda que é uma das mulheres da minha vida e a única a ter a iniciativa de meter cinco contos no meu bolso quando soube que eu tinha resolvido tomar de trespasse a ourivesaria do senhor Silva. A minha família nunca foi grande, mas ter uma avó como ela fez de mim o menino da família mais rica da minha aldeia. Ainda hoje. JAE

quinta-feira, 26 de junho de 2025

A vida na aldeia e o que se dizia nos altares das igrejas

Estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe.


Sou um provinciano assumido embora goste de entrar em palácios e palacetes e até ficar por lá a beber um copo. Depois vou à minha vida, e essas experiências para mim são como ir ao cinema. Se forem boas fica a recordação, se não forem, um dia já estou a ver o filme outra vez de tanto ouvir dizer que é bom. Assim é com os palácios e os palacetes, ou seja, os museus, que visito vezes sem conta embora me dê ao luxo de mal conhecer alguns considerados famosos que são de visita quase semanal de gente muito importante.

Lembrei-me deste privilégio de me sentir um provinciano ao ler três newsletters seguidas que o Expresso me envia por ser subscritor dos temas que os jornalistas tratam semanalmente e que me oferecem de mão beijada. Confesso que com estas leituras resumidas das notícias de Lisboa fico informado o suficiente para não ver televisão e, muito menos, ler os jornais mais do que aquilo que me interessa sobremaneira.

Foi num desses dias em que enchi o papo de informação desportiva e política resumida (do Expresso e do El País) que estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta; parei o carro na rua onde cabem à vontade dois automóveis, e estive ali num bate boca como há muito tempo não experimentava. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe e algum já enlatado há muitas dezenas de anos, tal foi o alcance temporal dos temas que tratámos na cavaqueira.

Como tinha o carro a apanhar uma faixa de rodagem, e estávamos os três a apanhar ainda uma parte da outra, embora encostados à parede,  os carros que passavam para baixo e para cima tinham que abrandar à séria, embora a rua seja daquelas onde apetece acelerar. 

Escusado será dizer que tirando os que acenavam com a mão por serem conhecidos ou vizinhos, os outros faziam má cara por terem que reduzir a velocidade de 80 ou 90 para 30 ou 40 quilómetros por hora. E naquela hora fiquei a saber por uma das vizinhas o que custa sair à porta de casa e levar com um carro a quase a 100 à hora numa rua dentro da vila, onde, de repente, pode saltar uma criança ou um adulto distraído com o saco do lixo na mão.

Habituado a andar mais de carro do que a pé nas ruas da minha aldeia, de vez em quando também com a mania que as ruas foram feitas só à medida dos automóveis e das motos, ouvi cobras e lagartos de condutores que passavam e faziam má cara por causa do incómodo de terem que abrandar a velocidade.

Nem abençoado pela conversa, com duas pessoas com quem não falava há muitos anos, deixei de pensar nas vezes em que eu também, sempre a acelerar para não perder o comboio, noutras ruas e noutras vilas e aldeias, devo ter levado o responso que, naquele fim de tarde, ouvi rezar com todas as letras a pessoas que conduziam os seus automóveis com o semblante de quem levava o rei na barriga.

Cheguei ao fim do texto sem explicar muito bem por que é que comecei por escrever que sou um provinciano assumido. Agora também já não tenho muito espaço para explicar, mas fica aqui o resumo do que não consegui escrever: a vida na aldeia já não é o que era dantes mas, embora não sinta saudades de outros tempos, vale mais uma hora de conversa sobre o que se dizia no altar da igreja há meio século, do que ver e ouvir os novos padres das paróquias a darem missa campal. JAE.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Leila Slimani, Carla Madeira, Arturo Pérez-Reverte, Juan José Millás e a fraqueza de quem tem o poder

O juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. 

Nos últimos dias já visitei mais vezes a Feira do Livro de Lisboa do que nos últimos três anos. A Feira do Livro de Lisboa também é uma feira de vaidades. Os livros baixam de preço até 30% mas a grande maioria já está nos sítios dos alfarrabistas, ou numa qualquer feira, a menos de 50% do custo inicial. A questão aqui é a Feira, o espaço, o convívio, o livro que é pretexto para ir dar uma volta, comer uma fartura, beber um café, marcar um encontro, e encontrar acima de tudo. A Feira é um grande negócio para quem a organiza e uma forma de os grandes grupos editoriais fazerem a promoção das suas marcas. As vendas devem ter muito pouca importância, a levar em conta que o mesmo título do mesmo autor muitas vezes enche uma estante inteira. E os pavilhões são pequenos. E cada um custa quase dois mil euros. Por isso há grupos editoriais que alugam dezenas deles para mostrarem importância e grandeza. E há editores que deixam lá as suas barbas porque nem devem ganhar para o que comem.

Este ano encontrei logo nos primeiros dias duas escritoras excepcionais de quem gostava de ser amigo. Carla Madeira e Leila Slimani: cada uma delas, separadas por meia dúzia de anos, escreveram dois romances eróticos como não conheço muitos, que deixam os textos de Henry Miller ou de Casanova a milhas de distância. Durante o tempo em que estive a observar as sessões de autógrafos, posso garantir que 80% dos leitores eram mulheres. "O Jardim do Ogre", da Leila Slimani, contra a história de uma mulher ninfomaníaca e o "Tudo é Rio", da Carla Madeira, conta a história de uma prostituta envolvida num triângulo amoroso. Mas estes dois títulos são, nos dois casos, apenas o início de carreira de duas grandes escritoras com livros que já venderam mais de um milhão de exemplares.

Conversei cinco minutos com Carla Madeira, que já é uma senhora de 60 anos, mas a minha conversa com Leila Slimani continua adiada. Leila Slimani não tem mãos a medir apesar dos seus 43 anos; se há alguém na literatura que nesta altura tem estatuto de vedeta é ela. Acaba de publicar o último livro de uma trilogia que conta a saga da sua família, mas antes destes três romances mais autobiográficos tem outros títulos que os seus futuros leitores têm que desbravar para se apaixonarem primeiro pelos seus primeiros quatro livros, entre eles Canção Doce, que é um romance de uma crueza incomum, que só pode ser contado por a sua autora ser genial e certamente a melhor discípula de Tahar Ben Jelloun.


Não me canso de citar Fernando Pessoa que escreveu que a literatura existe porque a vida não chega. No dia em que escrevo este texto encontrei uma entrevista com Juan José Millás que, a certa altura, conta que leu no jornal que “o juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. Ou seja, a menos que esteja meio metro mais alto do que a pessoa interrogada. É assustador, mas exemplifica muito bem o que está a acontecer. Em outras palavras, um juiz vir interrogar uma testemunha, a um lugar, e pedir uma tribuna, porque senão ele não sabe interrogar... é um ponto de vista esclerosado; para ele, esse olhar de cima para baixo é o olhar do poder. E ele, para interrogar uma testemunha, tem que se sentir mais poderoso”. A citação está fora do contexto da entrevista mas vive bem sem ela. E resolvi aproveitá-la para introduzir aquilo que se passou com um amigo a quem dava trabalho para o ajudar a ganhar a vida. Numa das muitas vezes que entrei na sua empresa, certo dia mandou-me sentar num sofá no seu escritório para me fazer as queixinhas do costume. Só que desta vez acrescentou uma conversa incomum: perguntou-me se eu tinha dado pelo facto de estar sentado num sofá que me obrigava a olhar para ele de queixo levantado, de baixo para cima. Lembro-me de ter sorrido e ficado calado.  Então ele explicou-me que estava farto de ser usado, que estava a obrigar todas as pessoas que iam à sua empresa a olharem para ele com a bola baixa, não aguentava mais tanta desfaçatez. Não é nada contigo, afirmou, mas queria que soubesses, explicou, como explicava muitas vezes o que lhe ia acontecendo na vida de menos bom, e que eu ouvia devolvendo algumas palavras de circunstância mas também de conforto. Esta história é antiga e desde essa altura que praticamente deixei de ver a criatura. Deixei de lhe dar trabalho e ele deixou de me aparecer pela frente. Há pessoas que só existem na nossa vida porque nós somos condescendentes, vamos beber todos os dias à nascente do rio e depois durante o caminho paramos para dar um pouco de água a quem não sabe que os grandes rios começam de uma pequena nascente e vão desaguar num grande estuário que, regra geral, é o mar.

Na mesma revista online (Zenda) onde li a entrevista com Juan José Millás pode ler-se uma crónica de Arturo Pérez-Reverte que se intitula “No dia em que me tornei nazista”, em que ele explica como conseguiu entrevistar um nazista a quem Franco deu nacionalidade espanhola e que estava escondido em S. Sebastian. Arturo Pérez-Reverte é outra grande figura da literatura e do jornalismo que me impele a meter a cabeça nos livros diariamente e a aprender a gostar de viver sempre com um livro debaixo do braço ou a sonhar que viajo nas histórias que vou lendo. JAE.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um Ribatejano encantado com a vida no Minho

Crónica sobre a arte de ser feliz a caminhar, e descobrir o país a norte, onde as tradições nos remetem para os tempos dos nossos avós.

Se quero saber quantos anos Portugal está atrasado em relação aos países mais desenvolvidos do mundo, viajo para Itália. E não é nem de longe nem de perto o melhor exemplo, mas é aquele que eu encontro com mais facilidade juntando o útil ao agradável. Depois Itália teve, e ainda tem, uma organização cujo nome (Máfia) já entrou no dicionário de todas as línguas do mundo e que, com o tempo, acabou por chegar a Portugal, coisa que facilmente se comprova, embora o pior ainda esteja para vir (e todos seremos vítimas. E não haverá inocentes… nem pintados de azul).

Se quero saber como Portugal e os portugueses são diferentes nas várias regiões, subo ao Norte e fico por lá dois ou três dias e vejo como o povo português do sul e da grande Lisboa, onde vive quase um terço da população, é tão diferente do povo do norte como os brasileiros são diferentes dos ucranianos.

No primeiro domingo do mês de Junho caminhei todo o dia pelas margens e leito do rio Caldo, em plena Serra do Gerês, e tive a sorte de seguir na estrada, e depois pelo meio do mato, a “Subida da Vezeira”, tradição que se explica em poucas palavras: no início do Verão, o gado bovino é conduzido para os baldios, onde permanece durante a época de pastagens mais abundantes. A vezeira é acompanhada pelos vezeireiros, que cuidam do gado e das suas necessidades na vezeira.

Quem não sabe um boi desta vida em comunidade admira-se, primeiro por ver como animais com 500 quilos conseguem subir aqueles terrenos montanhosos e cheios de mato, e, depois, como ainda há pessoas que mantêm a tradição de criar animais quando, economicamente, a grande maioria só tem prejuízo, embora tire partido do prazer e do prestígio local de ajudar a manter as tradições, contribuindo ainda para a preservação do património cultural imaterial e para a valorização do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Como o caminho que fiz ao longo do dia me levou para várias freguesias da Serra do Gerês, tive oportunidade de conhecer outros vezeireiros de outras vezeiras, e de ouvir contar como se organizam, como se defendem no Inverno, e de que forma se organizam para deixarem o gado no pasto e poderem ir à sua vida, que, ali, toda a gente vive de vários ofícios.

Apesar da conversa viva e culta sobre os costumes das gentes daquelas aldeias, foram dois adolescentes, que acompanhavam os pais, que me explicaram como funcionam e se organizam os vezeireiros, a cor de cada um dos animais, as suas origens, enfim, um tratado que só se escreve, edita e estuda na universidade da vida.

O rio que percorremos ao longo de sete quilómetros, durante uma boa parte do dia, tem as piscinas mais belas do mundo, digo eu, que, embora já tenha viajado muito, só conheço meia dúzia de metros quadrados de paraíso, pelas minhas contas uma parte ínfima do que deve ser o tamanho do olimpo.

