quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Correio sentimental do Outono em pleno Verão

A crónica desta semana parece uma despedida mas é só uma forma de apresentação aos leitores mais jovens para me vingar das notícias da Segurança Social que deverão chegar no início do Outono.


Nas conversas solitárias com os botões da minha camisa sempre disse que nunca me reformava; e mantenho a decisão embora travestida, o que não me faz sentir mal; tal como mudo de camisa posso mudar de ideias, sem peso na consciência, se as ideias não são públicas ou publicadas. Estou a poucos meses de me reformar por limite de idade e nem acredito.

Quero voltar a Orlando para viajar nas montanhas russas mas agora sem os meus filhos; quero voltar a fazer trilho nos caminhos virgens da floresta amazónica, mas também na Ilha de Páscoa, onde deixei amigos, ou no deserto de São Pedro de Atacama, onde vivi sem luz e sem água da rede e cuja viagem de avião, para lá, acabou a meio por avaria e aterragem forçada. Quero voltar a viajar de comboio por lugares fantásticos, de navio por mares nunca antes navegados, e de barco para voltar a mergulhar no Índico e voltar a enjoar, ainda que seja a coisa mais terrível que pode acontecer a um ser humano.

Recentemente, depois de meia dúzia de dias de férias cá dentro, saí de um hotel para o caminho de casa como quem sai de casa para ir ali ao campo apanhar laranjas. Para meu espanto foram-se as emoções da partida, do tempo que passou rápido demais, do desespero de não ter feito metade do que estava no programa. Senti ainda mais profundo o que tenho vindo a sentir nos últimos tempos e que talvez tenha começado numa manhã em que saí de uma suíte do Thomar Boutique Hotel para o caminho como se estivesse a sair para o trabalho do primeiro andar de um prédio na Chamusca.

Dei por mim a sair da praia, duas horas depois de lá ter chegado, com a sensação que já tinha passado um dia; o meu normal sempre foi ficar por lá o dia todo, fazendo questão de deixar passar a hora do almoço e viver do saco da fruta, de uma côdea de pão com queijo, de amendoins e uma garrafa de água. Acho que cheguei a uma esquina da vida que me impele a mudar de caminho. Sinto cada vez mais que já comprei todas as terras que tinha para comprar, todas as casas e todos os carros; agora o que mais falta fazer é marcar as viagens sonhadas, ler os livros e ver os filmes adiados, aproveitar, até durar, o melhor da minha juventude.

Há 2/3 anos deixei de fazer contas aos negócios dos outros como fazem 99% dos portugueses quando vêm um restaurante cheio ou um comércio que parece rentável. Há falta de assunto, e de projectos de vida consistentes, andamos sempre todos a invejar a galinha da vizinha. Sinto hoje, mais do que nunca, que as minhas vaidades estão satisfeitas, mas as minhas ruínas estão cheias de vida e algumas delas têm uma vista com mais luz que as ruínas da luminosa Itália ou da Grécia. Talvez tenha chegado a hora de viver a minha juventude no sentido em que afirmava Picasso: “é preciso viver muitos anos para nos tornar-nos jovens”.

Como é evidente este texto não é uma despedida; é só uma forma de me apresentar a alguns leitores mais jovens para me vingar das notícias da Segurança Social que deverão chegar no início do Outono. JAE.

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