quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A ciência cidadã, a D. Isaura, a D. Emília e o cheiro das palavras

Uma crónica sobre conversas ao telefone depois das viagens, o lançamento de um livro que vai fazer história e um projecto de ciência cidadã que na próxima semana poderá ler nas páginas de O MIRANTE


Esta crónica tem as marcas de uma conversa ao telefone com Isaura Baptista Bastos e uma longa manhã de volta de meia centena de livros que viajaram comigo e que preciso de arrumar de forma a não os perder de vista conforme o interesse do momento: os que ainda não li, os que comecei a ler e deixei a meio, os que li quase até ao final e deixei em suspenso, e os que tenho que ler nem que a vaca tussa, mesmo que tenha consciência que o meu tempo é finito, e se me fecho em casa a ler fico o mais infeliz dos seres humanos.

A D. Isaura tem 85 anos e é uma orgulhosa companheira de vida, e de uma vida, do jornalista e escritor Baptista Bastos que faleceu em Maio de 2017. De vez em quando falamos ao telefone e pomos a conversa em dia. Não conheço ninguém que tenha tanta alegria de viver e esteja dependente de uma cadeira de rodas, e de um andarilho, por causa de uma queda que lhe causou diversas fracturas. Cada vez que conversamos encho duas folhas de notas. Não sei para que vão servir mas é o hábito que faz o monge. Estamos sempre ligados embora só falemos de tempos a tempos. Eu porque continuo leitor e admirador do autor de "Bicicletas em Setembro" e Isaura porque vai lendo O MIRANTE como se fosse o jornal da sua terra ( e é de certo modo porque a casa em Constância ainda existe, e eu nunca vou esquecer o passeio pela Chamusca a procurarmos uma casa que eles queriam comprar por razões que agora não interessa explicar).

Esta coisa de escrever deve-se muito ao facto de as palavras terem cheiro, de haver palavras que não pronuncio por serem feias, de viajar muito, na maioria das vezes de forma imaginária. Sim, porque eu estou agarrada a uma cadeira de rodas, mas estou sempre a sonhar, embora não realize a grande maioria dos meus sonhos. Nem quero realizar. Depois como é que continuava a sonhar? O meu marido foi o jornalista que mais escreveu sobre Lisboa, mas as crónicas e as entrevistas que publicou, nomeadamente  no jornal O Ponto, jamais serão esquecidas. Tenho saudades dele, dos livros que recebia em casa, de o ouvir ler um livro de um novo autor e dizer que gostava mais do original.

Estou a misturar palavras minhas com frases de Isaura Baptista Bastos para que a crónica avance e os leitores não me chamem chato, habituados que estão a que eu seja pão pão queijo queijo. O problema é que preciso sair para a rua e dar uma volta de moto, e apanhar sol na careca e vento no rosto. Isto de ficar horas e horas seguidas agarrado aos livros dá mau resultado. Ficamos mais inteligentes mas mais curvados, mais velhos, gozamos menos os prazeres físicos das caminhadas, dos passeios à beira mar, das visitas à beira Tejo e, acima de tudo, das viagens sem destino que só possíveis quando nada nos obriga a ficarmos agarrados a um computador ou a um posto de trabalho.


No passado domingo fui participar numa iniciativa de um projecto de ciência cidadã com mais meia-dúzia de almas. Foi na Azinhaga por onde passa o Almonda que está infestado de jacintos, não tem fauna piscícola mas tem água suficiente para um barco descer até ao Tejo. Falo do assunto porque no regresso à Chamusca meti pela estrada do campo até ao Barracão do Duque e evitei passar na Golegã. A Feira para mim já era. Assim que terminar volto lá para comer um peixe assado na Adega do costume.


Domingo, dia 17 de Novembro, vou apresentar o livro de Emília Infante Pedroso que, finalmente, está nas bancas. Não acredito que o livro se torne um best seller, mas acredito que vai ter muitos leitores, e alguns vão gostar de ler a história de vida de uma menina de bem, que aos vinte e poucos anos foi internada à força, depois de ter fugido com um hippie e ter sido presa em Espanha por ordem da família. Emília Infante Pedroso descende de uma das famílias mais conhecidas da vila, e a sua autobiografia vai ficar a marcar para sempre o meio chamusquense, que nunca teve ninguém com o seu estatuto a escrever sobre a terra e algumas aventuras e desventuras. JAE.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Uma leitura que é uma aventura: "O Coronel e o Lobisomem"

Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Quem me conhece sabe que não sou loroteiro ou espalhador de falsos. Mato a cobra e mostro o pau. Com esta voz grossa que Deus engastou na garganta do neto do meu avô, não há desavença que eu não desmanche na força do berro, muitas vezes no intervalo de uma chupada no charuto debruçado na varanda do beiço. 