A Gabel Oliveira, que é a guia do grupo e viajante profissional, foi quem me fez voltar a caminhar por carreiros de pastores, a saltar de pedra em pedra, e a deixar, por enquanto, o grupo do meu amigo Carlos Cupeto, que, não sendo viajante profissional, é um dos maiores dinamizadores culturais que já conheci, com uma actividade em várias áreas que vão desde a caminhada à tertúlia, entre muitas outras. Há muitos anos que o acompanho, mas ultimamente não tenho marcado o ponto. JAE.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O dia de Quinta-feira de Ascensão ainda é como era dantes

A Quinta-feira de Ascensão marca os feriados municipais em 12 concelhos da região, mas só a Chamusca e Alenquer fazem da data um dia festivo. Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Salvaterra de Magos, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira comemoram a data mas apenas como celebração e consagração da Primavera.

Vivemos tempos de Ascensão que, curiosamente, incluem um dia em que é feriado em 12 concelhos da região (Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Chamusca, Salvaterra, Arruda dos Vinhos, Alenquer e Vila Franca de Xira). Só a Chamusca e Alenquer festejam o dia de Quinta-feira de Ascensão, ou Dia da Espiga, como também é conhecido, por ser o dia em que se comemora a consagração da Primavera. Apesar do feriado estar enraizado nas tradições locais, o dia feriado não é dia de festa a não ser na Chamusca e Alenquer. Em Maio de 2013 O MIRANTE publicou um texto, no seguimento de uma conversa com a maioria dos autarcas, onde o feriado é assumido apenas como dia de descanso, e todos concordaram que era assim que ia ficar, já que há outras datas para organizar festas locais. Aceito, mas não concordo. O dia do concelho devia ser festejado com iniciativas que dessem dignidade à data. Embora conceda que não sou um farol de exemplos, acho que os feriados municipais deviam ser mais valorizados. De verdade nunca festejo ou festejei o meu dia de aniversário, e quando os outros festejam a passagem do ano, ou outras datas importantes do nosso calendário, eu fico em casa a ver um filme ou a ler um livro. Mas uma coisa são os gostos pessoais, outra é a vida em comunidade.

Nos últimos anos, com a experiência da vida, só compareço a algumas iniciativas quando me apetece. Faço a gestão da minha agenda de forma a não desaparecer do mapa, mas também a não me obrigar a ser escravo do trabalho, de obrigações morais, gostos bairristas, entre outros.

Escrevo depois de ter decidido que este ano a Quinta-feira de Ascensão será um bom pretexto para uma manhã no campo a apanhar as laranjas doces que ainda restam nas laranjeiras, molhar os pés no rio, caminhar na areia durante meia hora e depois regressar a casa por caminhos da charneca, tentando olhar para o lado as vezes suficientes para não me esquecer que a paisagem mudou muito nos últimos anos, assim como mudámos muitos de nós que já não têm cu para as bebedeiras, as noitadas de picarias, os convívios pela noite fora para fortalecer amizades e reforçar o círculo de amigos.

Ainda num tempo e numa idade em que me apetece escrever/falar da sobrevivência da alma, importa lembrar que “a imortalidade não se queda apenas nas pessoas que deixam rastro luminoso da sua existência, pois também se junta ao património mental que deixam para a posteridade”. Roubei estas palavras a um livro onde o Historiador Joaquim Veríssimo Serrão escreve e deixa a sua marca, um livro que fala de homenagens, mas também serve de testemunho, para não esquecermos que somos “animais de trabalho”, mas também Homens com sentimentos, alegrias e dores que vão transformando a nossa maneira de ver e viver o mundo em que estamos mergulhados de corpo e alma.

Do livro de onde retirei esta frase está uma citação que não resisto a deixar aqui: “os homens de letras necessitam de 10 palavras para dizer o mesmo que um jurista faz em 5 páginas”. A citação justifica-se porque quero aproveitar o tempo de Ascensão para voltar a deixar aqui mais uma memória sobre o centenário do nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão, que se comemora a 8 de Julho, e a que voltaremos mais vezes, aqui nesta coluna ou nas páginas do corpo deste jornal. JAE.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Joaquim Veríssimo Serrão: um homem comprometido com políticas de direita mas com um coração de esquerda

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.

Não posso dizer que fui amigo de Joaquim Veríssimo Serrão mas fui quase. Só o facto de a História não ser uma das disciplinas que mais cultivo não fizeram maior a nossa convivência e amizade. Joaquim Veríssimo Serrão fazia amigos com facilidade e era visceralmente um homem que gostava de ser útil aos outros. Conhecia todas as regras de um diplomata, cavalheiro e bom samaritano, não por ser um genial Historiador e Professor, mas por ser, acima de tudo, uma pessoa boa. 

O centenário do seu nascimento, que se comemora a 8 de Julho, vai ser aparentemente assinalado com a prata da casa, o que será muito pouco para o que ele merece e Santarém lhe deve. A já anunciada cerimónia incluiu gente bem intencionada, nada nos faz duvidar disso, mas é só mais uma iniciativa à boa maneira local:  convidam-se os professores doutores do costume, assim como os doutourandos, e está garantido o sucesso da iniciativa. Santarém tem lepra quando é preciso mostrar grandeza e orgulho. Parece que o 25 de Abril não mudou mentalidades em certos sectores da sociedade. Não escrevo mais sobre este problema escalabitano, que tem raízes noutros concelhos, porque seria bater no ceguinho se trouxesse aqui o que penso da instituição que foi fundada para valorizar o trabalho de Joaquim Veríssimo Serrão, o seu nome e a sua obra.

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.  

Num país culto e politicamente evoluído, que não o nosso, aprisionado por interesses inconfessáveis daqueles que continuam a governar sem cultura democrática, os livros que cito neste texto  eram de leitura obrigatória nas universidades e em todos os fóruns onde se discute o futuro do mundo e dos homens, a injustiça e a solidariedade entre os povos.

O livro "Correspondência com Marcelo Caetano 1974-1980", tem uma história que merece outro livro. Algumas cartas antes de serem entregues ao remetente foram lidas num acto de censura que não se justificava no período que já se tinha vivido em democracia e, segundo sabemos, algumas dessas cartas ficaram inéditas. Escrevo de cor, do que ouvi a pessoas amigas, não tenho qualquer relação com a família ou com o Centro de Investigação com o seu nome, embora receba com regularidade os convites para as sessões, mas não preciso de ajuda para considerar este livro de republicação obrigatória no centenário do seu autor, ainda por cima numa altura em que a revolução de Abril já completou meio século. Sim, o livro é sobre amizade, confiança, solidariedade e revolução, e sobre censura e falta de respeito pelos valores e direitos humanos que nenhum 25 de Abril consegue implantar definitivamente para todas as pessoas, sem excepção, ontem como hoje.

Compreendo os que ainda têm medo de se colarem à memória do ilustre Historiador, principalmente pelo que ele escreveu em “Confissões no Exílio”. O que lá está escrito ninguém poderá ignorar, sequer rasgar, de forma a fazer desaparecer as opiniões do autor sobre Salazar e Marcelo Caetano.  Nada disso envergonha ou deve limitar a palavra ou a admiração pelo Homem, o Historiador e o escalabitano ferrenho. Joaquim Veríssimo Serrão era um homem assumidamente de direita, devido às suas amizades e à fidelidade canina que gostava de exibir, muitas vezes até de forma exagerada. De coração era um esquerdista. Quem conseguisse chegar à fala com ele podia contar com o que precisasse se estivesse ao seu alcance. 

Temo que as novas gerações não venham a conhecer, principalmente nas escolas e universidades, um homem brilhante, que dedicou toda a sua vida a escrever a História de Portugal e a lutar pelos seus ideais, pelos seus amigos e pelo seu país, na grande maioria das vezes escrevendo para dar testemunho.

Santarém não pode confiar a Obra e a memória de Joaquim Veríssimo Serrão só a quem se sente herdeiro do seu legado. A sua herança ainda incomoda e condiciona muita gente que ficou presa ao passado recente. Por isso é preciso ver mais longe, sentir mais de perto, julgar sem sentenciar, homenagear sem sentimentalismos bacocos. 

Santarém já não é só "um livro de pedra" como lhe chamou Almeida Garret. Santarém de hoje é, também, uma pedra no sapato de muita gente que tenta varrer a importância da cidade e das suas gentes para os buracos das muralhas milenares. Joaquim Veríssimo Serrão não ganhou o prémio Nobel como José Saramago, mas estão os dois por aí, mais perto ou mais longe, a contribuírem para que a História se vá  reescrevendo, e a darem o exemplo que não pode nem deve ser desperdiçado pelas novas gerações; também porque é cada vez mais raro encontrar gente com coluna vertebral, que não se verga a interesses mesquinhos, que não vive de joelhos nem renega os seus ideais por mais que isso lhe custe os olhos da cara. JAE.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um elogio ao ministro Pedro Duarte e uma boa razão para dormir na casa do cão

O governo caiu a menos de um ano de trabalho mas o ministro Pedro Duarte não deixou de cumprir o prometido à imprensa regional. Pelo menos 200 dos cerca de 308 concelhos de Portugal não têm uma livraria. Não faltará muito tempo para que também não tenham uma papelaria ou um local ou se vendam jornais.

O governo de Luís Montenegro caiu mas vai ficar na memória de muitos empresários e jornalistas que trabalham na imprensa local e regional. O ministro Pedro Duarte cumpriu uma das suas promessas de ajudar a imprensa local e regional, e corrigiu um erro crasso de um antigo governante do Partido Socialista, que há mais de duas dezenas de anos mandou cortar ao meio no incentivo à leitura com a mesma facilidade com que bebia água quando tinha sede. Já nessa altura Portugal era dos poucos países da Europa que não tinha  políticas públicas de avaliação como havia na maioria dos países desenvolvidos. Mais de vinte anos passados nada mudou de substancial ao nível dessas avaliações, mas o ministro da tutela não saiu sem cumprir a promessa de ajudar a imprensa regional e local, e aumentou a comparticipação do Estado para 85% do valor total pago aos CTT. 

Na última década fecharam mais de metade dos jornais que se editavam em Portugal. Pelo menos 200 dos cerca de 308 concelhos de Portugal não têm uma livraria. Não faltará muito tempo para que também não tenham uma papelaria ou um local ou se vendam jornais. O cerco aperta-se para a comunicação social de proximidade, e as empresas mais fracas, antes de começarem a poupar na tiragem, começam a trabalhar sem jornalistas que assegurem uma informação independente e de qualidade, limitando-se a republicarem textos sem qualquer validade para a cultura local, a grande maioria textos de opinião e de informação institucional.

O Congresso Mundial de Jornalistas atribuiu no passado dia 4 de Maio a Caneta de Ouro da Liberdade à Associação de Editores de Imprensa Regional da Ucrânia. Oleksii Pogorelov, presidente da Associação de Negócios de Mídia da Ucrânia, ressaltou na hora dos agradecimentos a motivação que inspira a imprensa independente a continuar seu trabalho. “Na Ucrânia, o jornalismo não é apenas uma profissão. É uma forma de sobreviver, uma forma de preservar a memória e uma forma de resistir”, disse, acrescentando que, “quando os jornalistas se calam, os ocupantes falam em seu lugar. Não escrevemos porque somos corajosos. Escrevemos porque o silêncio não é uma opção. O jornalismo independente não é um luxo, é a infraestrutura da liberdade”.

