Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam ( : ) alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante.
A minha relação com a cidade de Santarém é parecida com a relação que tenho com a cidade do Porto. Gosto mas nunca me apaixonei. O mesmo com os nativos, nunca participei em tertúlias nem tão pouco fui convidado. Embora sejam bem diferentes são cidades pequenas, se nos queremos manter independentes dos bairros e dos bairristas ficamos quase sempre a falar sozinhos. Há ainda em comum o facto de serem cidades com longas tradições. Os seus nativos não gostam de abrir a porta do coração a estranhos. Podem ser simpáticos mas sem muitas confianças.
Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam para começar a minha peregrinação pelos objectos que me surpreenderam, alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante. De repente comecei a ouvir as histórias de cada um dos livros conforme ia perguntando pelos preços, mas à segunda descrição já tinha descoberto a quem os livros pertenciam, ou seja, já tinha a certeza de que não estava com visões; eram de uma amiga de longos anos, filha de pais riquinhos, que herdou o bom gosto, mas também muita coisa que lhe enche a casa e que vai ocupando o lugar que não sobra para as novas bugigangas.
Cada vez que cantava um preço para um livro, ou outro objecto, descrevia-me as partes mais importantes da biografia da antiga proprietária, minha amiga, muitas vezes provocado pelas perguntas que de forma provocadora lhe ia fazendo à procura de perceber até onde chegava o paleio do antiquário.
“Tem bom gosto”. “Vou confessar-lhe: isso era de uma arquitecta do Porto que é meio louca”. “Vê-se que é uma mulher inteligente, e pode comprovar por esses livros todos que ela me vendeu”. “Casou com um dinamarquês há pouco tempo, ainda é uma mulher interessante”. “Sim, é rica o suficiente para se desfazer de património que lhe enche a casa. Tem uma pancada medonha”. “Desculpe, mas não posso vender mais barato. A minha cliente obrigou-me a dar-lhe um bom preço pela peça. Ela sabe o valor do que me vende”. “É meio desapegada dos bens materiais, mas informada o suficiente para não se confundir com os herdeiros que, por não saberem o valor da dádiva, vendem a qualquer preço”.
Omito outras considerações mais pessoais e íntimas, que ele me ia contando para me entusiasmar a comprar toda a mercadoria que me interessava, e deixo à imaginação do leitor o que um negociante é capaz de romancear para fazer negócio com um provinciano, que ele primeiro confundiu com um médico de profissão, depois com um empresário endinheirado, mais tarde com um coleccionador daqueles que ele sabe que vão comprar se o preço baixar até ao valor justo.
Saí da loja com meia dúzia de objectos e não tive a sorte de encontrar um livro que eu próprio ofereci à minha amiga há duas dezenas de anos: um livro ilustrado que já quis encontrar para me prendar a mim próprio, e que por mais que procure não consigo encontrar nem no mercado de segunda mão.
A história acaba aqui: nunca mais voltei à loja porque alguns meses depois desta aventura no antiquário reencontrei a minha amiga e contei-lhe uma parte da história. Tive que fazer jus à nossa antiga amizade. Os verdadeiros amigos devem ser as últimas pessoas a quem devemos trair. Já os negociantes têm uma vida toda para ir aprendendo a viver com coincidências, clientes mais ou menos loucos que ou vendem ou compram. Os que compram, e que meia dúzia de dias depois já não sabem onde guardaram a mercadoria, e os que vendem, e ainda nesse mesmo dia gastam o dinheiro numa mala de marca ou numa serigrafia do Artur Bual ou do José de Guimarães, que nas paredes da sala servem de companhia e de apoio espiritual nas horas mais solitárias. JAE.
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