Um dia encontrei um camarada vingancista que ameaçou que eu não pegava o tempo das águas com vida no corpo. Como fosse mês de agosto aproveitei para fazer ironização: seu boi de chocalho, em tempo de sapo, de jacaré pedir agasalho, já combati até com trovão. E sou homem de comer vivinho qualquer querelante (embora de verdade, no meu natural, até sou capaz de pular de lado para não matar minhoca). Metido ao barulho, disse sem ostentação que Deus não cresceu o neto do meu avô para que ele desperdiçasse toda essa grandeza em raiva de anão, em ódio de sujeito nascido para caber em anel de costureira, aguardenteiro de curtas letras que mal sabia assinar escrituras e recibos de cachaças.


Sosseguei na espreguiçadeira,  bem comido e charutado, barba repousada no peito. Senti no rosto um ventinho candeeiro de água. Enquanto dormitei, ri no íntimo e abri o livro de S. Cipriano em parte que eu conhecia: o caso de uma penitência levada da breca, coisa acontecida num longe antigamente, que nem o lobisomem era de existir mais de corpo inteiro. Um cachorro olhava e gemia um gemido comprido, de ser medido a metro. Um boiadeiro, joelho em terra, pois era muito devocioneiro, procedeu ao sinal-da-cruz, e em reza forte caiu e depois sumiu em viagem maluca no seu cavalo branco de luar.


Por causa de uma menina professora nunca andei tão embonecado na vida, e viajava de longe a mata-cavalos em água de cheiro, coisa de causar admiração mesmo ao nariz mais acostumado a essa mimosura. Só do baú de um cometa arrematei toda a praça de sabonete, fora as encomendas. O povo fuxicava de tal esmero: o Coronel tem moça em vista. Nem galante das ribaltas podia comigo. Quando retirava o lenço do bolso traseiro, que é onde aprecio guardar essa utilidade, o cheiro do frasco saltava longe. Nos rodados do vestido da menina Isabel, meu atrevimento encolhia. A boca do Coronel, dona de tanta fala, nessas especiais circunstâncias perdia venenos. Um dia, a moça que era de trato fino, rasgou seda: muita honra, Coronel. Respondo no mesmo pé de educação: a honra é minha e dela não abro mão.


No tempo em que ainda era negócio limpar picada de surucucu, já havia curador que em mais de um mês não tinha um caso de veneno. O povo botava de quarentena o ofício de Tatu e a criançada corria de urina no ponta do birro ao sentir o cheiro da mulinha do curador que tinha fama, vinda de longe, de manobrar dente de cobra. Noite alta, no cemitério de São Gonçalo, viram o curador alisar a cabeça de jaca de uma surucucu; não só alisou como falou na orelha dela coisas e segredos próprios das serpentes. Com a ponta do dedo avivou o saco de peçonha da cobra que logo ficou tomada de raiva, possessa, e por um buraco da coberta picou um pardavasco em veia mortal. Foi ele e outro alguém nenhum, que desses poderes do mato só Tutu tem a segredagem, disse o povo acusador. 


Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Um danoso de um Lobisomem, se passasse no carrascal, não fazia tanto estrago na coragem dos meus agregados. Encarei de frente o medo da comitiva era de escorrer do rosto igual a leite de mamão. Segurando esses receios pela goela, fingi aborrecimento. Isto é uma companhia de caça ou acompanhamento de defunto?


Sei comandar com mão de ferro e punho doce. E se for cavalo sou capaz de o fazer relinchar nas patas do coice. Nas minhas viagens nao careço de mijão na rabeira; e hoje cheguei de viagem no Sobralinho mais água podre do que gente. 


