quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Mudar os pneus faz toda a diferença

O tesouro perto de nós é inerte, como se não existisse só a viagem é que faz com que o tesouro exista.

Tenho uma mota Yamaha XT 600 comprada ao Fernando das bicicletas na Feira da Ascensão de 1998. É a minha mota de eleição apesar de ter uma outra mais nova a que hoje dou pouco uso. Não há dia que não ande de mota desde há cinco anos quando mudei de morada. Antes, a moto era para dar umas voltas pela charneca ou pelos campos do Ribatejo ao fim-de-semana quando ficava na Terra Branca. Hoje é para percorrer a cidade entre a casa e o ginásio, a praia, o cinema e as livrarias, e muitos outros afazeres que preenchem a vida de um homem que não gosta de rotinas mas nem sempre consegue fugir ao ramerrame do dia-a-dia.  A moto ainda não tem 25 mil quilómetros e acabo de lhe mudar os pneus, o que me fez sentir que tenho uma mota nova. Não fazia ideia que uns pneus novos podiam alterar o equilíbrio na mota, dar-lhe outra performance na estrada, maior segurança, um prazer ainda maior de fazer as curvas. Quero dizer:  acho que sabia, mas esqueci-me, a borracha dos pneus ficou requeimada mas o rasto manteve-se bom o suficiente para eu julgar que estava seguro em cima da mota. Não estava.  

Curiosamente liguei recentemente a um médico meu amigo a dizer-lhe que precisava de uma consulta e ele disse-me para aparecer que tínhamos que mudar os pneus e as câmaras de ar para eu não me estampar pelo caminho. Foi já depois de ter mandado mudar os pneus da moto. Contado ninguém acredita mas é verdade. A vida vai-se vivendo e escrevendo de pequenas e grandes aprendizagens.

Escrevo esta crónica no aeroporto de Lisboa, a caminho de um destino africano, já a sentir-me a viajar com pneus novos. Curiosamente esta sensação de partir também tem mudado ao longo dos anos desde que li que a verdadeira viagem é a do regresso. Levo comigo uma biblioteca porque acho que vou ter o tempo todo para ler. Inclui um livro com o título "O Cunho do Editor, que tem uma história maravilhosa entre um rabi que vivia em Cracóvia e um chefe dos guardas de uma ponte em Praga, capital da República Checa, que gira à volta da procura por um tesouro que afinal estava no lugar mais improvável do mundo, mas que o rabi só descobriu porque fez a viagem para o lugar errado. A conclusão do autor do livro é tão bela como a história: "o tesouro perto de nós é inerte, como se não existisse. O verdadeiro objectivo é a viagem, aliás, a viagem improvável. Uma viagem improvável porque leva para longe, para um lugar incongruente, e, sobretudo, porque requer confiança (...) em algo que, por definição, é fugidio e não dá garantias: um sonho. Mas só a viagem é que faz com que o tesouro exista". JAE.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

O teatro de Mónica Calle, o destino de António Costa e as palavras chulas que sabe tão bem utilizar

Numa semana em que em Portugal tudo voltou a desaguar no mar da palha, sem honra nem glória, trago aqui uma história da ida ao teatro de onde trouxe uma palavra chula que serve de pretexto para deixar uma pergunta ao ainda primeiro-ministro António Costa.

A saída de um teatro, depois de ver um espectáculo, é para mim ainda teatro. Regra geral tento sempre ouvir os comentários colando-me às pessoas, ziguezagueando para perceber que conversa me interessa mais. São dois minutos apenas, no máximo, conforme a saída do teatro dá para a rua ou para um espaço ainda interior, onde pode existir uma livraria, ou uma outra forma de adiar a dispersão das pessoas ainda tocadas pela arte de Molière. E o que ouço, muitas vezes, ajuda-me a perceber melhor os meus gostos, a formar a minha opinião, a perceber porque vamos em rebanho ver e ouvir actores em palco a fingirem vidas que não existem, e a darem corpo e voz a histórias na maioria das vezes inventadas.