Escrevo esta crónica a poucos dias das eleições e depois de ter visto na televisão, em diferido,  o debate entre os dois principais candidatos dos dois partidos mais representativos da democracia portuguesa. Juntei-me aos cerca de quase três milhões de portugueses que assistiram à contenda em directo e na hora da briga. Não sinto o orgulho de outros tempos por se aproximar a hora de votar mais uma vez. E não sinto qualquer remorso por me recusar a ver os debates organizados pelas televisões que, desde há muitos anos, se transformaram num lavar de roupa suja que nos deixa nervosos e sem sono, sabendo que o que está em causa para o nosso futuro nunca será discutido nem conversado de forma a que tenhamos esperança num pacto de regime para as políticas da saúde da educação, da justiça, dos transportes e da habitação; o objectivo principal parece o mesmo dos tempos do PREC (Plano Revolucionário em Curso) em que as palavras de ordem eram dividir para reinar.

Por último: há quase quarenta anos que em certos dias acordo a meio da noite para corrigir uma frase, ou apenas uma palavra, de um texto que no outro dia vai sair em letra de forma, no meio de uma notícia ou de uma reportagem, depois do jornal chegar à máquina de impressão. As palavras são traiçoeiras e às vezes escrevemos barbaridades pensando que estamos a escrever um texto inspirado em Fernão Mendes Pinto ou Gabriel Garcia Marquez. Ainda hoje é assim, embora sinta menos o peso da responsabilidade. O JL (Jornal de Letras) saiu um dia destes para as bancas com um número dedicado a Camilo Castelo Branco publicando na capa, a toda a largura e altura, a foto (uma famosa pintura de João Abel Manta) de Eça de Queirós. Juro que, se um dia for responsável por um erro destes, vou dormir no quintal, na casa do cão, no mínimo durante um ano. E conto isto só para dizer que em quase quarenta anos nunca uma capa de O MIRANTE foi para a máquina de  impressão sem que eu lhe tivesse posto os olhos em cima. JAE.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O 25 de Abril e o apagão

O PCP deixou de ser no Ribatejo um partido mobilizador, os homens que lhe davam força foram morrendo no verdadeiro sentido da palavra, e outros foram morrendo para a ideia de que ainda podemos acreditar nos amanhãs que cantam.


A democracia portuguesa perdeu qualidades, 51 anos depois do 25 de Abril de 1974. O povo que saiu à rua já não é o mesmo que hoje vai ao arraial, embora a luta por um mundo melhor continue a ser uma boa razão para desfilar, ou simplesmente sair à rua, com o cravo vermelho ao peito.

Ouvi algumas comunicações/discursos sobre o 25 de Abril e corei de vergonha. Discursos pobres, sem conteúdos, a fugirem à realidade nua e crua, autarcas acomodados que, para não se incomodarem, escreveram e leram textos merdosos para tentarem escapar entre os pingos da chuva. Mas houve excepções, e desta vez Rio Maior foi a maior de todas, assim como a de Constância que aproveitou para recordar, pelos nomes próprios, os militares do concelho que morreram na guerra. Deixo mais informações para quem gosta de explorar a internet e as gravações das assembleias municipais onde alguns políticos locais fizeram figuras de bichos do mato com gravata.

Desde Abril de 1974 que conheço e tenho relação de amizade/proximidade com um homem que foi membro do Comité Central do PCP, deputado na Assembleia da República, dirigente e militante fervoroso. Nos últimos 30 anos comecei a vê-lo chegar do campo ao fim do dia com o seu tractor e no seu fato de trabalho. Para ele o dia 25 de Abril começou a ser comemorado no meio da Lezíria, onde ainda hoje ganha a vida todos os dias. Nos primeiros anos ficava indignado. Pensava cá com os meus botões: como é que alguém perde as suas convicções ao ponto de ir trabalhar todo o dia na data em que se comemora uma das revoluções mais bonitas que aconteceram no mundo, em que caiu uma ditadura quase sem um pingo de sangue. E ainda por cima foi um dos que mais saiu à rua e discursou das varandas.

Nunca lhe falei do assunto. Às vezes encontrava-o e falávamos de política, mas ele nunca disse mais do que aquilo que eu já sabia. Habituei-me, depois, a ver outros camaradas a fazerem exactamente o mesmo: a aproveitarem o feriado para trabalharem nas suas propriedades. O PCP deixou de ser no Ribatejo um partido mobilizador, os homens que lhe davam força foram morrendo no verdadeiro sentido da palavra, e outros foram morrendo para a ideia de que ainda podemos acreditar nos amanhãs que cantam. Hoje sou eu que escolho todos os feriados, incluindo o do dia 25 de Abril, para sujar as botas de terra do campo e cuidar da meia dúzia de árvores de fruto que vou partilhando com os pássaros. Vou ficando ligado às comemorações porque tenho essa obrigação, mas fico triste por ver como alguns autarcas maltratam a data, esquecendo que têm 50 anos de memórias para poderem trabalhar na data festiva, e um mundo virado do avesso como não tínhamos há 50 anos.

Meio século depois do 25 de Abril, e já que a regionalização está a ser feita de cu para o ar, paulatinamente, os municípios podiam aproveitar para realizar acções conjuntas de sensibilização das populações para minorarem os bairrismos doentios, as fronteiras que ainda existem entre vilas, aldeias e lugares, como se vivêssemos ainda numa monarquia.


O apagão do dia 28 de Abril foi uma espécie de revolução. Em algumas terras do Ribatejo parecia um dia feriado com a particularidade de haver mais gente na rua e nos parques, muito mais que aos domingos. Em Lisboa foi o caos. Mas só visto. Do aeroporto ao Martim Moniz havia centenas de pessoas a puxarem pelas malas a caminho dos hóteis onde iam dormir. E na cidade como nas vilas e aldeias muita gente de garrafões e sacos de comida preparavam-se para o pior que, felizmente, não aconteceu. JAE.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Papa Francisco e Jorge O Mourão

Esta crónica dormia num computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. É dedicada ao cineasta Jorge O Mourão a quem fiquei a dever uma homenagem em vida. Esta crónica, sem o uso de aspas aspas, é uma forma de homenagear um homem que nunca ficou em casa a dar comida aos pombos; tal como o Papa Francisco que resolveu aceitar ser Papa para tentar acabar com o fanatismo no seio da Igreja.

Esta crónica começa com uma mensagem de voz no telemóvel. “Ok Joaquim estou a caminho do boteco na rua Francisco Serrador. O boteco chama-se “Escadinhas” por razões óbvias. Te espero”. 

Jorge O Mourão é um cineasta de 78 anos com cerca de meia centena de curtas e documentários que fazem parte da história do cinema brasileiro.  O privilégio de nos conhecermos deveu-se ao encontro no Bairro da Glória, a um sábado, à hora do almoço, em dia de feira de rua, num encontro que durou até ao cair da tarde, quando os corpos quase nus começaram a desaparecer na paisagem, e o Carnaval já estava na rua. Dia 5 de Fevereiro de 2024.

 O poeta Alexei Bueno pediu a meio do convívio para ser fotografado, de charuto ao canto da boca, ao lado daquele que para ele é o Godard brasileiro. O Mourão estava na nossa companhia graças ao André Seffrin, que o conhece desde que chegou ao Rio de Janeiro há quarenta anos. O Mourão era amigo do Walmir Ayala, jornalista, crítico de artes e escritor, com quem André Seffrin trabalhou, e que ficou para sempre ligado à sua vida.

O reencontro, dois dias depois, foi para receber um livrinho da autoria do cineasta que é um marco na sua vida. O livro deixa testemunho da vida de um artista que tem seis filhos de cinco mulheres, que sempre perseguiu um objectivo de vida que era ter um filho de 10 em 10 anos e fazer um filme de 5 em 5. Ficou por cumprir na íntegra porque, um dia, em Trancoso, apareceu-lhe pela frente uma alemã, “que parecia um anjo, branquinha como a neve”. Ao chegar perto dele desatou o cabelo e quase voou atrás dele ao abanar o pescoço, para que o cabelo caísse até quase à sua bunda. “O namorado estava com ela, mas era um hippie em início de vida”. Facilmente o cineasta percebeu que ia dormir pela primeira vez com um anjo. E dormiu. E tudo acabou em poucos dias. Um ano depois a alemã voltou a Trancoso e trazia uma criança nos braços. Hoje esse filho do Jorge tem 32 anos, e ele foi conhecê-lo há pouco tempo, em território alemão, e só não morreu lá quase por milagre.

Jorge O Mourão foi recentemente tema de capa do jornal “Folha de S. Paulo”, que lhe dedicou três páginas no caderno de cultura. Está lá contada uma boa parte da história de vida do autor que fugiu da ditadura brasileira para Nova Iorque, e fez-se traficante de cocaína para sobreviver. Conviveu com os grandes vultos da cultura americana dessa época, e disso dá conta no seu livro. Miles Davis pediu-lhe para ele “comer” a sua mulher; o músico John Lennon e o poeta Allen Ginsberg, entre outros famosos da altura, assinaram petições que o Jorge organizava para combater a ditadura brasileira. 

Na conversa na esplanada da rua Francisco Serrador, Jorge O Mourão explicou a presença no Rio de Janeiro do seu filho caçula, que está a ajudá-lo a organizar milhares de papéis, fotos e outras memórias de uma longa vida de activismo ligado ao cinema, ao jornalismo, à literatura, à política e à representação.

“Sempre fui um fazedor compulsivo, mas não um organizador. O meu grande sonho era voltar a Vale de Remígio, terra do meu avô, e morrer por lá a beber vinho do Porto e a comer queijo Serra da Estrela. Ainda tenho esse sonho. Quando fui ao Algarve fazer um filme fiquei uns dias numa pensão em Lisboa. A moça portuguesa que me acompanhava queria que eu dissesse quando voltava para o Brasil. Respondi-lhe que toda a minha vida viajei sem bilhete de volta. Nunca marquei datas de regresso. O importante é partir, voltar é sempre quando dá jeito ou chegamos ao fim de um caminho”. Conseguir a dupla nacionalidade é outro dos seus objectivos.  “Mas eu tenho um problema cujas iniciais são parecidas com um problema que afecta as mulheres todos os meses: Sofro de DPM, ou seja, tenho a doença da dispersão, preguiça e modéstia”. “Há quatro anos um moço australiano andou à minha procura no Rio de Janeiro. Acabou por me encontrar e fui convidado para ir a Nova Iorque para uma mostra de cinema internacional. Estive lá e fui recebido como uma vedeta. Foi nessa altura que ia morrendo quando aproveitei para viajar para a Alemanha e conhecer o meu filho”.

O espaço não chega para continuar a citar mais frases do Jorge e algumas partes do trabalho editorial da Folha de S. Paulo. Quem estiver a ler este texto não julgue que a conversa foi só ao ritmo de novela. Nos dois encontros, o cheiro a churrasco no bairro da Glória, e o cheiro a bafio da rua Francisco Serrador, podiam ser matéria importante para um romance ou uma biografia de O Mourão. O autor deste texto estava de férias e perdeu a oportunidade de meter o nariz no anexo alugado onde Jorge O Mourão guarda o seu espólio.

Este texto dormia no computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. Jorge O Mourão também morreu, entretanto, e os seus 60 filmes ficaram para contar a história de um artista subversivo, que conheci já em final de vida, e que recordo como um Papa Francisco, com uma voz doce, um desejo imenso de me ouvir falar da região de Trás os Montes, de Lisboa, das raízes portuguesas que pareciam sair do seu peito cabeludo e do seu corpo magro, mas ainda cheio de energia. Abençoado Papa Francisco, abençoado cineasta Jorge O Mourão. JAE.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O bullying no jornalismo

Quem conhece um pouco da história deste meio século de liberdade tem na vida dos jornais, das revistas e das televisões, mas principalmente nos jornais, um retrato do país. E não é nada de que nos possamos orgulhar. Isto está mau para a liberdade de imprensa, qualquer bardamerda que acha que os jornalistas têm as costas largas vai apresentar uma queixa por difamação. De verdade, o que eles querem é condicionar, meter medo, chatear, roubar tempo, obrigar o jornalista a perder a paciência, a pensar se não é melhor mudar de ofício.