O texto desta crónica é roubado à leitura de um livro que é um dos melhores de sempre em língua portuguesa, do Brasil, e que embora já tenha chegado à meia centena de edições, sempre pela mesma chancela, nunca me apareceu pela frente. Até há meia dúzia de dias no mesmo lugar de sempre, no Rio de Janeiro, em casa de amigos que gostam tanto de vinho ribatejano como de livros. Chama-se O Coronel e o Lobisomem, da autoria de José Cândido de Carvalho, e é uma experiência de leitura de se lhe tirar o chapéu e o couro cabeludo. Não resisti ao prazer da leitura e fui roubando alguns trechos que juntos deram esta crónica. 

Uma nota final: os editores europeus perdem as botas e os sapatos de engraxar a caminho das feiras do livro de Frankfurt e etc, para comprarem direitos de autor de escritores que, a maioria das vezes, são ou foram alunos de escrita criativa dos professores universitários que trabalham para as editoras. E assim se faz a vida e enchem as estantes de novas estrelas, e se esquecem, e muitas vezes se escondem, as verdadeiras jóias da nossa literatura. Neste caso acho que nem podemos falar de dinheiro e interesses económicos, mas de uma estúpida ignorância sobre a realidade da literatura brasileira e da sua qualidade. JAE.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O fecho do edifício da Segurança Social: os políticos não berram com medo de serem chamados de ovelhas?

O edifício da Segurança Social de Santarém está fechado porque põe em risco a saúde dos seus trabalhadores. O caso é recorrente. A instituição é uma das mais importantes do Estado, talvez mesmo a mais importante. Santarém está a sair do mapa? Parece. Desculpem qualquer coisinha mas o que se está a passar parece brincadeira de carnaval.


Três horas numa livraria de um aeroporto passam tão rápido como a leitura de um poema. Mas em três horas, quando a livraria é grande, como era o caso, dá para ler e reler vários livros, actualizar a saída das novidades, tirar notas sobre alguns títulos e autores e, acima de tudo, fotografar para a galeria do tmv as capas dos livros que hei-de procurar nos próximos tempos no mercado dos livros usados.


Hoje ouvi um taxista, a contar de outro taxista, como o colega foi apanhado a roubar turistas no cartão Visa na hora do pagamento. E como ele diz que reage cada vez que lhe aparece um gringo com a pele cor de laranja a querer uma viagem no seu táxi. Ele confessa que entra em êxtase, em paranóia, a tentar perceber quanto é que vai conseguir roubar. Conta que os olhos dele brilham mesmo agora que está a contar depois de ter sido apanhado em flagrante, ter apanhado duas semanas na prisão e ter gasto com um advogado metade do que roubou nestes últimos dois anos para agora estar solto. Enfim, todas as histórias mais macabras de alguns livros não ganham à realidade nua e crua que nos morde os calcanhares todos os dias.


Passei um mês sem atender ou fazer chamadas de telefone. Só usei o WhatsApp com quem sabia que eu estava offline na rede da Vodafone. Mas não deixei de cair no conto do vigário das empresas de comunicação. Numa das viagens liguei o número alternativo para as atrapalhações e esqueci-me de desligar os dados móveis. Assim que entrei no éter caiu uma mensagem a informar que iam ser debitados 40 euros na minha conta. Tudo sem que eu fizesse qualquer chamada. Se isto não é uma gatunice é o quê? O problema é que todas as operadores trabalham com as mesmas regras para fora da Europa. Só baixam os preços e as condições quando forem obrigados, como aconteceu recentemente para toda a UE por decisão conjunta dos países. Cambada de sacanas é o que eles são. Vou usar a rede o menos que puder e usar o WhatsApp até à exaustão. E vou escrever à ANACOM a pedir contas.


Na passada semana se fosse eu a desenhar a primeira página do diário O MIRANTE dava a capa toda à Conceição Silva que conta uma história de vida que é um exemplo para muitos de nós que queremos morrer por causa de uma queda à saída da porta da rua. A sua história de vida vale por uma dúzia de livros de auto-ajuda; e é um exemplo de superação que todos devíamos lembrar sempre que choramos ou baixamos a cabeça perante aqueles desafios mesquinhos do dia-a-dia que nos tiram anos de vidas, quando muitas vezes só precisavam do uso da nossa capacidade de fechar os olhos e seguir em frente.