Na passada semana fui ver “Salomé” ao Teatro São João, no Porto, encenado pela Mónica Calle que é uma das minhas actrizes e encenadoras de eleição. A plateia e o primeiro balcão estavam quase cheios, embora fosse uma quinta-feira. À saída formou-se um cogumelo de pessoas, as primeiras a sair do teatro, onde me encontrava. Uma Senhora, talvez da minha idade, baixa estatura e parecida com a D. Micaela, dona de uma antiga mercearia que ficava colada à minha casa de família, vinha divertida e com um sorriso disse em voz alta para um dos seus pares: “hoje não dormiste, deves ter ficado todo o tempo com os olhos bem abertos... seu c@ralh*”. Na altura em que disse o palavrão os meus olhos cruzaram-se com os dela; deve ter reparado que eu era sulista e levou as mãos à boca sem deixar de sorrir e de fazer a festa e deitar os foguetes no meio do grupo que a acompanhou e que era todo mais ou menos da mesma idade. A actriz que encarna Salomé, Mónica Garnel, esteve quase sempre nua ou seminua em palco, assim como a maioria dos seis actores, e por isso o comentário brincalhão à saída entre pessoas que provavelmente são presença assídua no teatro São João.

A actividade política em lugares de responsabilidade, seja no Governo da Nação ou nas autarquias, devia ser o serviço que todos os cidadãos prestam ao seu país devolvendo tudo ou quase tudo aquilo que o país já fez por eles. A frase é velha e faz parte do vocabulário de muitos políticos. Ouvi-a dezenas de vezes na minha vida de convívio com políticos encartados, uns mais que outros, enquanto vendiam o seu peixe. A verdade é que é muito raro encontrar um político que tenha cumprido, ou que esteja a cumprir, este desígnio. Por isso a política é cada vez mais um teatro, como se comprovou agora com a demissão de António Costa que terá sido o primeiro político português na chefia de um Governo a pedir desculpa aos eleitores já depois de ter caído do pedestal; e, sem rebuços, anunciou que provavelmente já não deve regressar à vida pública, ele que nos últimos anos era notícia quase todos os dias por poder vir a presidir a um grande organismo internacional. António Costa sabe como funciona a Justiça e os anos que estes processos demoram e se arrastam nos tribunais. Mas tudo isto, que é muito triste, não retira a António Costa a fama e o proveito de ser um dos mais brilhantes políticos das gerações do pós 25 de Abril de 1974, com uma carreira invejável tanto no Governo do país como nas autarquias. Então como é que se deixou enredar numa teia de interesses aparentemente montada por gente incompetente, lobystas encartadas, pergunto eu que só me apetece repetir como a Senhora do Porto que estava a meter-se com o seu amigo e companheiro de visitas ao teatro São João: o que é que lhe aconteceu, seu 

c@ralh*, a si que sempre foi um político cuidadoso, honrado, brilhante e destemido? JAE

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O associativismo é a alma da nossa terra

Os Donos Disto Tudo estão outra vez em causa e por isso António Costa pediu a demissão de primeiro-ministro. Entretanto temos uma CTI ferida de morte e um aeroporto adiado desde o tempo de Marcelo Caetano. Mas o associativismo em Portugal continua lindo e os seus dirigentes pagam do seu bolso para ajudarem a comunidade e ainda choram de alegria e orgulho por verem os frutos do seu trabalho.


Os Donos Disto Tudo (DDT) prepararam uma estrangeirinha à volta do negócio do hidrogénio e da exploração do lítio que acabaram com o reinado de oito anos de António Costa e do PS. Foi um holandês que esteve na origem das denúncias. Tinha que ser um cidadão estrangeiro. Em Portugal, a confiar naquilo que vai sendo exemplo, desde que José Sócrates e Ricardo Salgado, que fizeram uma dupla aparentemente inultrapassável, que ninguém tinha coragem para meter a boca no trombone. Ainda não sabemos para o que estamos guardados, mas certamente que vamos ter o pior São Martinho dos últimos anos porque todas as reformas, más ou boas, vão ficar em banho-maria.


A língua em sangue

O Hospital Distrital de Santarém esteve fechado das nove da noite às nove da manhã na data em que escrevo esta crónica. É muito possível que a situação se volte a repetir ou já se tenha repetido entretanto. Temos os hospitais privados como alternativa mas todos sabemos que o seguro de saúde é uma conquista de uma minoria de portugueses. O SNS vive a sua maior crise de sempre e ninguém jamais saberá quantas mortes é que esta crise vai provocar. Um doente que fique sem assistência, que seja apanhado num dia em que o hospital esteja fechado, que seja esquecido numa cama ou numa maca por falta de profissionais, morre por falta de assistência médica sem que alguém possa ser responsabilizado. A greve é um direito constitucional e os governantes não podem nem sabem exercer medicina. Quem governa o país devia estar com a língua em sangue por não conseguir salvar a vida de pessoas inocentes, que trabalharam e pagaram impostos durante uma vida, e que por causa da incompetência dos governantes e das organizações profissionais, morre como um cão vadio sem direito a veterinário. 