Guardo da minha infância um recado dos mais velhos, que começava na voz autoritária do meu pai e acabava nos conselhos que nem sempre procurava dos homens mais velhos com quem aprendi a viver: “Não te queixes rapaz, se não puderes arreia, mas não te queixes que se tiveres que arrear vai custar-te o dobro”.

Às vezes olho por mim abaixo e pergunto-me como cheguei até aqui, como é que fiz todo este caminho e nem dei pelos anos passarem. Lembro-me de ser um rapaz soberbo, convencido que quando se tem vinte anos de idade a eternidade está assegurada. Hoje estou quase no fim da linha e nem acredito. Só sei que continuo a ser o rapaz de antigamente porque continuo a ser incapaz de me queixar que não seja ao médico. E mesmo nas consultas esqueço-me sempre de algo importante. Falo com os médicos do Sporting, do trabalho, dos livros, das viagens, e só quando chego à rua é que me lembro que deixei a consulta a meio.

Já fui a tribunal uma centena de vezes e tenho aprendido a lidar com a Justiça sem me queixar. Fui constituído arguido centenas de vezes sempre sem medo de ser condenado. Confesso que perdi o conto às vezes em que fui à PSP e ao Procurador do Tribunal prestar declarações. Um dos advogados que actualmente me assiste disse-me recentemente, numa conversa de preparação de um julgamento, que eu tenho a mania que qualquer dia também aprendo a fazer a revisão do meu carro. Disse-lhe que tinha ido prestar declarações numa acusação com mais de trinta páginas e ele, com a mão na cara, foi perguntando, “e falou?”, e eu disse que sim, e ele ainda tapou mais o rosto e gozou comigo por eu ter a mania da facilitar e pensar que a verdade é como o azeite.

É claro que ainda não é hoje que me vou queixar, mas isto está mau para a liberdade de imprensa, qualquer bardamerda que acha que os jornalistas têm as costas largas vai apresentar uma queixa por difamação. De verdade, o que eles querem é condicionar, meter medo, chatear, roubar tempo, obrigar o jornalista a perder a paciência, a pensar se não é melhor mudar de ofício, ou a fazer como muitos falsos jornalistas que vêm para a profissão para um dia chegarem a assessores de imprensa e ficarem perto dos gajos que são donos disto tudo. Quem conhece um pouco da história deste meio século de liberdade tem na vida dos jornais, das revistas e das televisões, mas principalmente nos jornais, um retrato do país. E não é nada de que nos possamos orgulhar. E em muitos casos até nos devia envergonhar. Mas o saldo é positivo, continua a ser a favor da classe. O problema desta vida é que há pessoas que nunca estão satisfeitas com o seu trabalho, sobretudo os jornalistas, talvez a profissão mais bela do mundo mas igualmente a mais ingrata e trabalhosa.

Muita gente sabe o que é o bullying nas escolas, na vida dos adolescentes, mas poucos conhecem o termo na profissão de jornalista. Lido com o problema há muitos anos e por variadas razões , todas relacionadas com pessoas que se sentem poderosas, que engoliram o globo terrestre e que acham que o dinheiro e as influências os ajudam a falar e a pensar. Nunca me queixei, ou me senti vítima, sempre encarei o bullying como uma consequência do meu trabalho, hoje mais do meu dever do que do meu trabalho. Mas denunciar estas práticas, que são criminosas, é o dever de qualquer jornalista que sabe que tem leitores interessados no seu trabalho.

Esta semana passei pelas caixas automáticas dos supermercados Continente para me despachar mais rapidamente. E não consegui a factura dos dois artigos. Fiquei danado. Na loja logo ao lado (estava num centro comercial) ouvi esta conversa que parecia ser para mim: “não uses aquelas caixas; estás a contribuir para quem quer diminuir postos de trabalho”. Sem qualquer justificação lembrei-me que esta semana a Benedita, que só tem 9 meses, andava pelo chão da redacção do jornal, enquanto a mãe e o pai não iam para casa. Quando escrevo, no início do texto, sobre os tempos em que pensava que era eterno, não sabia que a eternidade se conquistava deixando o que temos aos nossos filhos e netos para eles continuarem o nosso legado. Mas nada disto se diz, escreve e pensa, sem um certo receio: esta vida de jornalista e editor é a melhor herança que se pode deixar aos filhos e aos netos? Acredito que sim. E acredito convencido que eles vão ser bem melhores do que eu fui, no trabalho e na gestão, e muito mais inteligentes para não trabalharem tanto e até tão tarde na vida. JAE.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Ordens profissionais estão sempre a ver as pilinhas uns dos outros e assim o SNS não passa da cepa torta

As ordens profissionais estão sempre a ver as pilinhas uns dos outros; de reunião em reunião parece que isto vai, mas depois nunca vai. Nestes últimos tempos os serviços de obstetrícia não funcionam regularmente porque não há médicos, mas os serviços estão cheios de enfermeiros e enfermeiras de braços cruzados sem trabalho. Como a classe não trabalha sem médicos, então não trabalha ninguém.

A idade de um colunista de imprensa tem muito a ver com o seu estilo. Regra geral os velhos jornalistas são mais amargos a escreverem, enquanto os mais novos trazem para o debate questões mais leves, divertidas e muitas vezes felizes. Faço sempre este exercício quando escrevo, e tento moderar-me para não contribuir para o azedume que estraga grande parte dos nossos dias, mesmo antes de chegarmos a casa e vermos os noticiários miseráveis que as televisões nos oferecem.

Num dos últimos fins-de-semana fui fazer um retiro de yoga onde pratiquei pela primeira vez na água. Mais uma vez era um homem entre mulheres. Nada que não me tenha já acontecido noutros retiros, e noutros cursos que frequento com regularidade. Desta vez encontrei uma enfermeira que trabalha com grávidas e faz parte de um grupo de profissionais que defendem com unhas e dentes o parto na água. Claro que a grande maioria dos hospitais não têm condições para a prática do parto na água, e mesmo quando têm os médicos torcem o nariz porque dá mais trabalho e exige mais tempo. Mas as histórias que ouvi ao longo de dois dias são de arrepiar numa área da saúde que deveria ser a primeira em qualquer hospital do mundo.

Como todos sabemos os serviços de obstetrícia da grande maioria dos hospitais do país estão em grandes dificuldades, sem urgências ao fim-de-semana, sem médicos durante muitos dias, num caos que certamente está a fazer aumentar a mortalidade infantil e o sofrimento às mulheres que, quase sem excepção, quando estão grávidas vivem momentos de grande angústia, não só com as dores mas, acima de tudo, com medo de perderem os filhos ou de nascerem com problemas de saúde.

O que mais ouvi, e me deixou perplexo, foi a frase chave que a enfermeira costuma transmitir às grávidas a quem reconhece capacidade de gerir o seu estado físico e espiritual: “do outro lado não está o inimigo, mas tu mulher tens que fazer o teu trabalho, não te podes entregar e calar a tudo o que te dizem e mandam fazer, se não fizeres a tua parte vai correr mal, tens que saber quais são os teus direitos”. Resumindo, para não estar aqui a escrever o óbvio e a bater no ceguinho, voltando a citar a enfermeira Inês: “as ordens profissionais estão sempre a ver as pilinhas uns dos outros; de reunião em reunião parece que isto vai, mas depois nunca vai”. Nestes últimos tempos os serviços de obstetrícia não funcionam regularmente porque não há médicos, mas os serviços estão cheios de enfermeiros e enfermeiras de braços cruzados sem trabalho. Como a classe não trabalha sem médicos, então não trabalha ninguém. E se chegar uma grávida à urgência que não conseguiu marcar a sua consulta, mesmo que vá a gritar com dores, vai ter que voltar pelo mesmo caminho de onde veio. Concluindo: a maternidade e o apoio à maternidade, que devia ser um trabalho único no Serviço Nacional de Saúde, é uma desgraça ao nível daquilo que se passa em qualquer pocilga ou estalagem no meio do nada, onde os políticos que nos governam facturam à fartazana, para depois receberem os dividendos em envelopes ou das contas bancárias dos seus testas de ferro.

Há quatro dezenas de anos, quando vivi estes problemas na pele, pagava a uma enfermeira para ter a certeza que nem os meus filhos nem a mãe deles ficavam à porta da maternidade ou atrasavam o parto porque os serviços estavam em greve ou não havia médicos suficientes. Hoje ouço, vejo e leio o que se passa nas maternidades e no SNS, e pergunto: quando é que as Ordens Profissionais vão deixar de andar a contar pilinhas, e os políticos que governam o país ganham vergonha quando começam a receber informações de que a mortalidade infantil está a aumentar devido a gravidezes mal vigiadas e acesso desigual a cuidados de saúde. JAE.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Santarém é atar e pôr ao fumeiro

Só o Centro Histórico da cidade de Santarém é que ainda não é “atar e pôr ao fumeiro”. Como todos sabemos, é um circo perceber como é que alguém consegue fazer obras na sua própria casa, quando os técnicos e os gabinetes técnicos são parte de um exército de sanguinários, ao serviço do Estado, que ainda usam a velha e carcomida espada de D. Afonso Henriques para impedir qualquer atentado ao património.

 

O futuro aeroporto internacional de Lisboa está destinado aos terrenos do campo de tiro situado no concelho de Benavente. Santarém tinha um projecto que parecia irrecusável por ser investimento privado, e ficar fora da concessão da Vinci, que tem o monopólio de todos os aeroportos em Portugal, mas o Sistema é impenetrável, e o país de José Sócrates e Ricardo Salgado só muda quando mudarem as mentalidades. 

Na altura da escolha do campo de tiro, Santarém ficou de fora como já tinha ficado Alverca, as duas hipóteses por razões infundadas e muito mal explicadas, nomeadamente a de Santarém que, diz o relatório, por interferir com o espaço aéreo de Monte Real, o que parece surreal mas não é, mostra a lógica dos amplos poderes de quem manda e é Dono Disto Tudo.

Resumindo: quem ganhou, aparentemente, foram os portugueses que não querem os vícios da nova civilização nos seus territórios. Que os lusitanos se esmifrem uns aos outros na área metropolitana de Lisboa, que façam mais três travessias sobre o Tejo na área de Lisboa, que transformem a capital num CCB gigante, ligado por túneis com o teatro S. Carlos, o teatro Dona Maria, a Torre de Belém, as lojas de pastéis de nata, a Rua Augusta, o restaurante da filha do Senhor Amorim na Avenida da Liberdade e, já agora, os bordeis de luxo que crescem como cogumelos na áreas residenciais, também de luxo, do Chiado e das Avenidas Novas, só para dar dois bons exemplos.  E, já agora, que deixem o resto do país para os pastores de cabras e de sonhos, os vencidos da vida, os trolhas e os poetas populares e artesãos, mais os outros todos que só habitam o território ao fim-de-semana e vivem o melhor dos dois mundos.

Recentemente ouvi números que garantem que o passe ferroviário verde que o governo de Luís Montenegro estendeu até aos utentes da CP que chegam a Santarém fez aumentar os utentes para (quase) o dobro. O problema agora é o estacionamento. Nesta altura a câmara está a receber protestos  porque há pessoas a estacionarem onde não deviam nem é seguro, como aliás já acontecia antes.