O edifício da Segurança Social de Santarém tem um problema grave que impede os seus trabalhadores de comparecerem ao serviço correndo riscos de saúde. O caso tem muito tempo e parecia ter sido resolvido com as obras de há cinco anos. Não foi e volta a repetir-se obrigando ao fecho das instalações. Estão fechadas desde 1 de Outubro e ninguém sabe quando abrem. Santarém é a capital do distrito de Santarém, não é uma povoação do interior com meia centena de habitantes. Por muito respeito que nos merecem as aldeias, e merecem, estamos perante um ataque a uma cidade que tem perdido quase todos os serviços do Estado e agora até um serviço local de grande importância para a comunidade fecha de um dia para o outro como se os interesses dos cidadãos pudessem ser usurpados a qualquer altura. Não temos nada contra a Segurança Social, e muito menos contra o seu actual presidente que é Octávio Oliveira, um conhecido dirigente do PSD da região, conceituado pelos vários cargos que já exerceu na região e no país. Mas há aqui qualquer coisa que não bate certo. Não há explicações  para dar à população: a comunicação social não merece uma explicação para poder, em nome do interesse público, comunicar com os leitores que esperam que não nos acomodamos e façamos o nosso trabalho? É preciso escrever ao primeiro-ministro para sabermos se as instalações da Segurança Social de Santarém estão embruxadas ou é a cidade de Santarém que fica tão longe da civilização que os seus habitantes bem podem protestar que estamos condenados à miséria franciscana? Eu não me conformo e sou daqueles que ainda sonha viver dentro de uma caravana no meio do campo para não pagar rendas e impostos e, quem sabe, perder o cartão de cidadão e nunca mais o encontrar. É claro que estou a falar de projectos para daqui a uns anos quando já não acertar com as teclas do computador.

Resumindo: um pouco de humor não fica mal depois de me terem escrito para falarmos deste assunto até à exaustão porque há aqui tramóia, e em Santarém falta cidadania activa, os políticos não berram com os líderes das instituições com medo de serem chamados de ovelhas e quem paga é o cidadão? Só estou a perguntar porque a Segurança Social é uma das maiores instituições do Estado e os seus dirigentes não vivem dentro de uma redoma, ou pelo menos não deviam viver. JAE.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Touradas à vara larga no Ribatejo, Rilke, Rodin e Cézanne

Num tempo em que está quase tudo em regressão, a começar no SNS e a acabar nas grandes bebedeiras que se vivem nos Ministérios, onde os parasitas se instalaram para que a reforma do Estado nunca mais se faça, falar de arte e de artistas pode ser gozar com quem trabalha, mas não é, porque até me dói a mão por não conseguir ainda dizer mal dos gajos dos sindicatos que se tornaram meninos de copo de leite.


Mesmo longe do trabalho, melhor dizendo, mesmo longe do ambiente de trabalho, não passo menos de duas a três horas por dia no computador a pôr o correio em dia, tratando de assuntos pendentes ou de novos assuntos que vão caindo no colo, embora indirectamente. Nada disso me impede de fazer caminho, de conhecer novos lugares e pessoas (dantes escrevia fazer novos amigos), ler muito e ver cinema que é, em conjunto com a leitura e a escrita, a minha ocupação preferida.

Há um ano encontrei finalmente em tradução para português um livrinho de Rainer Maria Rilke que procurava há cerca de uma década e que tem sido uma fonte de inspiração ao longo de releituras que fui fazendo nos últimos tempos. No dia anterior ao que escrevo esta crónica  encontrei outro livrinho, cuja existência desconhecia, e que explica segredos da escrita do outro, tão precioso ou ainda mais que o anterior.

O primeiro era sobre a arte de Rodin, este é sobre a arte de Cézanne. Não sou nem quero ser crítico de arte, mas as biografias dos grandes artistas interessam-me como me interessa ter boa saúde. Daí que depois das tais três horas de trabalho a um sábado, fechado num quarto de hotel, tenha continuado de olhos postos num livro, e depois no computador, para fazer pesquisas lendo sobre um artista "que teve uma vida inteiramente dedicada ao trabalho, sem o apoio de ninguém, sem descanso e sem medir consequências", construindo "uma obra que a maior parte dos críticos depreciará grosseiramente durante a vida do pintor". 

