sábado, 5 de fevereiro de 2022

Joaquim da Cruz: o rapaz da drogaria na Chamusca


Morreu o Joaquim da Cruz. Tinha 70 anos e ainda ontem era jogador da bola e vendia cal e pregos ao balcão de uma drogaria da Chamusca.

Morreu o Joaquim da Cruz, talvez um dos chamusquenses mais conhecido e estimado na terra. Quem tem a obrigação de escrever nunca fará justiça quando classifica a notoriedade das pessoas em relação a outras que morreram e todos esqueceram no dia a seguir. Mas arrisco afirmar que o Joaquim da Cruz era um rapaz, já com 70 anos, de quem toda a gente gostava, que trabalhou uma vida inteira atrás de um balcão até que a sua loja começou a dar prejuízo, e ele fez-se operário por conta própria; e assim foi ganhando a vida para manter a família e dar o exemplo aos filhos.

Quem tem boa memória, e numa terra pequena todos guardam os grandes dramas do tempo em que o mundo era mais pequeno, o Joaquim da Cruz perdeu há mais de três décadas uma filha, com cerca de 11 anos de idade, que ainda hoje é chorada por muita gente; naquela altura a dor de uma família da terra era a dor de toda a população. Hoje não é assim; definitivamente; perdeu-se o espírito de comunidade. As colectividades fecharam, as lojas de bairro acabaram, a vila desertificou-se, os supermercados são quase o único ponto de encontro onde é muito fácil desviarmo-nos de quem não queremos dizer adeus ou apertar a mão. Os políticos, a grande maioria, são uns estupores, que não percebem que estão nos lugares públicos para servirem a população e não para se servirem a eles próprios e aos seus amigos.
O Joaquim da Cruz era um tipo que podia ter sido capa de uma revista de moda quando tinha 20 anos por causa da cor da sua pele, das sardas, do cabelo e do seu corpo enxuto; era um tipo que driblava bem a jogar a bola e dançava razoavelmente; não era muito namoradeiro assim como a generalidade da rapaziada do seu tempo porque, na altura, começava-se a namorar muito cedo e, regra geral, a rapaziada casava-se por volta dos 20 anos com a rapariga com quem começavam a namorar aos 14 ou 15 anos.
O Joaquim da Cruz não jogava à batota, nem sequer à sueca, nem ao bilhar, às vezes jogava ao paulito, se bem me lembro; gostava de conversar e bebia minis, embora não fosse daqueles que bebesse o vinho e o juízo ou bebesse até cair. Foi sempre um tipo às direitas, como se dizia na altura, para classificar um homem bem-comportado em sociedade, e que servia de exemplo.
Tenho uma dívida de gratidão com ele, que paguei em parte, só numa pequena parte, com o pêlo do cão. Mas vou só falar da minha dívida e não do pêlo do cão. O Joaquim da Cruz foi daqueles que fez publicidade neste jornal, nos primeiros anos de vida, enquanto o negócio da drogaria foi próspero. Para ele fazer parte do jornal era uma obrigação, independentemente da linha editorial; o que lhe interessava era apoiar a iniciativa enquanto divulgava o seu negócio.
Também ele ajudou a pagar a aventura editorial de um jornal que durante os primeiros anos chegava de borla à caixa do correio de algumas pessoas, porque se recusavam a pagar a assinatura, e eu achava que elas deviam continuar a receber o jornal até morderem a língua, e devolverem o pacote postal, como aconteceu na maioria dos casos.
O Joaquim da Cruz nunca soube nada disto, nem eu lhe contei o que é que me passou pela cabeça para começar a escrever e a editar um jornal; nem isso interessa agora que já lá vão quase 35 anos; mas eu vi morrer a sua loja pouco a pouco, com as estantes vazias e a falta de clientes; entrei nos fundos da loja e vi o poder da caliça nas paredes e a humidade dos barrotes que sustentam uma casa; como vejo hoje a mesma realidade num espaço comercial que abandonei na Chamusca por estas e outras razões, mas onde vivi parte importante da minha vida e ganhei dinheiro para outros voos.
Soube que o Joaquim da Cruz passou os últimos tempos de vida no Hospital de Santarém mas, embora trabalhe aqui a dois passos, não fui visitá-lo nem dar-lhe um abraço. Desaconselharam-me a fazê-lo. Ainda hoje não sei porquê nem percebo porque fui na conversa. Tarde e más horas envio-lhe um abraço já com saudades, desta vez em letra de fôrma; e aproveito para recordar a homenagem que Ernest Hemingway prestou ao poeta John Donne que está algures neste trecho do livro “Por Quem os Sinos Dobram: “Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo o homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós”. JAE.

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