O Ricardo Salgado, que Deus tem, arreava o burro do Frazão e todos os dias, domingos incluídos, metia-o entre varais para se fazer à estrada do meio até à antiga vinha da família Pestana, ali para os lados da “Cruz do Santinho” nos campos da Chamusca. Lembro-me desse burro quase todos os dias embora já tenham passado muitos, muitos anos, porque para além de morder ainda dava coice bravio. Nesse tempo eu olhava para o burro e via um belo cavalo. Era um jovem que montava um burro com a cabeça cheia da vaidade de quem montava um puro-sangue lusitano. Ultimamente tenho-me sentido burro a puxar a carroça na ida e no regresso do campo que o mesmo é dizer da secretária onde trabalho. E embora me sinta menos majestoso que o burro do Frazão, que Deus também tem no reino dos animais defuntos, a verdade é que o peso da carroça parece cada vez maior e os meus cascos já não aguentam as ferraduras como noutros tempos de burro mais novo.
Entusiasmado nas últimas noites com a leitura de dois livros de Cláudio Magris, “Alfabetos” e “Danúbio”, sempre com tradução de Miguel Serras Pereira, porventura o ribatejano (nascido no Porto) mais ilustre do nosso tempo, encontrei consolação para o burro que me sinto, e de certo que sou com todas as letras, rabo e orelhas, numa página de “Danúbio” onde Cláudio Magris lembra que “é um burro e não um puro sangue de coudelaria que aquece Jesus no estábulo do presépio; Homero compara Ajax, que salva os navios aqueus resistindo sozinho ao assalto dos troianos, a um burro, cuja garupa sob a carga e as pancadas se torna tão grande como o escudo de Telamónio. A força do burro tem a qualidade dos heróis clássicos, a paciência, a tranquila, humilde e indomável constância que não sai do seu caminho e que ascende mais alto do que o arranque nervoso do nobre corcel como Ulisses ascende mais alto que Páris”.
Havia mais para citar, nomeadamente quanto à sexual “vitalidade obstinada do burro que parece vingar todos os humilhados e ofendidos”, mas não há espaço que chegue. Só tenho duas linhas para concluir que nestes últimos dias tenho-me sentido, desgraçadamente, o mesmo burro de sempre, embora com uma majestosa diferença; sou com todas as letras, orelhas e rabo, muito mais o burro do Cláudio Magris que o burro do Frazão, e é isso que vou ter em conta quando festejar a entrada no Ano Novo. JAE
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