Uma cooperativa de promotores de habitação, formada recentemente, está a iniciar a  construção, perto da Quinta do Mocho, de duas dezenas de apartamentos T2 e T3 que dizem já ter cerca de duas centenas de pessoas interessadas, numa lista que promete aumentar, uma vez que as reservas começam em breve. Os preços variam entre os 150 e 200 mil euros. Comparado com o que custa um apartamento em Lisboa, ou na região de Lisboa, estamos  a falar do mesmo que entregar um aeroporto aos tipos da VINCI, ou a um promotor privado que pouparia ao Estado português biliões de euros, sim, biliões; no caso de dinheiro bem distribuído pela economia do país provavelmente seria o suficiente para ficarmos todos com o nível de vida dos países mais ricos do mundo.

Só o Centro Histórico da cidade de Santarém é que ainda não é “atar e pôr ao fumeiro”. Aliás, os comerciantes da cidade andam a pedir S. José, o padroeiro, que alguém se ofereça para a associação da classe não morrer e haver vozes de contestação que não deixem os políticos dormirem na fôrma, e também eles se empenhem em contribuir para o governo da urbe. Como todos sabemos, principalmente quem mora e nasceu aqui, a população do Centro Histórico da cidade é quase toda descendente dos antigos monarcas, e os que não o são gozam com os que são, e é um circo perceber como é que alguém consegue fazer obras na sua própria casa, quando os técnicos e os gabinetes técnicos são parte de um exército de sanguinários, ao serviço do Estado, que ainda usam a velha e carcomida espada de D. Afonso Henriques para impedir qualquer atentado ao património, ou seja, tudo o que no Centro Histórico não for uma ruína não tem valor para os mangas de alpaca.

A crónica não pretende ser humorística, embora neste último parágrafo tenha resvalado para a anedota. Mas não é o que apetece depois de uma pessoa viver numa cidade, neste último meio século, e tudo o que devia ser “atar e pôr ao fumeiro” é quase, como diz outro provérbio “preferirmos viver eternamente arruinados pelo elogio a ser salvos pela crítica”? A luta política que se adivinha com as eleições autárquicas talvez nos ajude a perceber melhor o que é que falta darmos aos mangas de alpaca dos ministérios de Lisboa para nos largarem da mão e deixarem o centro histórico da cidade respirar, de preferência em obras, apoiadas pelos serviços técnicos e, quem sabe, até financiadas por programas especiais que o PRR’s desta vida deviam apoiar. JAE.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Os aviões da TAP, Pedro Nuno Santos e o PSD na região ribatejana

Não sou do PSD, nunca me filiei num partido, mas não acho que os social-democratas têm sarna, assim como não acho que os comunistas comem criancinhas, embora esteja provado que se comem uns aos outros pela forma como vão desaparecendo do mapa eleitoral a cada eleição.


Os aviões da TAP são o melhor e o pior da minha vida de viajante. Nunca fui tão bem tratado em viagens longas como nos aviões da TAP, mas também nunca me senti tão maltratado como viajante por uma tripulação da TAP que me queria deixar no destino por overbooking, quando o meu check-in tinha sido feito a tempo e horas.

Um dia destes viajei para África num avião meio vazio. Fui dos últimos a entrar e assim que percebi que o corredor era todo meu disse à assistente de bordo, que me vigiava no assento de emergência, muito para lá do meio do avião, que fosse à sua vida que eu ia à minha. “Mas esta é a minha vida”, respondeu-me com um sorriso sem nada que fizesse prever que eu não ia sentar-me numa cadeira da metade do avião que ia quase vazio. E assim foi. Sai do meu lugar de mansinho e fui para onde se viajava com o conforto e o sossego da primeira classe.

Escrevi e li todo o caminho e lembrei-me do tempo em que se fumava nos aviões. E como alguns críticos que ainda hoje respeito escreveram cobras e lagartos sobre tão escandalosa proibição. Hoje a proibição de fumar num avião parece até piada tendo em conta que se alguém acendesse um cigarro era imediatamente excomungado. Mas nem sempre foi assim. Houve quem resistisse à proibição. Estou velho como o caraças. Lembro-me de algumas viagens com editores e escritores, todos reunidos nos últimos bancos do avião a fazermos tertúlia e a fumarmos (eu só fumava o cigarro dos outros e era o mais distante possível porque enjoava). Como é que daqui a meio século os meus netos vão aceitar que o avô gostava de fumar à noite, antes de dormir, embora soubesse que o tabaco prejudicava o sono? Não sei nem quero saber. O vício de fumar, ainda que só à noite e altas horas, alimenta um prazer solitário que só quem pratica saberá explicar.


Os aviões da TAP são uma das razões para não gostar do actual líder do PS, Pedro Nuno Santos, que assinou um cheque de meio milhão de euros para indemnizar uma ex-administradora da TAP que foi posta na rua, e teve o descaramento de dizer que não se lembrava depois de ter sido confrontado com a mentira em que escondia a sua responsabilidade como ministro com a tutela da companhia. É ele que está a iniciar uma campanha eleitoral para mais umas eleições legislativas em que alimenta a fé do seu partido ganhar e nomeá-lo primeiro-ministro.  Esta mentirinha da indemnização de meio milhão de euros só tem 4 anos. Foi ontem. Mas parece obra de um liliputiano dos tempos modernos, que agora não saberei explicar de forma a ser compreendido.

Pedro Nuno Santos ganhou o PS depois de António Costa ter sido traído por um chefe de gabinete que tinha quase 80 mil euros em notas no seu gabinete, que diz ser o valor de trabalho que prestou a terceiros. Alguém acredita verdadeiramente nos políticos enquanto não ficar claro que não podem cuspir para o ar porque é certo que o cuspo lhes cai em cima? Não sou do PSD, nunca me filiei num partido, mas não acho que os social democratas têm sarna, assim como não acho que os comunistas comem criancinhas, embora esteja provado que se comem uns aos outros pela forma como vão desaparecendo do mapa eleitoral a cada eleição. Também não acho que os socialistas que governaram o país sejam tão esquecidos como Pedro Nuno Santos. Mas o tempo dirá o que vale este discípulo de António Costa com quem teve a briga do aeroporto que vai ficar na história de Portugal, não por causa da indemnização, mas pelas razões que o levaram a anunciar o aeroporto no Montijo e, no dia a seguir, a sofrer a desfeita do primeiro-ministro que lhe retirou a autoridade sobre o assunto.


Como estamos a escrever sobre gente da política e dos negócios não acabo sem deixar uma nota para o facto do PSD se preparar para apresentar nas próximas eleições legislativas, como cabeça-de-lista no distrito de Santarém, o impagável João Moura, o homem que melhor sabe explicar como é que se pratica o ofício de secar tudo à volta para ele ser o bombeiro de serviço. Muito mal vai a região de Santarém quando o partido do poder, que quer voltar ao poder, tem um político destes como grande referência. Só temos duas hipóteses para conseguirmos sobreviver no meio de tanta mediocridade: continuamos a acreditar que ninguém vive para sempre debaixo de uma moita, ou continuamos a acreditar que o quartão tanta vez vai à fonte que um dia parte-se pelo caminho. Há uma terceira hipótese, mas essa fica para os camaradas do PSD nos contarem quando falarem da importância política do partido na região ribatejana e na defesa do nosso território. JAE .

quinta-feira, 20 de março de 2025

Gastar cera com defuntos, o PS e o PSD, e o exemplo da Chamusca que é um concelho em extinção

O crescimento do CHEGA que recruta políticos para candidatos a deputados como se recrutam trabalhadores para a vindima, não serve de lição aos líderes dos partidos tradicionais que falham todas as promessas.


É gastar cera com defuntos escrever sobre o facto do PSD na região ribatejana ser um partido fantasma quando chega a hora de concorrer às autárquicas? Há bons exemplos, mas na generalidade sobressaem os maus.

Nem por isso as direcções dos partidos a nível nacional pedem contas aos líderes regionais e locais. Com a desmobilização dos cidadãos, que estão cada vez mais descontentes com a vida política, os políticos locais e regionais, salvo as excepções, comportam-se como caciques e estão-se marimbando para os resultados pois sabem que nas altas esferas dos partidos discutem-se prebendas, marcas de carros, nomes de gajas e de gajos, e contam-se algumas piadas brejeiras que cortam a direito e gozam com quem se põe a jeito, independentemente de ser do partido A ou B.

Está por nascer o jornal ou a televisão, de âmbito nacional, que faça o escrutínio dos políticos e da vida em sociedade que não seja à volta das elites da capital. A maior parte dos colunistas são amigos dos governantes ou dos ex-governantes, mas apesar das diferenças de opinião todos têm acesso à mesma garrafeira, à mesma panela, às mesmas irmandades. É por isso que a regionalização é o maior fantasma no seio dos partidos, nas reuniões das associações de empresários, nos meios intelectuais onde se discutem lugares e posições na administração pública, em todos os lugares onde toca o alarme só de se falar numa possível descentralização de poderes que esvazie os poderes dos mangas de alpaca de Lisboa.

O crescimento do CHEGA que recruta políticos para candidatos a deputados como se recrutam trabalhadores para a vindima, não serve de lição aos líderes dos partidos tradicionais que falham todas as promessas da reforma da Justiça, do Serviço Nacional de Saúde, da escola e creches para todos, da habitação social e o mais que todos sabemos.

Pedro Nuno Santos é o líder do PS que há três anos na qualidade de ministro de António Costa, o seu líder no PS e no Governo,  anunciou um novo aeroporto no Montijo que António Costa desfez no dia a seguir. Foi o governante que mais mentiu sobre a realidade da TAP e da CP, duas empresas que consumiram e consomem mais do orçamento público que quase todos os portugueses reformados.

Dizem as primeiras sondagens que na Carregueira, concelho da Chamusca, onde a CDU perdeu a câmara da Chamusca para o PS ao fim de mais de quase 40 anos de poder, dizem os números que os partidos tradicionais têm os dias contados. Não admira. O estranho é que seja só na Carregueira porque a abertura dos políticos do concelho para fazerem ali aquilo que mais ninguém quis noutra parte do território teve como paga o esquecimento eterno. Os investimentos prometidos estão por cumprir e mesmo que os políticos locais não saibam valer as suas reivindicações, o povo sabe fazer justiça pelas suas próprias mãos, neste caso usando o voto. Não resultou o castigo à CDU dando a vitória ao PS e a Paulo Queimado e Cláudia Moreira. Foi pior a emenda que o soneto. Falta saber se ainda vamos a tempo de ver o governo a cumprir as promessas que estão por cumprir, incluindo o raio de uma ponte que depois de fechada nos dois sentidos tem um tabuleiro onde qualquer dia se podem semear batatas. JAE.

quinta-feira, 6 de março de 2025

A luta de galos entre os mesmos de sempre na casa da democracia

Uma crónica a propósito da reedição de O PROCESSO e a recordação de três frases, roubadas à memória, que espelham os tempos que vivemos.


O empresário José Manuel Roque, que faleceu recentemente, era um homem de poucas confianças, mas tinha uma atitude perante a vida que não era de vacilar. Éramos amigos, mas não tanto. A nossa diferença de idades, o nosso trabalho e o percurso de vida não permitiam grandes tertúlias. Curiosamente, a última vez que veio em meu socorro para me defender num julgamento em que estava a ser apertado por gente que queria fugir com o rabo à seringa, o seu depoimento sobre mim não foi validado pelo juiz que acabou a condenar-me. Mas o mesmo se passou com o presidente da câmara de Santarém da altura, Ricardo Gonçalves, que embora fosse testemunha importante dos motivos que levaram ao julgamento, foi igualmente desconsiderado pelo juiz e também as suas declarações foram dispensadas na hora do juiz decidir.

Cito José Manuel Roque porque desde que o conheci, até morrer recentemente, sempre lhe ouvi esta frase forte, mas que ele não perdoava cada vez que analisava a situação política do país: “Portugal é um bordel em autogestão”.

