Uma releitura do Eclesiastes, uma citação de mais um artigo do advogado João Correia e uma lembrança de Juliette Gréco a musa da canção francesa.
No tempo em que o leito do Tejo na Chamusca e em Santarém era caudaloso, e muita gente ainda vivia da pesca, li uma entrevista de um escritor que me fascinava, truculento, brigão, mestre da língua portuguesa, polemista, que confessava ter sempre a Bíblia na mesa de cabeceira; e quando viajava levava-a sempre consigo. Fiquei pasmado. Eu imaginava o porquê, mas tive que ir à procura. Para mim a Bíblia sempre foram os Provérbios, os Salmos e o Cântico dos Cânticos. O resto era enfadonho. E o apelo dos grandes clássicos, dos livros cujas matérias mais me interessam, sempre suplantaram o interesse maior pela leitura integral do livro dos livros.
Recentemente, graças a Fátima Salgado, voltei ao tema com a descoberta do Eclesiastes, vigésimo primeiro livro da Bíblia, da autoria de Kohelet. A leitura de alguns trechos são familiares; fiquei a saber que é um dos escritos bíblicos que mais influenciaram a literatura ocidental.
Antes de Baptista Bastos e José Saramago, só para citar dois autores que usaram a influência dos textos bíblicos nas suas obras, William Shakespeare cansou-se de usar a expressão “não há nada de novo debaixo do sol”, Leo Tolstoy rendeu-se ao Eclesiastes e diz que foi o livro que mudou a sua vida. Machado de Assis, talvez o maior escritor de sempre em língua portuguesa, tem influências do Eclesiastes em toda a sua obra, que também considerava o seu livro de cabeceira. No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, que reli recentemente, o escritor traça a epopeia da irremediável tolice humana, a sátira da nossa incurável ilusão, feita por um defunto desenganado da vida. “A vida é boa mas com a condição de não a tomarmos muito a sério”, “uma certeira repetição do velho tema da vaidade de tudo, e do engano da vida”, a que o Eclesiastes deu a consagração secular.
O meu orgulho, que ainda dura, de ter lido a Odisseia e a Ilíada aos 30 anos, sofreu um revés agora que percebi que por causa de não gostar de hábitos, assim como não gosto de fardas, só agora aprendi que “é melhor escorregar no chão do que no falar”. Mas não acabo sem um aviso à navegação; a Bíblia é o livro mais perigoso para a emancipação das mulheres e a sua luta contra a discriminação e a violência que, para muitos homens, está institucionalizada pela palavra de Deus: “É melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher; a mulher causa vergonha e chega a expor insulto”. Mesmo com muitos ultrajes, impropérios e violência contra as mulheres, como aliás é norma em quase todo o texto bíblico, a leitura do livro de Kohelet foi uma das boas redescobertas destes últimos tempos de leitura.
Hoje, a Ordem dos Advogados deixou de ser uma realidade judiciária e forense e, provavelmente, nunca mais atingirá o prestígio que a levava a ombrear com as demais corporações, a ser respeitada e ouvida pelo poder político.
Tudo isto, antes e depois de 25 de Abril. Tenho muita mágoa. Tenho esperança numa jovem advocacia que retome a dignidade e o prestígio da advocacia portuguesa. (João Correia, jornal Público 17/09/2020).
Não sei se Juliette Gréco visitou a lezíria ou a charneca ribatejana. Nunca a encontrei em Santarém, nem sequer em Lisboa onde actuou a última vez em 2008, já com 81 anos. Eu é que, num dia já distante, fui de Marselha até Saint-Tropez, onde ela vivia, e tenho quase a certeza que vi a dama de negro da canção francesa numa esplanada da cidade. A imagem que tenho dela é de braço dado com Miles Davis, na noite de Paris, mas nesse dia em que a vi estava de cigarro na boca, túnica negra e óculos escuros, olhando os sapatos de salto alto que as mulheres deixavam abandonados no passeio marítimo, quando aceitavam entrar nos iates de luxo para beberem champanhe e, quem sabe, incendiarem o coração na presença dos playboys que as aguardavam. Juliette Gréco morreu no dia 23 setembro, com 93 anos, e embora famosa sempre dizia que a sua vida andante tinha pelo meio muito caminho de cabras. JAE.
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