A pandemia fragiliza as famílias, os líderes e acima de tudo os cidadãos mais idosos. O vírus faz cobarde o mais destemido dos nossos amigos.
Stefan Zweig conta na sua autobiografia “O mundo de ontem” que se lembra de ver Adolf Hitler a dirigir comícios nos largos da cidade de Viena para meia dúzia de apoiantes. Depois foi crescendo em discurso, e em apoiantes, até se tornar o maior criminoso da História da Humanidade. É verdade que passaram cem anos e a civilização evoluiu mais nas últimas dezenas de anos do que em muitos séculos. Mas a modernidade, que em alguns casos equivale à descoberta da roda e do fogo, não nos deve impedir de olharmos para o passado como lição, quanto mais não seja para não baixarmos as guardas: nós, que exercemos profissões em que o trabalho tem muito de cidadania, e aqueles que, noutras frentes, têm tantas ou mais responsabilidades do que nós no exercício do poder e na defesa da democracia.
A pandemia fragiliza as famílias, os líderes e acima de tudo os cidadãos mais idosos que dependem de uma instituição de acolhimento. Não são só os velhos que estão nas mãos de gente sem escrúpulos que gere lares ilegais, com o Estado a demitir-se das suas responsabilidades. Portugal ganhou nos últimos anos na educação, principalmente no ensino pré-escolar e universitário, o mesmo, ou ainda mais, do que perdeu para o apoio à terceira idade. Está à vista de todos. Bastou um vírus que, em teoria, só é mortal para quem tem graves problemas de saúde, para cairmos todos por terra e vivermos com o sentimento de que vamos morrer que nem tordos, se não for às mãos do Diabo será aos pés dos homens dos impostos, ou dos bancos, ou dos DDT (donos disto tudo), só para lembrar alguns dos tentáculos que nos cercam.
O que se passa na pequena aldeia do Arripiado, Chamusca, é pior que a Covid-19 e não vemos ninguém na defesa daquela gente. A justiça deu um sinal mas todos sabemos que os monstros mexem-se devagar. Os políticos estão cagados de medo e não têm dinheiro para contratarem segurança privada que substitua a GNR. Má sorte ter nascido no Arripiado e ter como presidente da Câmara da Chamusca um tipo tosco e analfabeto.
Toda a sociedade está refém de um vírus que fecha portas e janelas e até faz cobarde o mais destemido dos nossos amigos. Mais do que enfraquecer a democracia, o vírus enfraquece as relações, põe a nu as nossas mais pobres ambições, mostra que somos muito menos resistentes numa relação de amizade, ou familiar, do que na luta contra a doença ou no medo da doença.
Não me revejo nos políticos que participam em programas de humor na televisão com o fato de fim-de-semana, nos poderosos que se juntam para festejar calendários de jogos de futebol; nos iluminados que vão para as avenidas empunhar bandeiras políticas e comemorar dias especiais; acho que o vírus já matou e vai continuar a matar de medo muita gente que achava que fazia parte das estatísticas que apontam para uma esperança de vida acima dos 80 anos. A culpa será menos do vírus e mais daqueles que nos metem medo com o vírus, que nos confinam em Abrantes pelas mesmas razões que nos mandam para casa em Odivelas ou na Amadora, por aqueles que agora mesmo estão a decidir nos gabinetes de Lisboa quais as empresas que vão morrer e os empresários que vão continuar a dominar o sistema.
O autor de que falo no início deste texto viveu as duas guerras mundiais a fugir da Áustria para Inglaterra e, mais tarde, para o Brasil. Foi amigo de Rilke, Freud, Joyce, Mann e tantos outros artistas e humanistas da época. Dizia ele que fugia de um mundo cruel e louco para poder sobreviver, embora depois sucumbisse às feridas do seu tempo.
Para quem sente que a leitura é um remédio milagroso contra todas as doenças, que entretanto reapareceram com a chegada do coronavírus, recomendo a leitura da sua autobiografia; poucas vezes na vida compreendi, durante a leitura deste livro, o mundo em que não vivi. JAE.
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