quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A Lebre de Olhos de Âmbar; uma leitura em viagem

Tenho uma biblioteca de livros para ler, e outra de livros para cuidar, de tal forma, como escreveu Victor Hugo, para mim “uma biblioteca é um acto de fé”. Como a vida não é só política, economia e finanças, aqui fica uma nota de leitura de um livro que me puxou pelas orelhas.


Viajei recentemente para um lugar a 7 mil quilómetros de casa e, pelo caminho, em três dias, li um livro biográfico cuja história começa verdadeiramente em 1792 que é a data de nascimento de Charles Joachim Ephrussi (1792–1864), líder de uma família que fez fortuna controlando a distribuição de cereais e, mais tarde, recursos petrolíferos em grande escala. “A lebre de olhos de âmbar”, de que já me tinham falado e que vejo há muitos anos nas estantes mais à mão das livrarias, da autoria de Edmund de Waal, um seu descendente, que com este trabalho ganhou um prémio importante em 2011, data da sua edição.

O prazer da leitura não me rouba o prazer da viagem. Estou a escrever estas palavras em frente da "Ilha Mulheres", sentado na areia da praia, já quase noite, com as melgas a morderem-me como se fossem besouros e eu um bocado de couro mal curtido.

O livro não é de fácil leitura nem conta uma história à Camilo, ou à Eça, não é um romance que nos prenda à leitura, mas tem a força de uma biografia que escolhe leitores, por isso tem aguentado estes anos todos nas montras e nos escaparates das principais livrarias do país e já vai na sétima edição. 

Depois de terminar a leitura, que coincidiu com o cair da noite e o ataque dos pernilongos, mais a obrigação de me juntar a um grupo para jantarmos todos juntos, senti saudades e se pudesse voltaria na hora para o caminho de volta a casa. 

Pensei: o sentimento vai passar dentro de breves momentos, mas a história que acabei de ler, que me obrigou a mergulhar nas páginas impressas, ficou gravado como uma bofetada no meu conforto espiritual, no meu prazer burguês de poder frequentar um lugar onde tenho que me vigiar para não esquecer que só estou de férias por uns dias.

Quem nasceu e cresceu para a vida nos países democráticos não tem noção dos efeitos das guerras na vida humana, no seio das famílias, nos dramas que nenhum livro consegue explicar mesmo que seja muito bem escrito, como é este o caso.

O que estamos vivendo hoje na Europa, apesar das guerras e dos problemas da imigração, é só o princípio de tudo o que o mundo já viveu nos últimos dois séculos. Tudo bate certo: as grandes fortunas crescem todos os anos, os países ricos são cada vez mais governados pelos oligarcas e cada vez menos pelos políticos, e todos os dias aumenta o número de pessoas que se desligam dos problemas da sua comunidade, ignoram os melhores  exemplos devido à ignorância olímpica promovida pelos capitalistas e comunistas que têm as rédeas do poder, e, cada um à sua maneira, boicota o Sistema como só eles sabem, embora todos nós tenhamos acesso aos mesmos livros onde eles aprenderam a arte da guerra.

O mundo onde muitos de nós vivemos está cheio de possibilidades infinitas, e, na maior parte do globo, podemos comprar a preços de saldo quase todos os prazeres, desde os artísticos aos sexuais e comerciais mais ou menos luxuriosos. Era assim em 1883, segundo se conta no livro, relativamente aos franceses que visitavam o Japão, e é hoje em muitos mais países e com muitos mais viajantes e aventureiros, compradores de peças de arte, mas também de património imobiliário, entre tantas ofertas de investimento que ninguém leva no caixão para debaixo da terra ou para o crematório.

Foi neste livro, que é uma empolgante história de guerra e de paz, paixão e perda, que percebi que junto livros desde que me conheço porque uma “Biblioteca é um acto de fé”, que “para entender a História é preciso ler Ovídio e Virgílio, é preciso saber como os heróis enfrentam o exílio, a derrota e o regresso”. Liberto-me agora deste texto, que barbeei até fazer sangue, como um artesão se liberta dos belos e inúmeros objectos que constrói e vende ao longo da vida, feitos aos milhares, ao ponto de terem a marca de quem se libertou do seu ego. JAE.