Tal como Rilke, ao visitar durante vários dias a mesma exposição de Cézanne, procurou captar influências para a sua Obra, também eu, ao dedicar-me à leitura destas biografias que contam a vida de figuras que viveram há mais de um século, procuro um sentido para ver melhor o que me interessa, como hei-de sobreviver no meio da selva onde me perdi e me achei várias vezes, tal como se vive para obedecer ou respeitar um oráculo: já vi e vivi muito, mas nada que me satisfaça o suficiente para viver sem trabalhar.


Num tempo em que parece que regredimos décadas no SNS, e o novo governo ainda não teve tempo de substituir todos os gajos encartados que tomaram conta da máquina do Estado, e fazem gazeta ao trabalho; repito: num tempo em que o novo Governo em vez de limpar os Ministérios, como por exemplo o da agricultura, cheio de parasitas, que só fazem peso ao chão e ganham do bom e do melhor, em vez disso anuncia que vai limpar os quadros da RTP que, por muito que também precise de uma limpeza não me parece de todo uma prioridade; num tempo em que a imigração continua descontrolada, a Caixa Geral de Depósitos e banca em geral continuam à rédea solta; num tempo de vacas magras, falar de Rilke e de Rodin e de Cézanne até parece que estou a gozar com quem trabalha. De verdade não estou, mas também não sou o pai da malta. E até me dói a mão de não conseguir escrever contra os gajos dos sindicatos, que se transformaram em meninos de copo de leite bem remunerados, a confiar no que vai acontecendo por aí em algumas autarquias, onde as touradas são à vara larga, mas os sindicatos deixam andar porque, ideologias à parte, todos os autarcas são toureiros da mesma quadrilha e que ninguém pense em mexer com os interesses instalados. Quanto a alguns trabalhadores, bico calado ou ainda perdem o emprego e a boa vida. JAE.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Acervo literário de António Lobo Antunes foi projecto para uma Casa da Literatura em Torres Novas

No mandato de António Rodrigues a câmara de Torres Novas aprovou em 2008 a cedência de uma habitação de férias que tinha como contrapartida a cedência pelo escritor de um vasto acervo literário. A ideia não passou do papel.


O escritor António Lobo Antunes, ponderou a possibilidade de ter uma casa no concelho de Torres Novas, cedida pela câmara municipal, e chegou a deslocar-se ao concelho para a visitar, mas a ideia foi abandonada, sem que tenha sido divulgada qualquer explicação.

A minuta do protocolo de cedência da 'habitação de férias', foi aprovada a 31 de Janeiro de 2008, pelo executivo municipal, no decurso de uma reunião privada. O edifício que o escritor iria utilizar, seria o da antiga escola do primeiro ciclo do Almonda, após obras de reabilitação.

O período inicial de utilização seria de vinte anos, em regime de comodato e, em troca, o escritor cederia o seu acervo literário à autarquia, constituído pela biblioteca pessoal, incluindo primeiras edições de obras de sua autoria, manuscritos e objectos pessoais, fotografias, pinturas, bem como prémios e condecorações, para futura criação de um núcleo literário na cidade, denominado Casa da Literatura.

A única ligação conhecida, que o escritor tinha a Torres Novas, era o facto de o seu irmão, Pedro Lobo Antunes (falecido em Dezembro de 2013), ali residir na altura, e ser vereador na autarquia, que era presidida por António Rodrigues (PS).

“É do interesse do município de Torres Novas criar um espaço para conservação e divulgação do espólio de António Lobo Antunes, no âmbito da política de revitalização cultural consagrada nos projectos Cidade Criativa e Torres Novas.pt (ponte para todos), que passa, pela recolha, conservação e disponibilização ao público de novos acervos artísticos e literários de relevo”, podia ler-se na minuta do protocolo que António Lobo Antunes acabou por não assinar.


Reedição de biografia de António Lobo Antunes que todos vão querer ler

O escritor António Lobo Antunes, que esteve para inaugurar uma Casa da Literatura em Torres Novas, deixou de escrever por razões de saúde. A reedição de uma biografia de João Céu e Silva conta como o escritor ficou “Irreconhecivel”.

