quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Isto é gozar com quem trabalha em Santarém

Uma crónica a fazer-me caro quanto ao meu interesse pelo importante festival de gastronomia que decorre em Santarém e uma experiência única com a ida ao padel, à piscina e à feira num jardim de Telheiras.

À sexta-feira, principalmente à sexta-feira, o trânsito na estrada nacional dentro da vila da Chamusca e junto à ponte Joaquim Isidro dos Reis é de bradar aos céus. A meio da tarde de um destes dias fiz uma observação sobre o assunto no local a uma pessoa que conhece bem o problema, que vive diariamente, e não obtive qualquer reacção. Mais tarde é que se fez luz. O que é que eu queria como resposta? O mesmo de sempre? Que o meu interlocutor voltasse a bater no ceguinho? De tanto vivermos certas dificuldades, uma grande parte de nós arranja maneira de as ultrapassar para poder sobreviver e seguir em frente. É o que acontece na Chamusca. A fila de carros provocada pelos semáforos incomoda e prejudica, mas não é pior que uma pandemia.


Nenhum dos meus filhos se pode queixar de ter um pai que se recusava a dar-lhe horas de bicicleta, corrida, passeios pela charneca ou pelo Tejo, horas de leitura ou de brincadeira pura e simples. Tive sorte porque os dois primeiros bem cedo prescindiram do pai em favor dos amigos. Com o terceiro a ligação demorou mais tempo e ainda chegámos a disputar taco a taco jogos de mesa, corridas de bicicleta, subidas às árvores, entre outros desportos amadores.

No sábado passei o dia com uma neta de sete anos e consegui visitar uma feira, comprar uma dúzia de livros escolhidos a dedo, de joelhos no chão, ir à piscina com ela durante quase três horas, e ainda deu tempo para uma caminhada pela cidade para comprar lâminas, duplicar chaves, entre outros afazeres. Logo às 10 da manhã, no padel, que para mim é um jogo de meninos comparado com o ténis de mesa que pratico desde os meus 10 anos, meti-me com a mãe de um rapagão e percebi como é que hoje se vive nas cidades-dormitório. A minha neta fez-me duas perguntas durante a viagem de carro que não vou esquecer: “avô esta garrafa de água é de confiança, não tem nada lá dentro que me faça mal”. “Avô o seu casaco tem alguma coisa dentro que uma criança não possa ver”? Duas perguntas que eu, ou a mãe dela, jamais faríamos nos nossos tempos de infância.


A Feira Nacional de Gastronomia de Santarém é uma iniciativa que valoriza a cidade. Eu não frequento por achar que é uma feira de vaidades, mas também porque já não tenho idade para me meter nos copos nem para comidas pesadas e picantes. No entanto, não perco as imagens dos dias de inauguração em que os políticos e alguns figurões da terra se passeiam de copo de cerveja na mão e cigarro ao canto da boca. Este ano a inauguração coincidiu (quase) com o dia a seguir às eleições. Que lindos estavam os caciques do costume, que, embora politicamente tenham perdido tudo o que havia para perder nas eleições autárquicas no concelho de Santarém, passearam-se 

sem um pingo de vergonha pelo mau exemplo que são, e acima de tudo pela responsabilidade que deviam assumir por serem os coveiros de sempre desta cidade monumental. Não falo de nomes. Não é por ter medo ou cobardia. É para não lhes dar publicidade de borla. Alguns deles ainda gozam com quem trabalha. JAE.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Um dia de eleições e muito território em Ourém

Uma visita a cinco freguesias do concelho de Ourém em dia de eleições locais foi o melhor pretexto para conhecer território que para mim ficava para lá do sol posto.


Portugal é um país com apenas três por cento de terra: o resto é mar. A comparação serve-me para falar do distrito de Santarém, do Ribatejo em particular, que é muito maior em território e beleza que o nosso tempo disponível para o percorremos e conhecermos como merece. No passado domingo fui para Ourém conversar com os líderes políticos de cinco freguesias que não tiveram concorrência nas urnas. Percorri muitos quilómetros como o leitor pode confirmar se ler o texto da página 24 desta edição. O que vi deixou-me satisfeito e orgulhoso. Em muitas dezenas de estradas, e talvez uma centena e meia de quilómetros, não vi publicidade selvagem em nenhuma esquina nem cartazes de propaganda política, que não fosse o mínimo dos mínimos, e as estradas estão todas bem conservadas, as valetas limpas e as ervas cortadas.