Uma boa parte da culpa da falta de médicos não é do Governo, mas das associações profissionais que manobram os “numerus clausus” que condicionam o acesso de mais alunos aos cursos de medicina. É uma pena que os políticos não denunciem esta vigarice e os interesses instalados de quase todas as classes.


Viva o associativismo

Fui assistir à sessão de aniversário do CPCD na Póvoa de Santa Iria que, entre outras iniciativas, premiou jovens atletas, e vi o presidente da associação comovido, de lágrimas nos olhos, mas também exaltado quando a sala não estava a respeitar o silêncio necessário para a sessão decorrer normalmente. Tal como diz a dirigente Isabel Graça, da Confederação Portuguesa das Colectividades, as associações são a alma das comunidades mas são tratadas pelo Sistema como entidades com fins lucrativos, e os seus dirigentes como gestores de empresas, embora sem acesso ao subsídio de desemprego ou à reforma. O presidente da AIP diz que Portugal tem cerca de quatro mil impostos para as empresas; os dirigentes associativos ligados ao desporto, à cultura e ao recreio, dizem que se substituem ao Estado e ainda levam com os impostos como se fossem empresas. Isto só na terra dos DDT.


Ferida de morte

Com a demissão de António Costa, que se deixou envolver em mais um esquema em que os DDT achavam que podiam pôr e dispor, fica ferida de morte a CTI para o novo aeroporto. Quem corre por fora diz que Deus escreve direito por linhas tortas; e quem faz política lembra que foi preciso um holandês a fazer queixa dos compadres portugueses para cair o Carmo e a Trindade e Marcelo Rebelo de Sousa ter que trabalhar e deixar de andar por aí a fazer figura de Tio Patinhas e de homem do circo, embora sem bola vermelha no nariz. JAE.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Uma crónica para lembrar Samuel Barradas

Escrevo em cima do fecho desta edição incentivado por uma carta de um leitor de Azambuja, Joaquim Moreira, que quer contar a sua aventura como escritor. É disto que eu gosto. Que uma boa parte da matéria editorial de O MIRANTE chegue pelo telefone, ou pelo correio, com sugestões dos leitores para artigos de sociedade e de política, mas também de cultura que regra geral é marca da nossa identidade.

Embora seja comum dizer-se que um jornalista nunca se reforma, tal como um médico, não tenho tanta certeza que um dia destes não arrume as botas e não deite a toalha ao chão. Trabalho não me falta. Se é jornalismo ou literatura ou terapia da alma, que seja em meu proveito. Só espero que quem me vai substituindo não ache que lhes deixei uma herança envenenada pois este trabalho não é para meninos.

Escrevo em cima do fecho desta edição incentivado por uma carta de um leitor de Azambuja, Joaquim Moreira, que quer contar a sua aventura como escritor. É disto que eu gosto. Que uma boa parte da matéria editorial de O MIRANTE chegue pelo telefone, ou pelo correio, com sugestões dos leitores para artigos de sociedade e de política, mas também de cultura que regra geral é marca da nossa identidade.

Nos dois dias em que esta edição de O MIRANTE viaja da gráfica para os CTT, e depois para as caixas do correio dos assinantes e para a empresa distribuidora, vou marcar presença no lançamento de um livro de Fabião Coutinho, na Póvoa de Santa Iria, e de um outro de Jorge Miguel, na Desmor, em Rio Maior. Nos dois casos são livros que ajudei a paginar, a rever, a desenhar as capas, a escolher os textos para as badanas; fui eu que os enviei para a tipografia, que os fui levantar, que os transportei para a sessão de lançamento, e ainda não sei se não vou ser eu que os vou vender ou oferecer, conforme a situação.

Nos últimos dias não fiz ponta de corno mas não parei de fazer projectos para o futuro. O meu telemóvel está cheio de mensagens a puxarem por mim como se eu fosse um rebocador de uma estrada ribatejana em tempo de cheias do Tejo. O meu email consome-me mais tempo do que aquele que tenho para ir diariamente ao ginásio, à piscina e à sauna.