Outro episódio que ficou na memória foi o que resultou de uma entrevista que realizei em parceria com o Alberto Bastos, em Março de 1992, com Rui Sommer de Andrade,  que confessou que Portugal lhe ficava apertadinho nas cavas. A mais recente, que também não vou esquecer, é a frase de Mira Amaral que, numa entrevista ao jornal SOL, disse que qualquer dia um tipo só pode ir para o governo se tiver acabado de nascer.

Todas estas frases se ajustam ao momento político que vivemos, que não é mais que uma luta de galos entre os mesmos de sempre, que enchem a casa da democracia como dantes se enchiam os circos em Roma. E é de lá que alimentam toda a informação que chega a todas as televisões e jornais do regime que monopolizam a informação que chega à generalidade do povo português.

 

O caso MIRANTEGATE

Acaba de sair para as bancas a segunda edição de O PROCESSO, um livro que conta a tentativa de silenciamento da actividade de O MIRANTE.  Orlando Raimundo, o autor, junta-lhe um prefácio a que dá o título de “O caso Mirantegate paradigma da liberdade” onde reconhece que este caso “foi, por ventura, o mais grave atentado à Liberdade de Imprensa do pós 25 de Abril, adiantando ainda que “nunca antes na atribulada História da sonolenta e amadorística Imprensa Regional Portuguesa nada de semelhante tinha acontecido”. António Valdemar, o decano dos jornalistas portugueses, assina na quarta capa do livro um elogio a Orlando Raimundo, que considera um jornalista “consagrado ainda antes do 25 de Abril” e “um dos grandes repórteres da sua geração que derivou para a investigação histórica de figuras e acontecimento polémicos do nosso tempo”.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

As universidades seniores, os meios de comunicação regionais e o desenvolvimento local

Os meios de comunicação deviam viver mais da participação dos cidadãos. E os alunos das universidades seniores podem ter um papel diferenciador nessa participação.


“Os meios de comunicação regionais e o desenvolvimento local” foi o título que a RUTIS deu a uma das intervenções de abertura do seu Congresso que reuniu em Óbidos no passado dia 20 de Fevereiro. Fica aqui o essencial da palestra que proferi para cerca de centena e meia de pessoas que estavam na sessão de abertura.

Os meios de comunicação regionais e locais são a única voz de uma região que leva para fora de portas aquilo que só a nós nos interessa. Por isso é tão importante a sua existência. Se dependermos em termos de desenvolvimento regional do escrutínio que o poder de Lisboa tem sobre o nosso território, nunca mais passamos da cepa torta, e a RTP e os organismos do Estado, que têm tutelas mais fortes que ministérios, arrasam orçamentos e todos juntos são um perigoso poder paralelo que nos governa quase há 50 anos. 

Se há coisas de Abril que faltam cumprir é a distribuição dos incentivos do Estado em igualdade de circunstâncias para os que gravitam na grande nave do Terreiro do Paço e os outros que vivem no bairro, na charneca, na lezíria ou na grande paisagem que é todo o interior do país.

É evidente que sem imprensa de proximidade não há escrutínio. Se não houver imprensa de proximidade não há descentralização, se há coisas que matam todos os dias um pouquinho a nossa democracia é a falta de escrutínio, ou então a tentação de escrutinar para além do razoável, que é o que está a acontecer nesta altura com a mudança de cadeiras que se deu na Assembleia da República. Caiu o Carmo e a Trindade em S. Bento porque um determinado partido elegeu como deputados pessoas que não estão a respeitar o que era regra no parlamento.   

Os meios de comunicação deviam viver mais da participação dos cidadãos. E os alunos das universidades seniores podem ter um papel diferenciador nessa participação. Os meios só têm a ganhar se aceitarem textos de opinião dos cidadãos que vivem e pensam o território e no território. Se os professores e os alunos se empenharem nessa missão de escreverem textos e gravarem depoimentos para enviarem aos meios, tenho a certeza que serão bem recebidos.

Os textos mais lidos de O MIRANTE são as entrevistas e as reportagens que retratam os dirigentes associativos e as suas colectividades, os textos que põem a nu as injustiças sociais, os textos das rubricas onde damos voz aos cidadãos que têm uma história para contar.

Os alunos das universidades seniores podem mudar em parte a linha editorial de um meio de comunicação social se organizarem e souberem como intervir no meio onde vivem e trabalham. O que cada um de nós tem para ensinar ou influenciar uma redacção de jornalistas é tão ou mais importante que colaborar apenas como leitor ou ouvinte. Não vou deixar aqui o anúncio de uma ferramenta ou apontamentos sobre como a universidade sénior e os seus alunos podem ser diferenciadores no debate sobre o desenvolvimento regional. Deixo a minha disponibilidade para ser parceiro de quem quiser arriscar aceitar esse desafio e desconstruir essa ideia de que estamos condenados a ver e ouvir televisão, sempre com o coração apertado, porque está tudo em guerra, e as desgraças e os mortos entram pela nossa casa como se o nosso reduto fosse um mesmo cenário de guerra, que dá continuidade às reportagens que chegam do fim do mundo, e que, na maioria dos casos, nem precisam da intervenção de jornalistas para serem contadas. JAE.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O livro de cada dia nos dai hoje

O título desta crónica foi roubado de um texto que Onésimo Teotónio Almeida escreveu como prefácio a um texto de George Steiner, publicado pela Gradiva, que acaba de chegar às livrarias.

O meu dia de trabalho hoje acabou com uma reunião onde soube que um colega da gestão comercial caminhou durante semanas, de surpresa, para uma empresa onde recebeu cerca de cem euros de dívida em cinco prestações. Embora a empresa ficasse em caminho, no regresso a casa, obrigava a um desvio de vários quilómetros por estradas secundárias. E em metade das deslocações não teve resultados.

Conto este episódio para deixar aqui um exemplo do que é gerir uma empresa de comunicação social, e não me alongo mais porque esta matéria é mais assunto de caserna do que de discussão pública. Conto o episódio para justificar a crónica sobre dois livros em que o autor é um açoriano chamado Onésimo Teotónio Almeida (OTA), professor universitário há meio século nos EUA e um ensaísta e cronista como não há outro em Portugal. Durante muitos anos enviámos-lhe o jornal e alguns livros que fomos publicando. Depois, nem sei porquê, o jornal deixou de atravessar o Atlântico e o mesmo aconteceu com os livros. Mas mantive-me sempre fiel à leitura dos seus livros e às crónicas que vai publicando regularmente, e que não é difícil encontrar por aí tendo em conta que os meios para o fazer são, a cada ano, mais raros e com menos páginas. Dedicar-lhe esta coluna é uma honra mais para mim do que para ele e para os seus livros. O espaço desta coluna que estava guardado para contar a história do Diogo e da sua persistência como elemento da equipa de gestão comercial fica para outra altura. Provavelmente, se tivesse que dar contas a alguém não me estava a explicar. Quem acha que conhece o ser humano nunca soube que “acossado pelo terror estalinista, Bakhtin arrancou as folhas do livro de estética que escrevera para remediar a terrível falta de papel de enrolar cigarros”.

O título desta crónica foi roubado de um texto que OTA escreveu como prefácio a um texto de George Steiner, publicado pela Gradiva, que acaba de chegar às livrarias. O livro tem 80 páginas e o ensaio de Steiner, intitulado “O Silêncio dos Livros”, ocupa menos de metade do livro. Steiner é um dos meus autores preferidos, mas só comprei o livrinho depois de ler duas vezes o prefácio de OTA e de dizer para com os meus botões: vou levar o livro, o texto do prefácio merece os 11 euros.

Na terceira leitura, já em casa, com uma caneta em mãos assinalei as partes do texto que mais gostei. E de seguida li Steiner, num texto igualmente soberbo sobre livros, em que a certa altura conta que “na agonia, Balzac chamava pelos médicos que tinha inventado na Comédia Humana”, e que, “segundo Shelley, um homem verdadeiramente apaixonado pela Antígona de Sófocles jamais poderia viver uma experiência semelhante com uma mulher real”, e ainda que “Flaubert sentia-se rebentar como um cão enquanto “a puta da Bovary” se preparava para viver eternamente”.

George Steiner morreu a 3 de Fevereiro de 2020 e parece que foi no mês passado. A morte dos que admiramos, mas vivem distantes do nosso afecto, não conhece limites temporais. Para mim ele morreu ontem; se estiver distraído a lê-lo é bem possível que acredite que ainda é vivo e até o confunda com outro ensaísta que me fala igualmente das palavras de Joyce: “Esmaguem-nos, que nós somos como as azeitonas”, ou ainda do facto de “Varsóvia a Buenos Aires haver tanta publicidade a elogiar panfletos em que se nega a existência dos campos de morte nazis, panfletos a que é fácil deitar a mão”, que o leva a perguntar se “não será esta uma boa razão para haver censura”.

Não é de George Steiner que quero escrever, mas de Onésimo Teotónio Almeida que editou também recentemente um livro imperdível para quem gosta de literatura portuguesa e se interessa por textos “cuja unidade consiste no entabulamento de conversas em linguagem clara e distinta com autores tutelares da cultura portuguesa do século XX, que falam de Natália Correia, Fernando Pessoa, José Saramago, José Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena, só para citar alguns que o escriba também mais aprecia.

“Diálogos Lusitanos”, assim se intitula mais um volume de ensaios de OTA, tem um texto reproduzido em parte na contracapa que fala de outros títulos mais antigos, em que o autor afirma ter “tentado contribuir para o que até aqui me parece ser um diálogo de surdos em que cada um fala e ninguém responde, nem sequer simplesmente fazendo um eco”, numa clara alusão ao pobre meio literário e cultural português. JAE.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Morrem mais crianças e mais idosos devido aos problemas da falta de médicos

Não são só os políticos que merecem figurar numa lista onde sejam responsabilizados pela morte dos nossos doentes mais frágeis. Os médicos que ocupam lugares de decisão são tão criminosos como eles.


Ontem ouvi dizer que a CUF em Santarém parecia um hospital público. No dia anterior fui à CUF Descobertas, em Lisboa, ao piso cinco, e a acumulação de gente era incomum, o que não impediu que a minha consulta não se realizasse à hora marcada. Anteontem a espera nas urgências dos doentes urgentes no Hospital de Vila Franca de Xira era de quatro horas.

Esta questão da saúde e da falta de médicos para salvar os infelizes que ficam quatro horas numa urgência e acabam por morrer na maca, e quando não morrem ficam às portas da morte, indigna e é indigno dos tempos que vivemos.

 Os políticos que mandam nisto tudo não sabem que os nossos velhos não aguentam 4 horas numa urgência se lá chegarem numa situação periclitante? E não resolvem os problemas da falta de médicos porque querem acabar com os idosos pobres para livrarem o Estado do custo de os sustentarem e ainda terem que ajudar no pagamento do Lar?

Um tipo que é ministro da saúde, ou foi ministro nos últimos anos, não sabe que um dia vai para uma lista dos criminosos que deixaram morrer muitos portugueses valorosos com bactérias hospitalares ou de bruços nas marquesas dos bombeiros que se acumularam e acumulam nas urgências?

Eu ajudo a pagar do meu bolso a um investigador universitário que se meta num trabalho destes. Dou de boa vontade uma parte do custo de uma investigação que aponte o dedo aos governantes que contribuíram e continuam a contribuir para a morte dos nossos velhos que ainda viveram o tempo da fome do antes do 25 de Abril.

Não são só os políticos que merecem figurar numa lista onde sejam responsabilizados pela morte dos nossos doentes mais frágeis. Os médicos que ocupam lugares de decisão são tão criminosos como eles, neste caso vale o velho ditado que tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica à espreita. 

No dia em que escrevo este texto ouvi da boca de um dirigente hospitalar a história de um médico que não apareceu para dar consultas e nem se justificou. E deixou cerca de duas dezenas de doentes literalmente pendurados.