Percorri lugares onde sempre ouvi dizer que lá só morava o diabo, e é tudo mentira. O interior do concelho de Ourém é um território que fica a menos de 90 minutos de Lisboa. Há por lá a chamada “Cova do Lobo”, mas é apenas um lugar como muitos outros que existem do Minho ao Algarve. Há muitos anos que não via a extracção da resina dos pinheiros como acontece no interior do concelho de Ourém. E dizem os autarcas com quem falei que os fogos deram cabo de muita da economia da pequena floresta.

Todos os autarcas e população com quem falei confirmam que o concelho sofreu muito com a emigração, que não é fácil viver no interior, mas do mesmo mal já ouvi queixas em Coruche, em Rio Maior, em Aveiras de Cima, para não falar em Abrantes e Tomar, que, para quem mora no centro da região, parecem cidades que ficam no meio do caminho que fazemos para a piscina ou o ginásio (passe o exagero).

Benditas eleições que me fizeram adiar a leitura de Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, faltar ao encerramento da festa do cinema francês, em Lisboa, para o qual tinha convite, entre outros prazeres como ficar a gozar o tempo de ócio que não gozei quando tinha 30/40 anos e trabalhava de noite e de dia. Deviam realizar-se eleições locais no mínimo todos os anos para ouvir mais rádio e perceber que todas as estações estiveram hora e meia a encher chouriços com os jornalistas a repetirem, todos ao mesmo tempo, o que se ia dizendo nas televisões, que por sua vez também viviam todas de meia dúzia de sondagens feitas à boca das urnas numa pequena parte das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

Rádios e televisões em Portugal são a maior pobreza franciscana. Várias vezes ouvi a pergunta dos jornalistas para os comentadores de serviço, enquanto eram conhecidos apenas os resultados das pequenas freguesias: “acha mesmo que estas eleições podem ser uma grande surpresa?” para as respostas que eram sempre as mesmas, embora elaboradas de formas diferentes conforme a cultura geral do comentador. A certa altura cansei-me de mudar de estação para estação e apeteceu-me deitar o rádio do carro para um caixote do lixo da auto-estrada. Ainda parei e procurei perceber se era fácil arrancar o rádio do carro e deitá-lo fora. Quando abrandei, e vi que atrás de mim vinha um carro da polícia, é que percebi que resolvia o problema rodando um botão. E assim fiz. O rádio continua desligado até hoje e o meu carro continua valorizado para quem ainda acredita que as rádios ainda são uma escola de jornalistas.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Domingo é dia de escolher os políticos de proximidade

No dia do funeral de Sérgio Carrinho revi um vídeo de uma entrevista ao autarca da Chamusca em que aparece por acidente o ex-presidente da Câmara da Golegã de outros tempos, Manuel Madeira, a dizer de fugida que não queria nada com o jornal. E já não era autarca há pelo menos 15 anos. São dessas boas memórias que um dia vou escrever um livro nem que seja só para memória futura.

Francelina Chambel, 91 anos, foi uma das cinco mulheres que presidiu a uma câmara municipal (do Sardoal) logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. A rádio Renascença descobriu-a e fez-lhe uma entrevista na sua nova casa em Cascais, onde contou como foi governar o concelho, durante 17 anos, sem qualquer experiência política e logo a seguir à queda do antigo regime. O Sardoal era a terra do marido. Saiu de Marvila, em Lisboa, onde chefiava uma secção da Segurança Social, e lá foi para o Sardoal. O que fica desta entrevista? Duas frases que pretendem envergonhar os autarcas que passam a vida a organizar festas de meio milhão de euros, a passearem-se de charrete em cortejos com o povo trajado a rigor, à boa maneira de antigamente, a alimentarem empresários taurinos, em muitos casos a gerirem orçamentos milionários em que mais de metade do dinheiro é para sustentar a pesada máquina da autarquia: “Fico horrorizada quando ouço alguns autarcas a dizerem que não fizeram uma única casa no seu concelho”, e assinala “os cinco bairros sociais que foram construídos” durante o seu mandato. Por fim, pede atitudes mais altruístas aos actuais autarcas no exercício do poder “para se esquecerem de si próprios e tratarem bem os outros”.

