Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça, bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.
Quem me conhece sabe que não sou loroteiro ou espalhador de falsos. Mato a cobra e mostro o pau. Com esta voz grossa que Deus engastou na garganta do neto do meu avô, não há desavença que eu não desmanche na força do berro, muitas vezes no intervalo de uma chupada no charuto debruçado na varanda do beiço.
Um dia encontrei um camarada vingancista que ameaçou que eu não pegava o tempo das águas com vida no corpo. Como fosse mês de agosto aproveitei para fazer ironização: seu boi de chocalho, em tempo de sapo, de jacaré pedir agasalho, já combati até com trovão. E sou homem de comer vivinho qualquer querelante (embora de verdade, no meu natural, até sou capaz de pular de lado para não matar minhoca). Metido ao barulho, disse sem ostentação que Deus não cresceu o neto do meu avô para que ele desperdiçasse toda essa grandeza em raiva de anão, em ódio de sujeito nascido para caber em anel de costureira, aguardenteiro de curtas letras que mal sabia assinar escrituras e recibos de cachaças.
Sosseguei na espreguiçadeira, bem comido e charutado, barba repousada no peito. Senti no rosto um ventinho candeeiro de água. Enquanto dormitei, ri no íntimo e abri o livro de S. Cipriano em parte que eu conhecia: o caso de uma penitência levada da breca, coisa acontecida num longe antigamente, que nem o lobisomem era de existir mais de corpo inteiro. Um cachorro olhava e gemia um gemido comprido, de ser medido a metro. Um boiadeiro, joelho em terra, pois era muito devocioneiro, procedeu ao sinal-da-cruz, e em reza forte caiu e depois sumiu em viagem maluca no seu cavalo branco de luar.
Por causa de uma menina professora nunca andei tão embonecado na vida, e viajava de longe a mata-cavalos em água de cheiro, coisa de causar admiração mesmo ao nariz mais acostumado a essa mimosura. Só do baú de um cometa arrematei toda a praça de sabonete, fora as encomendas. O povo fuxicava de tal esmero: o Coronel tem moça em vista. Nem galante das ribaltas podia comigo. Quando retirava o lenço do bolso traseiro, que é onde aprecio guardar essa utilidade, o cheiro do frasco saltava longe. Nos rodados do vestido da menina Isabel, meu atrevimento encolhia. A boca do Coronel, dona de tanta fala, nessas especiais circunstâncias perdia venenos. Um dia, a moça que era de trato fino, rasgou seda: muita honra, Coronel. Respondo no mesmo pé de educação: a honra é minha e dela não abro mão.
No tempo em que ainda era negócio limpar picada de surucucu, já havia curador que em mais de um mês não tinha um caso de veneno. O povo botava de quarentena o ofício de Tatu e a criançada corria de urina no ponta do birro ao sentir o cheiro da mulinha do curador que tinha fama, vinda de longe, de manobrar dente de cobra. Noite alta, no cemitério de São Gonçalo, viram o curador alisar a cabeça de jaca de uma surucucu; não só alisou como falou na orelha dela coisas e segredos próprios das serpentes. Com a ponta do dedo avivou o saco de peçonha da cobra que logo ficou tomada de raiva, possessa, e por um buraco da coberta picou um pardavasco em veia mortal. Foi ele e outro alguém nenhum, que desses poderes do mato só Tutu tem a segredagem, disse o povo acusador.
Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça, bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.
Um danoso de um Lobisomem, se passasse no carrascal, não fazia tanto estrago na coragem dos meus agregados. Encarei de frente o medo da comitiva era de escorrer do rosto igual a leite de mamão. Segurando esses receios pela goela, fingi aborrecimento. Isto é uma companhia de caça ou acompanhamento de defunto?
Sei comandar com mão de ferro e punho doce. E se for cavalo sou capaz de o fazer relinchar nas patas do coice. Nas minhas viagens nao careço de mijão na rabeira; e hoje cheguei de viagem no Sobralinho mais água podre do que gente.
O texto desta crónica é roubado à leitura de um livro que é um dos melhores de sempre em língua portuguesa, do Brasil, e que embora já tenha chegado à meia centena de edições, sempre pela mesma chancela, nunca me apareceu pela frente. Até há meia dúzia de dias no mesmo lugar de sempre, no Rio de Janeiro, em casa de amigos que gostam tanto de vinho ribatejano como de livros. Chama-se O Coronel e o Lobisomem, da autoria de José Cândido de Carvalho, e é uma experiência de leitura de se lhe tirar o chapéu e o couro cabeludo. Não resisti ao prazer da leitura e fui roubando alguns trechos que juntos deram esta crónica.
Uma nota final: os editores europeus perdem as botas e os sapatos de engraxar a caminho das feiras do livro de Frankfurt e etc, para comprarem direitos de autor de escritores que, a maioria das vezes, são ou foram alunos de escrita criativa dos professores universitários que trabalham para as editoras. E assim se faz a vida e enchem as estantes de novas estrelas, e se esquecem, e muitas vezes se escondem, as verdadeiras jóias da nossa literatura. Neste caso acho que nem podemos falar de dinheiro e interesses económicos, mas de uma estúpida ignorância sobre a realidade da literatura brasileira e da sua qualidade. JAE.
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