Se houvesse justiça e a maioria de nós exercesse a cidadania, outro galo cantaria.

Dou outro exemplo que roubei da vasta informação sobre o regime democrático da nossa República: mortes de fetos e recém-nascidos quase duplicaram em 2023 na região de Lisboa e Vale do Tejo. Trata-se de um aumento significativo de óbitos, que não se verifica no resto do país. As explicações para este fenómeno podem encontrar-se na idade das grávidas e também na falta de acompanhamento médico durante a gravidez. Diz ainda um responsável, administrador hospitalar, que as dificuldades na rede de urgências de obstetrícia podem ter contribuído para este aumento, mas há outros factores a ter em conta.

Enfim, estamos entregues aos bichos. Entretanto António Costa saiu do Governo depois do seu  ex-chefe de gabinete lhe ter feito a folha e foi eleito presidente do Conselho Europeu, ou seja, recebeu o prémio Nobel da política por nos ter desgovernado e ter deixado a Saúde e o Sistema da Justiça e o mais que sabemos pior do que encontrou.

Nota: Nesta edição contamos na página 15 uma história que é um bom exemplo do desprezo a que hoje são votados as grávidas que precisam dos serviços de urgência, neste caso do Hospital VFX. JAE .

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Quem aceita cargos no Governo ou é tolo ou é muito rico

Portugal tem uma lei vergonhosa que impede que os melhores sejam escolhidos para nos governarem. Não há político honesto que não saiba que a nossa democracia não resiste à mediocridade instalada, mas todos assobiam para o lado e fingem que não se lembram que o 25 de Abril já foi há meio século.

Quando a imprensa regional e local tinha importância, na generalidade, temos que recuar pelo menos três dezenas de anos. Dez anos depois já se notava a diferença ainda para pior. Depois da Troika a vida das empresas editoras de jornais nunca mais foi a mesma. Os políticos, desde que José Sócrates tomou conta do Partido Socialista em 2004, começaram a fazer saldos dos seus estados de alma e venderam tudo o que havia para vender porque a máquina de produção de mentiras e actividades criminosas passou a trabalhar 25 horas por dia e com alta tecnologia. Destruir o edifício da comunicação social foi um dos objectivos mais escandalosos; sem jornalistas não há jornalismo e sem jornalismo ninguém é escrutinado, seja a receber dinheiro em envelopes em plena avenida da Liberdade, em Lisboa, seja nas empresas dos países onde o dinheiro não tem rosto nem deixa rasto.

É mais que sabido nos meios políticos, incluindo entre todos os políticos do regime com cargos importantes, seja a nível nacional ou local, que ainda há muita gente ligada a escritórios de advogados a receberem do Sistema para darem como concluída a extinção do Banco Português de Negócios (BPN), fundado em 1993, depois nacionalizado em 2008, onde terá começado a longa jornada de crimes que ainda hoje dura e que envolveu quase toda a elite dos políticos e dos banqueiros portugueses (evidentemente só uma pequena minoria foi descoberta e alguns pagaram com a vida essas aventuras criminosas). Muito antes do escândalo do BES visitei um gabinete de um banqueiro do tamanho de um campo de andebol, e nas paredes havia apenas um quadro com um grande cifrão a servir de decoração. E não direi que era obra de artista, mas sim uma boa reprodução numa moldura quase vulgar.

Não percebo como é que os líderes dos governos empossados têm que escolher a pior escória da política para formarem governos, sabendo que isso se deve ao facto de os ministros e os secretários de estado não poderem ter empresas em nomes deles. Esta falha na lei obriga os líderes a optarem pelos mais astutos, por aqueles que têm as sogras e os sogros, o cão e o gato, a gerirem o património e assim ficam livres não só para ocuparem imerecidamente lugares no governo do país, como depois para se servirem da política e enriquecem à boa maneira dos países do terceiro mundo. Os Homens sérios, que se recusam a fazerem figura de ótarios e esconderem o seu património para poderem ser membros de um Governo do país, rezam pela alma dos seus avós e aconselham os filhos a irem trabalhar para países onde, pelos menos, há vergonha.

Oliveira Salazar morria outra vez se voltasse à terra e percebesse como os políticos portugueses governam Portugal desde o dia 25 de Abril de 1974, como quase todos se dividem e andam desavindos, ao jeito das famílias sempre à briga para governarem a casa onde se aplica o velho ditado: onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão.

Os funcionários superiores do Estado que chegaram ao poder depois de saírem da política, que não fazem ponta de corno e ganham milhares de euros por mês, mais os gestores incompetentes da administração da coisa pública que obedecem apenas a quem tem dinheiro e manda nisto tudo, fazem de Portugal um país bom para envelhecer, comprar umas viagens às ilhas, aproveitar as tardes de Primavera/Verão para jogar as cartas, e as de chuva no Outono/Inverno para ir ao ginásio, e quando chegar a hora da partida apanhar um avião e ir até à Suíça para uma clínica onde pratiquem a Eutanásia.  Deus me livre perder este sentimento de revolta e envelhecer num lar em Portugal a ver e a ouvir a televisão, nomeadamente aqueles canais que entrevistam os adeptos do Benfica, do Sporting e do Porto nas vésperas dos jogos, e logo a seguir passam 15 minutos de imagens de guerra ou de apreensão de drogas, quando não é de crimes passionais.

Comecei a escrever esta crónica falando do sector da imprensa em Portugal que é hoje mais pobre que Job, embora já tenhamos um patrãozinho chamado Cristiano Ronaldo que pode baralhar as contas a muita gente. Mas alguém acredita que o maior jogador de futebol de sempre tenha unhas para gerir jornalistas e gerar dinheiro sem depois vender uma parte aos Árabes, e outra aos chineses, que já são donos da nossa energia e do mais que nem sabemos? JAE.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O “Venta Azeda”, o “Serra Cornos” de Montalvo e a morte de Ramiro Matos

Morreu um dos nossos na semana em que fui almoçar a Montalvo e entrevistámos um médico com uma história de vida que dá que contar.


Montalvo, na freguesia de Abrantes, está actualmente no mapa de Portugal por causa do fecho da fábrica da Tupperware. Fui lá almoçar um dia destes com o meu primo João Emídio dos Santos que me ofereceu um almoço de batatas com bacalhau de azeite e vinagre. Fui oferecer-lhe 4 livros, e ele e a mulher Maria José não se fizeram rogados, e nem puseram a hipótese de eu já ir almoçado, ou ter almoço pelo caminho ou até ter almoço marcado ali por perto. A mesa estava posta e não saí de lá sem aproveitar o almoço e a conversa com o filho da minha tia Maria da Luz, que andou emigrado pela Holanda durante quatro anos e a quem chamavam o Venta Azeda.

Fui a Montalvo num dia frio, que não deu para ir ver o leito do Tejo, mas prometi voltar por alturas do Verão, não só para irmos à pesca como para irmos à taberna da aldeia e eu conhecer o Serra Cornos, e outros amigos do João, que também quero que sejam meus amigos ou, pelo menos, conhecidos.


Morreu um dos nossos

Ramiro Matos foi toda a vida um profissional competente e dedicado. Quando se reformou veio oferecer-se a O MIRANTE para trabalhar porque não queria ficar em casa a envelhecer. Esteve na empresa editora de O MIRANTE  o tempo que quis e ajudou no que sabia na área da administração e comercial. Já lá vão muitos anos. Entretanto fez-se artesão com a esposa e, quando podiam e queriam, faziam as feiras de artesanato vendendo os seus produtos de cortiça. Ramiro Matos morreu no passado sábado com 80 anos. Não morreu de velho, segundo sei, mas de uma famosa bactéria que tem vitimado outras pessoas igualmente de forma cruel que causa revolta.


O que é ser jornalista?

Um jornalista é e será sempre uma figura pouco grada na comunidade e em sociedade; a razão é simples. O ofício dele é escrever sobre o quotidiano, as histórias do quotidiano, a maior parte denunciadas pelos leitores, e nem sempre consegue agradar a gregos e a troianos. E se é um jornalista de proximidade arrisca-se a levar uns sopapos, ou uns enxovalhos, que é coisa que os jornalistas de Lisboa não levam porque estão muito bem escondidos em edifícios sem portas e janelas para a rua.

Esta semana O MIRANTE publica uma entrevista de vida com um médico que conheci na minha terra há quase meio século. A sua história de vida está um pouco ligada à minha, ainda que numa pequena parte. Sabia que ele assinava O MIRANTE e que é leitor assíduo. Como os jornalistas de proximidade não vivem em redomas, e quando querem sabem tudo o que gira à sua volta, aqui fica a entrevista, ainda a tempo de dar a conhecer em letra de forma um homem que bem merece o reconhecimento público.

Sem querer empertigar-me à custa do trabalho dos outros, deixo aqui a informação que no dia anterior ao fecho desta edição caíram no telefone do jornal cinco histórias de diversas partes da região, todos com pernas para andar. É desta forma, sem falsas modéstias, que editamos um jornal que é o espelho de uma região e quer continuar a ser cada vez mais a voz dos cidadãos que se sentem injustiçados. Não conheço melhor forma de exercer a profissão de jornalista; e também não entendo o jornalismo sem este serviço público que prestamos a quem não tem outra forma de se fazer ouvir. JAE.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Para uma História da Imprensa Local e Regional

Ainda hoje, devido à nossa experiência no terreno, servimos de interlocutores a muita gente que já não tem como se orientar num negócio que perdeu referências, foi alvo de assalto por parte dos políticos durante as últimas décadas, e cuja existência como sempre o conhecemos está em fase terminal. Falar em associações do sector e ao serviço do sector é o mesmo que falar do triste destino que teve a protagonista do fado da Casa da Mariquinhas.

Para uma história da imprensa local e regional pode dar um livro ou pode nem sequer passar de meia dúzia de artigos para não deixar esquecer aquilo que tenho obrigação de dar testemunho.

Começo por um assunto que não merece discussão: cada vez que escrevo um texto ou dou o coiro para contar uma história que escrutina os poderes instituídos, fico sempre com a sensação de que poderia fazer melhor; que podia ir mais longe, que não devia ter sido tão meigo a escrever. A minha condição de jornalista por conta própria, e a experiência adquirida nos 37 anos que já levo nesta profissão, deram-me uma vida de grandes desafios, mas também de grandes experiências. Cedo, muito cedo, participei no movimento associativo e empresarial e tive contacto com os grandes do jornalismo e das direcções editoriais dos principais jornais. Não fiquei no meu cantinho a entrevistar os priores das freguesias, a dirimir guerras de alecrim e manjerona, fui ao encontro, desafiei ministros e secretários de estado para defender o meu jornal quando atingimos tiragens recordes e vivíamos o tempo das vacas gordas. Uma vez consegui reunir à volta de uma mesa, na sede dos CTT, em Lisboa, oito administradores, directores e chefes só para discutirem a melhor forma de não falharem a entrega semanal à quinta-feira dos 25 mil exemplares de O MIRANTE. E só precisei de me indignar, de falar alto dos meus direitos como cliente, de fazer aquilo que ainda hoje faço embora agora já tenha quem me substitua e seja muito melhor do que eu a tratar destes assuntos.

Ao longo de mais de três dezenas de anos não falhei um congresso de jornalistas no tempo em que todos os anos discutíamos o sexo dos anjos, mas discutíamos. Hoje não há discussões, embora o sexo e os anjos continuem a ser uma boa razão para discutirmos, certamente agora mais do que nunca. Conheci e fui recebido pela maior parte dos membros do governo que tiveram a pasta da comunicação social. Fui sempre aos seus gabinetes protestar, nunca baixar a cerviz. De alguns tornei-me confidente e falei de assuntos da caserna que frequentava, mas depressa percebi que estava a ser usado. Só quem não conhece os políticos profissionais é que confia neles. Aprendi a tempo (estultícia minha porque a política está sempre presente no nosso trabalho e é difícil garantir que não estamos a ser usados quando as nossas fontes são também os nossos principais interlocutores).