Já só fumo duas vezes por dia, mas entretanto tripliquei o número de vezes que vou fazer terapias, ou seja, mexer o corpo para não enferrujar e morrer jovem quando chegar a hora. Longe vá o agoiro que falar da morte é coisa que não está no meu dicionário de palavras. Mas há bem pouco tempo é que soube que morreu o Samuel Barradas, o ourives da Golegã que toda a gente da terra conhecia e que eu também conheci quando me iniciei na mesma vida de vender relógios. Tudo o que aprendi com ele já esqueci, mas na altura foi um dos meus mestres, embora nem ele tenha chegado a saber como lhe roubei o conhecimento, e como a sua vida de ourives e relojoeiro influenciou a minha que foi bem mais curta e disso me orgulho.

Se esta crónica ficasse no computador não se perdia nada. Ou perdiam-se apenas estas últimas linhas porque estou a recordar o Samuel Barradas, que morreu já faz quase um ano e eu só soube há meia dúzia de dias. Não é justo que as pessoas morram sem lhes agradecermos o que fizeram por nós. Sei isso desde que morreu a mulher que ajudou a minha mãe a parir-me, e que foi a última desses tempos que me chamava por Joaquim António com as palavras todas, como eu me lembro de ouvir o meu nome quando brincava com os amigos da escola na rua da Formiga. JAE

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A greve dos médicos é uma vergonha num país onde a política já viveu melhores dias

O SNS, as leituras subversivas, o caminho de ferro em Alhandra e o que vai rio abaixo.


Confesso que tive a semana mais espectacular dos últimos tempos e não saí dos mesmos caminhos dos últimos anos. Bastou começar a olhar mais para o lado do que para a frente e vi novas paisagens, conheci outras gentes e fui desafiado a meter-me em novas aventuras. Finalmente vou construir uma casa na árvore, dormir a sesta mais vezes e ler todos os livros que tenho em atraso. A minha máxima continua a ser inspirada em Sócrates, o filósofo: ler e aprender até morrer. “O que está presente lembra-te de organizar, sereno; as restantes coisas ao modo de um rio são levadas”.

Talvez por andar mais atento e a olhar para o meu umbigo registei o facto de esta semana, no mesmo dia, ter sido enganado nas contas em dois supermercados diferentes. Num comprei duas pastas de dentes e facturaram três e noutra comprei quatro garrafas de água de marca branca que foram facturadas ao triplo do preço que estavam marcadas. Só dei pela última já que na primeira estava na conversa com um amigo que não encontrava há muitos anos.

Para quem gosta de literatura subversiva recomendo o livro de Virginie Despentes, “Teoria King Kong”, e para quem aprecia um bom romance a leitura de “A Valsa do Adeus”, de Milan Kundera. Foram duas das leituras desta semana cheia de boas surpresas, incluindo a chegada do Outono que é a estação em que me encontro na vida. Lembro-me de ter 30 anos e perguntar que eternidade me faltava viver para chegar aos 60, ou aos 70, e já cá estou e nem dei por isso.

Fui ao teatro e só gostei da interpretação. É difícil escrever para representar e são poucos os escritores que sabem do ofício. Se vivesse no Porto tinha mais sorte; o Teatro São João teve em palco “A promessa” e “O pecado de João Agonia”, duas peças de Bernardo Santareno, o dramaturgo português mais significativo do século XX, que devia estar sempre presente na vida cultural da cidade de Santarém.

Esta semana atravessei-me por uma pessoa que disse que gostava de apresentar aos vilafranquenses uma proposta que resolve muitos dos problemas da quadruplicação da linha de caminho de ferro que tem provocado algumas manifestações populares. O projecto foi desenhado há muitos anos e quem o fez não quer perder a face nem que para isso tenha que subir as escadas do inferno. A resposta de quem organiza as manifestações foi a mesma que os manifestantes estão a receber dos responsáveis pelo projecto. Quando não é o Governo que pode e manda são os partidos que se fecham nos seus interesses ideológicos e os seus militantes nas suas obsessões partidárias; a esquerda vai pagar caro em Portugal a incapacidade para perceber que a ideologia já não faz revoluções; todos juntos somos poucos para combater os interesses instalados, assim como os extremismos de direita e de esquerda.