Há um livro que todos os portugueses vão querer ler, mais tarde ou mais cedo, que é a biografia de António Lobo Antunes (ALA), que João Céu e Silva acaba de reeditar com a chancela da Contraponto do grupo Bertrand. Exagero na generalização? Talvez. Mas arrisco o palpite. António Lobo Antunes deixa uma marca na literatura portuguesa que pode ser superior a tudo o que até agora se julgava. Muitos de nós não tivemos paciência para o ler como eventualmente merecia, mas ele nunca se cansou de escrever, e dizer, muitas vezes até de forma arrogante, que andava a escrever o que de melhor a literatura portuguesa já teve na sua história mais recente.

A reedição da biografia de António Lobo Antunes, escrita por João Céu e Silva, tem muitas novidades em relação à primeira edição, e a informação mais importante é a de dar conta que o escritor está demente e, logo, “irreconhecível”, como escreve o seu biógrafo situando-nos nos últimos dias do ano de 2023, depois do autor de “Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar” ter sofrido de uma pneumonia, que curou no hospital, quase passando incógnito durante o internamento. Mas o problema de saúde que o fez desinteressar da escrita já vinha desde o período do confinamento da pandemia da covid 19. O homem que vivia para escrever, e que sentia culpa quando não escrevia, como se lhe tivessem dado um dom e não o estivesse a transmitir, perdeu a noção do mundo que o rodeava; “Ele que fumava como se imitasse a respiração, agora nem sabia para que servia um cigarro, mesmo que, de muito em muito longe, levasse os dedos à boca num gesto sem propósito”.

Viajei com a biografia de ALA na mala e a presença do livro é quase um desassossego. Acabei de percorrer uma rua movimentada de uma grande cidade e de passar por um vendedor de rua que tinha “Memória de Elefante” no chão, entre dezenas de outros livros desinteressantes. Embora a minha relação com o dinheiro esteja numa boa fase (gasto dinheiro em livros sem querer saber se há amanhã), só precisei de gastar um euro e meio para comprar este exemplar em bom estado de conservação. Aqui onde estou é tudo barato, principalmente os livros em segunda mão. A epigrafe do livro é esta: “Há sempre uma abébia para dar de frosque, por isso aguentem-se à bronca. Sentença de Déde ao evadir-se da prisão”. “Memória de Elefante" é o primeiro romance de ALA, lançado em 1979, e a epígrafe parece ter sido escrita para lembrar a aventura dos reclusos que recentemente fugiram da cadeia de Alcoentre.

Na cidade do México, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Buenos Aires, Londres, Paris e Madrid, só para citar algumas das maiores cidades do mundo, é normal encontrar livros de Paulo Coelho nas ruas, livros baratos que na maioria dos casos custam menos que um galão e um pão com manteiga. António Lobo Antunes também começa a ser popular no estrangeiro, ao ponto dos seus livros começarem também a ser negócio para quem faz banca no chão e vive do que a rua lhe reserva. Foi hoje o caso. Precisava deste encontro para trocar a ida à praia por duas horas ao computador para alinhar estas palavras e escrever que João Céu e Silva tem nas bancas um livro biográfico que vai fazer história, um livro imperdível sobre uma alma atormentada que nos deu uma Biblioteca de Babel nos seus quase cinquenta anos de escrita, ao ponto de confessar que quando não estava a escrever se sentia culpado, como se lhe “tivessem dado uma coisa e não estivesse a transmiti-la”.

ALA foi sempre marcando pontos nas entrevistas que deu ao longo da sua vida. Há vários livros só de entrevistas assinados por diferentes autores, onde ele exercita esse dom de falar de si e da sua arte como poucos escritores o souberam fazer, mas nesta viagem com João Céu e Silva os tempos são outros, as falas retratam uma realidade onde já se pode fazer um retrato definitivo do escritor, embora correndo sempre o risco de o definitivo voltar a provisório devido à grandeza da sua Obra e do que vai deixar em testamento, para além do que se conhece.

António Lobo Antunes está vivo mas demente, a cabeça deu o berro, mas o que ele escreveu e disse ao biógrafo vai perdurar nos tempos que se vão estender por muitos e muitos anos.

O biógrafo diz que nas últimas sessões gravadas para este livro ficou com a sensação de que ele estava a fazer as últimas confissões ao mundo:  “disse tudo sobre si e sobre os que ama; falou de quem ignora, respeita ou admira; benzeu e excomungou; desfez e elegeu o melhor e o pior dos homens e das mulheres que conheceu; definiu o bem e o mal sob o seu olhar; estruturou e desconstruiu  factos aceites e memórias ditadas e, principalmente, foi o escritor cuja alma não se desliga já do corpo do homem”.

“Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes” é a narrativa do ocaso de um escritor, entrelaçado com a história de quatro décadas de uma revolucionária criação literária, que o tornou no principal autor vivo de língua portuguesa”. JAE.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

A lição que José Saramago deu a Santarém ao escrever a História do Cerco de Lisboa

José Saramago escreveu "História do Cerco de Lisboa" sempre a pensar na cidade de Santarém e na conquista do castelo aos mouros. Aparentemente ninguém da área cultural da câmara leu o livro, e se leu desperdiçou uma boa oportunidade de chamar a terreno o livro e uma certa propriedade sobre a obra que Saramago nos legou.


Tal como escrevi na crónica anterior li "História do Cerco de Lisboa" nos primeiros cinco dias de uma viagem que mesmo agora começou. O meu Saramago de "Memorial do Convento" fraqueja em alguns romances, mas este, embora não se leia de uma penada (é preciso ir procurando motivação a cada página), tem uma particularidade que me agradou e impulsionou à leitura sem medo de ficar pelo caminho: a História não é só sobre o Cerco de Lisboa, é também ao longo de todo o romance histórico a memória da conquista de Santarém aos mouros pelas tropas de D. Afonso Henriques, que aconteceu meses antes deste Cerco de Lisboa. Das referências ao livro nunca li sobre essa particularidade que, acredito, só interessa aos bairristas como eu, ou, melhor dito, aos que gostavam de ver a região de Santarém no mapa e menos genuflexões da classe política aos poderosos da capital. Dou um exemplo: a região do Ribatejo, e Santarém em particular, têm condições para organizar uma Feira de Turismo em vez de ir encher os bolsos dos gestores da FIL. É mais fácil cada concelho da região ir em excursão para Lisboa, mas seria muito mais rentável, lógico e politicamente correto, que fossem os lisboetas a virem a Santarém ou à região do Ribatejo à procura do turismo mais barato e de qualidade, que ao contrário, sermos nós a montar a banca no território lisboeta deixando lá os anéis e os dedos. 

A casa e os caminhos de José Saramago na Azinhaga são só um dos mil pretextos para provarmos que também sabemos vender o nosso património imaterial, já que o material está aí à vista de toda a gente. O português da área metropolitana de Lisboa ia adorar saber que o Ribatejo está a renascer para o turismo e tem ofertas imperdíveis que não se encontram no litoral nem nos algarves.


Lendo Saramago em “História do Cerco de Lisboa”, não é difícil perceber que as dezenas de vezes que o autor de "Pequenas Memórias" recorda a  tomada de Santarém aos mouros, enquanto desenrola a sua trama, está a carregar na tinta em nosso nome, a desafiar-nos a não nos vergarmos à importância da cidade do mar da palha, quando o Tejo largo e inspirador tem o seu maior encanto é enquanto se espraia na Lezíria e no bairro das terras que unem os ribatejanos e os beirões. Aparentemente ninguém ligado ao pelouro cultural da cidade de Santarém leu este livro publicado há trinta anos. Se leu desperdiçou uma boa oportunidade de chamar a terreno o livro e uma certa propriedade sobre a obra que Saramago nos legou.

A agricultura já foi, e as tradições ligadas à vida agrícola já eram há muitos anos, mas a Feira Nacional da Agricultura continua aí como se a agricultura ainda fosse a nossa identidade económica e cultural. O Turismo é há muitos anos a galinha dos ovos de oiro, anunciada e festejada em todas as regiões, mas principalmente em Lisboa onde a actividade já ultrapassou todas as limitações impostas por uma política de protecção dos interesses dos munícipes e da própria sobrevivência e identidade da cidade. No entanto, aqui em Abrantes, Tomar, Torres Novas, Ourém, Almeirim, Santarém, Cartaxo e Azambuja, só para citar alguns concelhos mais importantes, a mentalidade ainda é a dos velhos agricultores, hortelões e criadores de gado que justificavam a Feira do Ribatejo. Sem querer ofender os políticos que estimo, e com quem gosto de ser solidário no dia-a-dia, sabendo que o nosso país é governado entre a Assembleia da República e o Terreiro do Paço, pergunto: não está na hora de nos deixarmos de tantas touradas e pegas de caras e apostarmos mais no turismo e nos turistas que gostam mais de ir ver os bois ao campo do que nas praças de toiros? 