Já escrevi aqui que não votaria num autarca que não tivesse no seu programa eleitoral a construção de casas de renda acessível ou bairros sociais para os mais desfavorecidos. Não me admira por isso que Francelina Chambel fale deste assunto com veemência, 50 anos depois do 25 de Abril, sabendo que uma pessoa só pode ser feliz se tiver uma casa para viver. Por fim fala dos autarcas “endeusados”, que compram bons carros, lembrando que quando foi para o Sardoal não tinha carro.

Vou viver o próximo domingo a trabalhar, mas para mim já nada é como dantes. O meu trabalho não será em reportagem, por ser dia de eleições autárquicas, mas a organizar a semana para segunda-feira poder regressar à secretária e tratar dos assuntos que ainda não entreguei a ninguém. Confesso, no entanto, que tenho saudades desses tempos em que tinha essa obrigação de fazer fotos e textos nos principais concelhos onde trabalhávamos. Mas não vivo das saudades. Vivo um dia de cada vez e domingo vou viver certamente um dia feliz ganhe quem ganhar. No dia do funeral de Sérgio Carrinho revi um vídeo de uma entrevista ao autarca da Chamusca em que aparece por acidente o ex-presidente da câmara da Golegã de outros tempos, Manuel Madeira, a dizer de fugida que não queria nada com o jornal. E já não era autarca há pelo menos 15 anos. São dessas boas memórias que um dia vou escrever um livro nem que seja só para memória futura. JAE.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Luís Fernando Veríssimo, Juan Arias e Paulo Pires Teixeira

Num dia de vida boa, em que houve tempo para pôr a escrita em dia, recuperei pequenas memórias destes últimos tempos.

A morte recente de Luís Fernando Veríssimo não foi surpresa, mas deixa saudades. Convivi com ele em Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil)  em pelo menos três iniciativas. Curiosamente, para além de fisicamente ser parecido com o meu amigo André Seffrin, que também é gaúcho, pareciam irmãos na postura, falam pouco, mas quando falam todos se calam para os ouvir. Na última vez, num auditório onde ficamos apenas quatro almas, só a mulher falava...por ele.  Distante do grupo mais de um metro, Luís Fernando Veríssimo só acenava com a cabeça e, de vez em quando, completava o que a mulher dizia. A companheira falava por ele e ele mantinha-se atento, mas, ao mesmo tempo, alheado da conversa. “O que separa o homem dos bichos é que o homem sabe que é irracional”; “Deus nos livre da burrice alheia, que a nossa é pitoresca”; “A biblioteca é o lugar onde começamos a nos conhecer”; “Vou morrer sem realizar o meu grande sonho: não morrer nunca”; “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas”. Era um dos melhores escritores em língua portuguesa. Morreu a 30 de Agosto com 88 anos. “A morte é uma sacanagem. Sou cada vez mais contra”.

Já viajei por Moçambique há muitos anos e adorei. Se há lugares onde gostava de me perder para sempre era por lá, na praia das conchas, a três centenas de quilómetros de Nampula, e de outras tantas praias cujos nomes esqueci, mas que fazem parte dos lugares mais paradisíacos na terra. Nunca mais voltei, mas não foi por falta de convites. Há dias o Paulo Pires Teixeira, que voltou há uns bons anos para Maputo, e que foi meu companheiro nessa viagem de há muitos anos, insistiu mais uma vez para o visitar já que temos conversas para pôr em dia. Numa das mensagens escreve, depois de eu lhe dizer que é desta, que ficará “imensamente feliz”, e sugere, embora só tenha escrito três palavras, que todas juntas valem uma crónica; e é verdade, também os mais belos poemas alguma vez escritos continuam a ser os haicais, de origem japonesa, que têm apenas três versos.