As greves dos médicos e enfermeiros são uma vergonha num país onde as desigualdades crescem todos os dias e se morre na cama de um hospital por falta de cuidados médicos. Quem não pode recorrer aos hospitais privados não pode dormir descansado. O Governo herdou um Serviço Nacional de Saúde que já era. Nos últimos anos os políticos do PS e PSD têm feito o caminho e a cama aos dirigentes partidários aventureiros que querem facturar mais com o descontentamento do povo que com os seus méritos (que não têm). E vão conseguir. Todos os dias, entre os dirigentes do PS e PSD, cresce o número dos que vão para a política para se servirem e não para prestarem serviço público. Sempre foi assim, mas a coisa está a ficar preta. Valha-nos o S. Martinho que está aí à porta. JAE.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Uma visita a A-do-Freire para trabalhar e comer figos

Adofreire não é uma aldeia qualquer perdida no mapa. É lá que vive a mais entusiasta produtora de figos de Torres Novas e o senhor João Alves Baptista que tem 83 anos e nasceu em Viana do Castelo.

Adofreire é uma aldeia do concelho de Torres Novas onde vivem cerca de 150 almas. Fui lá pela primeira vez muito recentemente no regresso de uma viagem ao Porto, onde renovei energias a ouvir a água de uma cascata, entre idas ao cinema, à livraria e uns mergulhos nas praias fluviais.  No dia que desci a sul parei em Adofreite.

Estacionei o carro junto à igreja e sentei-me no degrau de uma porta à espera da Michele Rosa, a produtora de figo preto com quem tinha marcado encontro. Nesse meio tempo, que durou cerca de 20 minutos, só passou por mim uma alma, que puxava uma traquitana a arrojar pelo chão. Entretanto chegou companhia para fazer dupla no trabalho que me levou a Adofreire, e a presença do carro identificado com o símbolo de O MIRANTE incentivou a conversa entre forasteiros e residente. A única alma que tinha passado por mim e dado os bons dias, puxando a traquitana, estava de volta já sem a geringonça pela mão. João Alves Baptista parou na esquina da rua e desta vez meteu conversa. “Este jornal já entrou na minha casa durante muito tempo. Depois deixei de o receber. Tive pena, mas o dinheiro nunca é muito para pagar o que não é pão para a boca”, disse, identificando-nos com o carro, também estacionado no largo da igreja, como se tivéssemos escritos na testa.

“Agora já nem tenho olhos para ler. Mas vim aqui parar de uma terra que tem a festa tradicional mais famosa de Portugal, sabem qual é”, perguntou em jeito de quem queria saber e perceber se a nossa vontade de interagir era genuína. Viana do Castelo, respondemos quase em cima da pergunta. Os seus olhos sorriram e demos-lhe razões para continuar a contar a sua história de vida como se fosse sua obrigação fazer o papel de anfitrião da aldeia enquanto esperamos a mais entusiasta produtora de figos da região.

“Tenho 86 anos e este menino que vos fala ainda faz a lide da casa e trata da mulher que, infelizmente, precisa da minha ajuda. Fui trabalhar para Lisboa onde morei 20 anos. Depois mudei-me para aqui porque vim trabalhar para a Renova. Reformei-me e trabalhei durante muitos anos como empregado de mesa a fazer festas e casamentos. Corri o país. Agora acabou-se. Estou preso em casa por causa da mulher, mas também porque, entretanto, fiquei doente dos pulmões. Uso bomba duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite. Foi há quatro meses que um médico que me deu mais atenção mandou fazer exames. Já andava assim há muito tempo, mas agora os médicos só tratam o que está à vista. Não há tempo para mais. Daí que tenha chegado a um estado ruim, de uma doença pulmonar que demorou a descobrir por falta de exames atempados”.

A conversa estava a aquecer e íamos começar a falar dos filhos e das saudades da terra natal quando apareceu o carro da Michele Rosa que parou e gritou, “bom dia senhor João”, já nós tínhamos levantado o rabo da pedra do degrau da porta para ir ao seu encontro, enquanto o senhor João respondia à saudação e dizia, no timbre de voz em que falávamos, que a Michele era uma rapariga de confiança e filha de gente boa.

Nesse meio tempo em que conversamos com João Alves Baptista, Adofreire parecia a aldeia dos peregrinos; se não fosse a meia dúzia de carros que circularam, e que desapareciam sem fazer barulho suficiente para interromperem a conversa, dir-se-ia que naquela tarde, em Adofreire, éramos os únicos habitantes que não dormiam a sesta ou não se escondiam do sol de Verão entre quatro paredes.

