Esta crónica é fruto do entusiasmo na leitura de “Musa Praguejadora”, de Ana Miranda, e regista um tempo em que os rebentos das cepas crescem diariamente ao ritmo da barba dos homens.
Vivemos dias tristes que nem os sonhos das viagens marcadas conseguem dissipar. Mas nem tudo são tristezas; há dias felizes que se vivem a trabalhar e outros que são ainda mais felizes no meio do campo, a cuidar das árvores, que também cuidam de nós, com os ramos cheios de flores, algumas já com frutos do tamanho de bolas de berlinde. Nesta altura do ano as oliveiras já carregam o azeite que há-de chegar aos lagares lá para Novembro. E os rebentos das vinhas das terras da Lezíria crescem todos os dias ao ritmo que cresce a barba dos homens mais jovens deste tempo de pandemia em que vivemos.
Tenho a sorte de ter chegado a uma idade em que o futuro já não me preocupa tanto a nível pessoal. Vivo um dia de cada vez, perdi os medos e as angústias e sinto-me com força e segurança suficientes para continuar a ajudar a construir um mundo melhor, também a pensar no mundo ideal para os meus filhos.
Vivemos tempos tristes mas não de desesperança. Sinto isso todos os dias a trocar mensagens com amigos, e com pessoas muito próximas, que mantêm um espírito de resiliência e de coragem que são comoventes de tanto nos despertarem as boas emoções.
Tenho registado na memória recente a morte de muita gente que me viu nascer, e de outros e outras que me viram crescer como homem e, ao mesmo tempo, como profissional de várias artes, entre elas a de ourives e agora de jornalista. Aprendi todos os meus ofícios trabalhando, ou tarimbando, como é mais uso dizer-se em bom português. E isso é uma marca pessoal de que me orgulho e me obriga a reinventar-me todos os dias sem esquecer que viemos do pó e ao pó voltaremos.
Vivemos tempos tristes mas nunca me sinto triste; nem quando vejo lágrimas no rosto de quem não sabe o que fazer da vida. Tenho dois amigos de longa data a lutarem contra o cancro; sempre que tenho notícias deles percebo melhor o quanto sou um sortudo; fugir do coronavírus e manter distanciamento social, para não adoecer, é uma brincadeira comparado com aquilo que sofrem as pessoas que caminham para os hospitais e não podem falhar as consultas.
Picasso dizia que para se ser jovem é preciso viver muito tempo. Esta crónica é fruto do entusiasmo na leitura de “Musa Praguejadora”, de Ana Miranda, que conta a vida de Gregório de Matos, e de “Picasso, Criador Destruidor”, que foram as minhas melhores companhias nos últimos dias. Ana Miranda biografou a vida de Gregório de Matos (conhecido pelo Boca do Inferno) de tal forma que o livro se lê como um romance de aventuras. Muito do que está escrito nas 555 páginas do livro é a História de Portugal e do Brasil do século XVII e a grande marca do génio de Gregório de Matos que, como todos os génios, acabou por morrer pobre e enjeitado pelos seus contemporâneos depois de uma vida tão atribulada que incluiu uma deportação para Angola.
No dia em que escrevo esta crónica ouvi o presidente do Sindicato dos Médicos dizer que 15% dos infectados com o coranavírus são profissionais de saúde. Falta contabilizar os profissionais dos lares, e das outras unidades de cuidados de saúde espalhadas pelo país, para termos a noção exacta do que é uma profissão de risco, e de quanto vale ficar em casa com o ordenado garantido faça sol ou faça chuva.
O aeroporto de Lisboa, que estava a abarrotar de gente e era território de negócios chorudos para as grandes marcas nacionais e internacionais, está fechado como a loja do meu vizinho Carlos que vende livros em segunda mão num espaço de dez metros quadrados, na rua mais pobre e mal iluminada da minha cidade. Foi lá que vi, e não comprei, um azulejo com estes versos atribuídos a Gregório de Matos: “o honesto é pobre, o ocioso triunfa, o incompetente manda”. JAE.
Sem comentários:
Enviar um comentário