quarta-feira, 13 de agosto de 2008
“Este fanático das nuvens”
Uma noite da passada semana, antes de adormecer, saltei da cama para o sofá da sala. Desci ao rés-do-chão poucos minutos depois de ter subido ao primeiro andar e fui cumprir um ritual que era preciso cumprir nessa noite. Incluído no ritual estava a leitura do livro que trazia debaixo do braço nessa altura,“Este fanático das nuvens”, de René Char, com tradução de Ivete Centeno.
Cerca de duas horas depois, quando voltei a subir ao quarto, com uma vontade enorme de fechar os olhos e dormir, senti um cheiro a fumo no corredor que me fez andar a farejar por toda a casa. Depois de sossegar em relação ao que mais me preocupava, dirigi-me ao meu quarto e percebi que o cheiro a fumo vinha da rua. Espreitei pela janela, que estava aberta, e vi como o fumo saía da janela do meu vizinho que distancia cerca de dois metros da minha.
Vesti-me a correr e saí para a rua. A fumarada tinha aumentado. A casa do vizinho parecia deserta. Corri para chamar os bombeiros, que têm quartel a cem metros da minha casa e, depois de dar o alerta, voltei ao local do fogo. O fumo tinha dado lugar às chamas. No meio da casa parecia que alguém tinha acendido uma fogueira. A fogueira parecia querer furar a madeira do tecto e beijar as telhas de canudo. Voltei aos bombeiros e dei o alarme pela segunda vez. Pensei: enquanto corro e grito por socorro não fico nas mãos da cruel sensação de ver começar a arder a minha própria casa.
Dez minutos depois o assunto estava resolvido. O meu vizinho acordou, com o insistente bater na porta da sua casa, a tempo de evitar o pior. Os bombeiros chegaram logo a seguir e fizeram o rescaldo.
Adormeci muito depois das quatro da manhã mas ainda voltei ao René Char e à memória de há 15 anos atrás, quando li “Furor e Mistério” pela primeira vez numa cidade do mundo, precisamente numa noite mal dormida pela ansiedade e cansaço de uma longa viagem. “Este fanático das nuvens” tem alguns poemas desse volume. Acabei por reconhecer alguns deles e por isso me entusiasmei com a leitura. Fiquei a dever a um grande poeta e aos segredos da sua poesia, que redescobri pela noite dentro, o milagre de não ter a minha casa sem telhado e um, dois ou três tanques de água a correrem do soalho para a rua depois de deixarem um rasto de destruição. Quanto ao meu vizinho nunca mais falei com ele. Um dia destes vou oferecer-lhe um livro de poesia para ver se ele, em troca, me dá um melão daqueles que vende à beira da estrada.
“Recomendo-te a prudência, a distância. Desconfia das formigas satisfeitas. Cuidado com os que se dizem seguros porque pactuam. Nem sempre é fácil ser inteligente e ficar calado, contido e revoltado”. “Não compreendo e se compreendo aquilo que descubro é aterrador. Só se pede de empréstimo o que se pode devolver aumentado. Ninguém acredita na boa fé do vencedor. Na minha terra agradece-se”. (excertos de alguns poemas de René Char).
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