A história acaba aqui, mas, entretanto, ainda está actual a outra que fomos contar conversando com Michele Rosa, que nos mostrou pela primeira vez na vida como se produzem figos de forma ecológica, pendurando armadilhas nas figueiras para apanhar as moscas e assim evitar a pulverização das árvores com o veneno que garante o crescimento saudável do figo, mas prejudica a saúde. Falta contar que Adofreire não é uma aldeia qualquer perdida no mapa apesar de ter apenas cerca de 150 eleitores. No dia 14 de Janeiro de 2001 a população desta localidade boicotou as eleições presidenciais portuguesas não comparecendo às urnas para votar, em protesto, contra a falta de cumprimento da promessa da autarquia de Pedrógão, sede da freguesia, sobre a resolução do problema da poluição da ribeira local. E ainda tem a particularidade de se poder escrever com duas grafias diferentes. JAE.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Cada vez há menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país

“Jornalismo é imprimir o que outra pessoa não quer que seja impresso: todo o resto são relações públicas.”  George Orwell


“Há uma crise na formação da opinião pública”, diz José Luís Cebrian, porque “o populismo levou a melhor”, e os políticos esfregam as mãos de satisfeitos por verem que são cada vez menos escrutinados porque há cada vez menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país. 

As notícias sobre o futuro da comunicação social não são boas para os jornais. Quem é bom observador sabe que nos últimos anos as tiragens em papel dos principais jornais nacionais desceram para números irrisórios; nos casos dos jornais líderes como o Expresso, o Correio da Manhã e o Jornal de Notícias, a tiragem desceu para menos de metade. É assim também em Espanha que é o país da Europa onde a imprensa escrita tem mais força e onde os diários se multiplicam em várias regiões.

A verdade é que os grandes títulos deixaram de fidelizar leitores como acontecia noutros tempos. E a culpa não é do mercado, mas da forma como os editores continuam a trabalhar, privilegiando as notícias de Lisboa, próximas dos poderes da capital do reino, assim como o acompanhamento das figuras mais mediáticas graças ao papel das televisões que são um caso à parte no meio editorial.

A crise veio pôr a nu outro problema no jornalismo que é  a falta de profissionais com mérito, e também com liberdade editorial, para a formação da opinião pública. É evidente que cada vez mais os jornalistas se dividem nas suas opiniões entre esquerda e direita. Mas o que é mais grave é que falta cada vez mais quem nos conte o que se passa no país, quem leve a carta a Garcia; e no caso dos que só escrevem opinião nota-se, cada vez mais, que os jornalistas estão entrincheirados, ou porque são condicionados pela entidade patronal ou sem capacidade de saírem dos seus casulos. Não é discutindo a ética na profissão que se aprende a respeitá-la, mas é por demais evidente que falta essa discussão; os jornalistas parecem exercer uma profissão em extinção, nem a porra de um congresso conseguem organizar que não seja de dez em dez anos. E há outra coisa extraordinária na profissão: os poucos jornalistas que verdadeiramente se fazem ouvir e são lidos, regra geral também eles são estrelas de televisão.

Os meus 36 anos de actividade profissional, quase desde o início envolvido no movimento associativo a nível nacional, fazem com que já tenha saudades de muita gente que deu o corpo ao manifesto mas que, entretanto, desapareceu de cena vencido e, nalguns casos, verdadeiramente derrotado. Este texto não é exactamente para falar deles mas para lembrar que O MIRANTE continua a ser um projecto de jornalismo de proximidade graças aos ensinamentos que essa gente nos deu. É cada vez mais evidente que os jornais ditos nacionais jamais vão renovar-se; mas não podemos perder a esperança na força do mercado e na reinvenção de negócio. Nos últimos 15 anos fecharam centenas de jornais locais e regionais. O fecho desses jornais era tão previsível como o aumento da influência da Internet nas nossas leituras, incluindo as notícias. E não podia ser maior o aviso à navegação dos denominados almirantes da comunicação social.

“Há uma crise na formação da opinião pública”, diz José Luís Cebrian, porque “o populismo levou a melhor”, e os políticos esfregam as mãos de satisfeitos por verem que são cada vez menos escrutinados porque há cada vez menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país. 

Uma última nota para dar conta que é minha convicção que um dia todos os jornais em Portugal copiarão o modelo de O MIRANTE, talvez fazendo melhor e com mais meios; se não o fizerem morrem no seu posto mas sem leitores. JAE.