Nunca quis ser accionista da agência de notícias do Estado embora tenha sido convidado e desafiado. Nunca negociei as dezenas de projectos de rádios e de jornais que me foram oferecidos ao longo destes últimos 30 anos. As minhas respostas ainda hoje são iguais às de antigamente: só quero ser jornalista de um jornal e não me interessa o futuro da concorrência se o assunto é falta de dinheiro e de bons profissionais. Fizemos duas ou três parcerias ao longo destes anos, mas sempre ao nível da distribuição para cumprirmos o desígnio de chegarmos ao máximo de leitores na região onde trabalhamos. É uma missão que nunca está terminada se o jornal for bem dirigido.

Não tenho medalhas nem quero ter; jamais aceitarei homenagens seja de quem for, e muito menos daqueles para quem trabalhei por dever de camaradagem neste sector tão difícil da comunicação social de proximidade. Ainda hoje, devido à nossa experiência no terreno, servimos de interlocutores a muita gente que já não tem como se orientar num negócio que perdeu referências, foi alvo de assalto por parte dos políticos durante as últimas décadas, e cuja existência como sempre o conhecemos está em fase terminal. Falar em associações do sector e ao serviço do sector é o mesmo que falar do triste destino que teve a protagonista do fado da Casa da Mariquinhas.

Recordo que a distribuição está nesta altura nas mãos de duas empresas distintas, mas que vivem igualmente de outros negócios muito, mas muito mais rentáveis, e que basta que uma delas tenha uma constipação para que a grande maioria dos jornais não saiam da gráfica depois de impressos. Das máquinas de impressão de jornais estamos conversados: uma boa parte de nós está a imprimir em Espanha, o que diz bem do estado a que chegámos.


Nota: Na passada semana, no dia em que comecei a escrever esta crónica, fui dar um abraço ao Sérgio Carrinho que no outro dia comemorava 76 anos. Perguntei-lhe em jeito de brincadeira se ele ainda se lembrava das vezes em que o tirávamos do sério com alguns textos. A resposta foi uma grande gargalhada, depois os olhos húmidos, e depois um “grande cabrão”, quem sabe nome o nome mais carinhoso que eu merecia ser chamado, e que ele poderá esquecer a curto prazo porque a saúde começa a faltar-lhe e um dia destes também lhe faltarão, a ele e a nós, as palavras certas no momento certo. JAE.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Começou a campanha eleitoral para as eleições autárquicas e O MIRANTE vai reforçar a equipa

Os jornalistas de O MIRANTE vão ter muito trabalho pela frente se quiserem continuar a fazer a diferença. Uma coisa é a notícia do momento, aquela escrita à pressa para conquistar cliques e gostos nas redes sociais, outra é a do jornalismo de investigação, de contrapoder, a grande entrevista, a reportagem no local, como só nós temos condições para fazer e já praticamos há décadas.


Começou na região a campanha eleitoral para as eleições autárquicas de Setembro. É verdade que já anunciamos alguns candidatos, mas o anúncio da candidatura de Pedro Ribeiro a Santarém, fica a marcar definitivamente o calendário que na capital de distrito já só tem um depois. Vêm aí mais surpresas. Tão ou mais significativas quanto a candidatura do actual presidente da câmara de Almeirim a Santarém. Cada surpresa será julgada em resultado do número de eleitores do concelho. No nosso trabalho as coisas não funcionam assim, há uma lógica diferente, mas é assunto que não me parece difícil de ser entendido sem mais explicações. 

É no capítulo das surpresas que a edição online de O MIRANTE, ou de outro jornal, não consegue ganhar à edição impressa para onde escrevo este texto. Na sexta-feira anunciámos online o que já se esperava da reunião da concelhia do PS de Santarém, e em poucos minutos a informação circulou a toda a velocidade. Agora, nesta edição em papel, fazemos o melhor que sabemos, que mais ninguém na região consegue igualar. E um dia que os computadores se apaguem, ou os arquivos antigos desapareçam, como já aconteceu, ficarão estas folhas encardidas à mão de semear em qualquer biblioteca.

Os jornalistas de O MIRANTE, cuja redacção vai crescer nos próximos dias, vão ter muito trabalho pela frente se quiserem continuar a fazer a diferença. Uma coisa é a notícia do momento, aquela escrita à pressa para conquistar cliques e gostos nas redes sociais, outra é a do jornalismo de investigação, de contrapoder, a grande entrevista, a reportagem no local, como só nós temos condições para fazer e já praticamos há décadas. Claro que temos que ser melhores, principalmente a formar os mais novos da equipa, claro que trabalhamos para pequenas comunidades onde os caciques não aceitam o nosso escrutínio como aceitam os dos grandes jornais; e fazem jogo sujo, mas isso para nós nunca foi problema. Estamos habituados a dar o corpo às balas, e o jornalismo é isso mesmo: uma luta pela democracia num parlamento que tem a sua sede no meio da rua. 

Não estou aqui para fazer futurologia, mas não é preciso ser bruxo para arriscar escrever que um dia, mais tarde ou mais cedo, a maioria dos jornais vão ser como o nosso: ou escolhem uma região ou morrem, por serem insignificantes ou por não terem viabilidade económica.

Não se lêem quase 400 páginas de prosa de Aquilino Ribeiro sem que se consiga fugir à tentação de o anunciar aos amigos. Pois aqui vai. Acabei de ler Luís de Camões. Fabuloso* Verdadeiro, e mais uma vez fiquei rendido ao autor de "A Casa Grande de Romarigães" e de "Quando os Lobos Uivam", entre mais de três dezenas de romances que chegam para encher uma biblioteca. António Valdemar, o decano dos jornalistas portugueses, assina o prefácio e foi o responsável pela reedição dos textos. António Valdemar conheceu e conviveu com o Mestre Aquilino Ribeiro, por isso a sua entrega a este livro dá-lhe uma maior visibilidade. E bem merecida. Quem quiser saber do autor de Os Lusíadas tem que ler Aquilino Ribeiro. E também António Valdemar no prefácio, que é grande ajuda para o leitor desconfiado, que nunca sabe ao que vai quando se mete páginas adentro a ler sobre um poeta que morreu há 500 anos, pobre e miserável, mas que deixou uma Obra que muitos de nós ainda não conseguimos ler por falta de cultura geral. É magnífico, fabuloso e verdadeiro, perceber melhor pela pena de Aquilino Ribeiro que Camões já se insurgia contra "a generalizada corrupção instalada em Portugal". JAE .

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Abaixo os sonhos... vivam os velhoses

Já não há velhoses nem coscorões como antigamente. A massa de abóbora dá muito trabalho e exige ciência apurada na hora de cair na frigideira para fazer os filhoses. Em Lisboa ninguém sabe o que é isso de velhoses e em Santarém sabem, mas as lojas de proximidade estão às moscas porque os supermercados são mais que as moscas.

Na passada terça-feira, último dia do ano, caminhei por Lisboa e entrei nas principais pastelarias da antiga e bela cidade de Lisboa, há procura de velhoses. E não encontrei. Foi na pastelaria Mexicana que fui mais bem recebido, e me deram conversa três senhores idosos que trabalhavam ao balcão com ar atarefado. Tive que repetir o nome duas vezes em vários casos porque sempre entendiam filhoses em vez de velhoses. Com um sorriso rasgado, simpático, um dos mais novos do grupo da Mexicana disse-me que nunca venderam velhoses naquele balcão. "Deve ser algum frito tradicional de alguma região do país", afirmou o mais velho e igualmente simpático balconista da Mexicana, procurando consolar-me depois de lhes dizer que já tinha corrido Seca e Meca e não tinha encontrado o que procurava. O atendimento na Versalhes, no Galeto, nas pastelarias do Rossio e da Avenida de Roma foram um ver se te avias, sinal dos tempos em que o trabalho de balconista de pastelaria é uma roda viva, como aliás em muitas outras profissões.

Neste meio tempo liguei para quem estava do outro lado do telemóvel e fiquei a saber que o que eu tinha visto nas grandes superfícies comerciais da capital do país, por onde andei também em excursão, e depois nas pastelarias, repetia-se na capital do Ribatejo; com uma diferença, a mercearia no centro da cidade de Santarém, onde costumo comer velhoses de abóbora (também os há de cenoura e são igualmente bons) estava às moscas, e o dono do estabelecimento estava desolado porque para ele já nada é como dantes.

Como é evidente as grandes superfícies comerciais aproveitam o hábito dos portugueses seguirem o ditado de "onde mija um, mijam dois ou três", e toca de correrem todos para os espaços onde é muito mais fácil e simples encher o carrinho das compras e a variedade é muito maior. As lojas tradicionais que não têm uma lista de amigos, não fazem marketing de proximidade, não sorteiam um presunto na altura do Natal, não oferecem velhoses nem coscorões, essas estão condenadas, mais tarde ou mais cedo vão morrer na praia, mesmo que saibam nadar.

Portugal é um quintal, um jardim zoológico em obras, e acho engraçado que os meninos e os velhos da Versalhes e da Mexicana fiquem de boca aberta e sorriso escancarado quando lhes perguntamos se já não têm velhoses, e respondam, quando respondem, que não sabem o que é, e ficam a rir-se como se tivessem acabado de ouvir uma pergunta de um chimpanzé que aprendeu a falar com os visitantes do jardim zoológico. "Ah! o que você quer são sonhos , isso temos, estão ali", ouvimos algumas vezes como se os sonhos pudessem competir com os velhoses.

Depois deste episódio fui saber por que razão, até na nossa região, não há muito quem venda velhoses. Eis o motivo: a massa dá muito trabalho e é preciso ter um bom pasteleiro que não facilite, ou os velhoses ficam uma miséria e depois ninguém os quer. Fiquei a saber ainda que o mesmo se passa com os coscorões: aqueles lisos e estaladiços foram substituídos por uns de massa grossa, que se comem como uma sandes, porque os coscorões à antiga têm que ser fritos com a mesma massa dos velhoses, e precisam igualmente de um pasteleiro à antiga.

A minha mãe era um desastre, tal como eu sou, com as mãos, tanto a partir copos como pratos, e o mais que vier às mãos. Mas sabia fazer e fritar velhoses como ninguém. Ainda hoje os meus filhos falam dos velhoses da avó. Não há melhor maneira de festejar o Natal e a entrada de um novo ano que recordar os que partiram e que esperam por nós mais tarde ou mais cedo.

Neste final e início de ano vi-me a reler livros de uma vida de Rosa Montero (A Louca da Casa e A ridícula ideia de não voltar a ver-te), Lêdo Ivo; (Confissões de um poeta), Ana Hatherly (Tisanas), Jorge de Sena (Sinais de fogo), David Mourão Ferreira (Um amor feliz), Ovídeo (Metamorfoses e  Arte de Amar), Baptista Bastos (Viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura), Camilo Castelo Branco (A queda de um anjo), Rainer Maria Rilke (Uma biografia sobre Rodin de quem foi secretário) Francoise Gilot (Uma Vida com Picasso: uma biografia que já li dezenas de vezes ao longo dos anos e que continua a ser inspiradora de um tempo e de algumas vidas que me fascinam e que me fazem continuar a viajar em corpo e espírito) e Marguerite Yorcenar (a Obra ao Negro ainda é o livro que eu mais admiro pela genialidade da escrita e da trama). Claro que falo de releituras de parte destes livros, mas o pretexto é falar deles para quem no início do ano procura referências literárias e não sabe para que lado se virar). JAE.