Esta lição de José Saramago, que aparentemente ninguém leu, ou se leu fez moita carrasco, deveria ser estudada e posta em prática. 

Do romance não falo porque cada um come o que quer em termos de literatura. Aviso já que o texto não é para qualquer um. A história volta a ser biográfica porque o personagem principal trabalha numa editora como revisor, oficio que José Saramago também desempenhou durante cerca de vinte anos, muitos antes de "Levantado do Chão", embora também traduzindo livros e secretariando na relação com os autores, como provam as imensas cartas com os grandes escritores seus contemporâneos, e não só. JAE.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A CGD cobra dez euros pela recuperação do pin do multibanco

A CGD está a penhorar os bens de casa de Joe Berardo para conseguir recuperar alguns créditos concedidos em situação de alto risco e que o empresário nunca pagou. Entretanto a gestão danosa dos gestores ficou por julgar e agora quem paga é o povo e as autarquias começam também a dar um jeitinho. 


A Caixa Geral de Depósitos (CGD) é o banco do Estado mas não há nada na sua organização que o diferencie da banca privada e comercial que trabalha no mercado. Pelo contrário. As regras para as pessoas que trabalham para o Estado não facilita que o cidadão receba o seu vencimento se não tiver conta na instituição, e há casos em que a cobrança por um pequeno serviço é pornográfico, o que não acontece com outros bancos. Dou um exemplo: se nos esquecermos do pin do cartão temos que pagar dez euros para nos darem novo número. Em qualquer banco da concorrência é minha convicção que o gestor de conta resolve o assunto com uma perna às costas. Na CGD é tudo como nas grandes empresas onde se paga o luxo do atendimento presencial, das instalações, dos horários dos balcões cada vez mais reduzidos. Na CGD quase que podemos pôr as mãos no lume em como não acontece nada parecido com o caso BES, mas no resto é tudo pior que a banca concorrencial.

Por ser um banco do Estado, a CGD está ainda sujeita a servir de conforto aos políticos que governam o país quando são mais oportunistas e aproveitam a sua situação de privilégio para beneficiarem os amigos ricos que dominam a economia. Era normal que a CGD fosse o banco do povo no crédito à primeira habitação e ao apoio ao primeiro negócio, ou à criação de trabalho por conta própria. Infelizmente não é nada disto que se passa. O exemplo mais conhecido de má gestão,  verdadeiramente escandaloso, é o de Joe Berardo, que se aproveitou dos políticos amigos do Partido Socialista que tinha na gestão do banco do Estado para enriquecer ainda mais. Nesta altura a instituição está a penhorar os bens da sua casa, o que é ridículo e mostra até que ponto as instituições do Estado podem ser um buraco negro quando são geridas por gestores incompetentes. 

O fecho dos balcões da CGD, já anunciados, é uma vergonha para o seu actual presidente, Paulo Macedo, que deu crédito à instituição e que já manifestou o desejo de continuar no lugar. Mas as notícias que chegam da Chamusca e de Alpiarça confirmam aquilo que já sabemos: as autarquias vão dar uma mãozinha ao banco do Estado que em nada se diferencia nos serviços bancários aos seus munícipes.

Não é justo. Os autarcas são livres de fazerem como entendem a gestão do orçamento da câmara, mas é preciso denunciar estes favorzinhos, estas negociatas que não fazem qualquer sentido quando o banco não beneficia em nada os munícipes do concelho nem vai beneficiar no futuro.

Os favorzinhos de alto risco que marcaram a vida da CGD entre o ano de 2000 e 2015, fez com que Joe Berardo deixasse uma dívida monumental que agora a actual administração quer reaver penhorando os bens de casa. Não vai chegar nem para as despesas, mas pelo menos o Estado mostra que é pessoa de bem. Falta mostrar que somos mesmo um Estado de direito e levarmos a tribunal os gestores que promovem estas desgraças de gestão danosa, já que não há nada a fazer quando nos pedem dez euros para recuperarmos o pin do cartão multibanco. JAE.