quarta-feira, 27 de junho de 2012
Companheiros ilustres na desgraça
Tive um dia de domingo a arrumar livros. Detesto arrumar livros. É tão castrador como ficar uma tarde inteira na praia e não poder ir ao banho. E os livros arrumados parece que deixam de nos pertencer; são os primeiros a ficarem por ler até à eternidade; perdem o cheiro e as marcas virgens das nossas mãos. E todos os livros que estão por arrumar são mais importantes, ou tão mais importantes, do que aqueles que estão a chegar à secretária e ganham o seu espaço só por serem investimento mais recente.
Revisitar livros que não estejam devidamente assinalados com as marcas de leitura é quase como voltar a uma casa que tinha chão de cimento e entretanto foi alcatifado.
Arrumar livros tem a vantagem de trabalharmos naquilo que gostamos sem darmos conta; Este domingo reencontrei-me com um livro, com dedicatória, sobre toiros de lide oferecido pelo meu amigo Eugénio Eiroa Franco. E logo de seguida abri, ainda fresco da leitura e releitura, o “À Mão Esquerda”, autobiografia de Fausto Wolff, e encontrei bem assinalado este naco de prosa que me permito adaptar para que a ideia caiba em menos palavras. O objectivo desta vida, controlada pelos sistemas capitalistas, “é que nos movimentemos sempre pelos mesmos lugares, como qualquer vaca, embora a vaca seja sempre mais perfeita que o ser humano pois não se questiona nem em sonhos. Mas mais perfeito ainda é o toiro que cinco minutos após ter sido castrado, e transformado definitivamente em boi, já está comendo capim misturado com um pouco de sangue dos seus colhões”.
No romance “A Vida Sexual de Fernando Pessoa”, prémio literário da cidade de Valência, Salomó Dori, o autor, põe Alberto Caeiro a ver o Cartaxo pela janela da sua casa. E à noite, enquanto escreve, imagina os caminhos vazios que levam ao Cartaxo, e as suas gentes, depois de deixarem vazia a praça principal, procurando-se às apalpadelas entre lençóis.
Revisitar livros pode ser tão surpreendente como encontrar um amigo de longa data, no lugar mais improvável do mundo, enquanto viajamos em segredo.
A meio do dia encontrei na capa de um antigo catálogo de livros a inspiração para a capa da edição dos 25 anos de O MIRANTE que, se tudo correr como previsto, sairá a 16 de Novembro com uma edição de 60 mil exemplares com distribuição em Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Évora e Faro. Curiosamente, ao ver a capa, reconheci uma outra mais recente da editora Quetzal para um livro de Primo Levi que só pode ter sido inspirada nesta. O mundo é pequeno e não é todos os dias que nascem Picassos.
Tenho lugares privilegiados nas minhas estantes para Jorge de Sena, Baptista-Bastos, Clarice Lispector, Henri Miller, António Ramos Rosa, Ernesto Hemingway, Marguerite Yourcenar, José Saramago, Picasso, e tudo o que é literatura biográfica. Sei o preço e a história de cada livro de poesia que comprei nestes últimos trinta anos.
A croniqueta desta semana escrita à última hora substituiu um texto desgraçado sobre a crise e os efeitos da crise. É engraçado como os grandes nomes que fazem opinião em Portugal andam a dar ao rabo com as injustiças que começam a pegar fogo nos fundilhos das suas calças. Finalmente temos ilustres companhias na desgraça; o que não deixa de ser uma tristeza ainda maior.
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