Em 22 de Novembro de 2024 morreu um dos jornalistas que mais admirei ao longo da minha vida de aprendizagens. Conheci Juan Arias na sua casa no Rio de Janeiro pela mão da Suzana Vargas que era amiga da escritora Roseana Murray. Nesse dia era ele o cozinheiro e o prato era à base de alho e cebola, que a Roseana adorava e comia quase todos os dias para se vingar do primeiro marido que detestava o cheiro a alho. Juan Arias era um jornalista e escritor que dificilmente será esquecido. Era um ser humano com um coração do tamanho do Universo. Tenho todos os seus livros. Algumas das suas reportagens, quando se mudou para o Brasil, chegaram a gerar protestos do governo brasileiro junto da Embaixada de Espanha. Juan adorava Portugal e dizia que nunca tinha conhecido um país onde os nativos convidassem os turistas para almoçar, principalmente nas aldeias do norte de Portugal que visitava muitas vezes aos domingos. Com quase sete décadas de profissão, metade delas foram na Santa Sé, onde foi correspondente no Vaticano e acompanhou para o El País, jornal que ajudou a fundar, os Papas Paulo VI e João Paulo II em mais de 100 viagens. Descobriu na biblioteca do Vaticano o único códice existente escrito no dialecto de Jesus, que estava catalogado incorrectamente. Na Universidade de Roma, estudou filosofia, teologia, psicologia, línguas semíticas e dedicou-se à literatura com mais de 20 livros publicados, muitos deles editados simultaneamente no Brasil, em Portugal e em Espanha. A sua história de amor com Roseana Murray dava um romance. JAE.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Carlos Moedas vai perder a Câmara de Lisboa; Só ele é que ainda não sabe

É surreal a classe política não ter vergonha desta falta de sentido de Estado. Morreram 18 pessoas num acidente que podia ser evitado se o elevador da Glória estivesse a funcionar como devia, ou seja, em caso de avaria de um sistema haveria mais três para evitar a tragédia. A verdade é que não houve, segundo sabemos e foi amplamente noticiado.

Carlos Moedas é o responsável político pelo desastre do elevador da Glória que matou 18 pessoas e fez muitos feridos graves. O mundo inteiro soube deste acidente que podia ser evitado se a Carris tivesse um acompanhamento muito mais profissional aos elevadores. Na hora em que avariou não funcionaram os travões e tudo aquilo que o elevador tem para funcionar na hora em que se parte um cabo, como foi o caso. Se num caso como este os políticos responsáveis não se demitem, então é certo que a culpa vai morrer solteira. A prova de que Carlos Moedas é um político de outros tempos não deriva só de não se ter demitido; é exemplo também o facto de não ter obrigado o presidente da Carris a demitir-se, e a empresa que faz a manutenção a justificar-se ou, pelo menos, a dar a cara. Neste último caso o que se sabe é confrangedor, revela gato escondido com o rabo de fora, o que compromete ainda mais os responsáveis políticos e os administradores da Carris. Uma vergonha para Portugal, para Lisboa e para os políticos em geral.

É surreal a classe política não ter vergonha desta falta de sentido de Estado. Morreram 18 pessoas num acidente que podia ser evitado se o elevador da Glória estivesse a funcionar como devia, ou seja, em caso de avaria de um sistema haveria mais três para evitar a tragédia. A verdade é que não houve, segundo sabemos e foi amplamente noticiado.

Se Carlos Moedas voltar a ganhar a Câmara de Lisboa é caso para dizer que estamos perdidos; que os políticos podem continuar a gerir sem serem chamados a dar contas das administrações das suas empresas; que para eles tanto faz que o desastre seja a queda de um muro como a avaria num elevador que causou a morte a 18 pessoas.

Portugal tem uma classe política que em muitos casos parece de terceiro mundo. Veja-se o caso recente do cartel da banca: os bancos foram apanhados a fazer joguinhos entre eles e foram multados em quase 300 milhões de euros, que já não pagam porque os tribunais não funcionaram a tempo e o processo prescreveu. É exactamente assim que também funciona o Tribunal Administrativo onde o Estado se esconde quando um cidadão recorre à justiça. A maioria dos casos demoram eternidades a serem julgados, e o Estado ganha por cansaço dos queixosos, por, entretanto, morrerem as pessoas queixosas, ou por tantas outras razões como a falta de dinheiro para continuarem a pagar a advogados.

A ascensão da direita pífia em Portugal só se explica com as políticas pífias dos partidos políticos que dominam o Sistema. Há sondagens para as próximas eleições autárquicas na região do Ribatejo, só para falar da nossa região, que a confirmarem-se 

vão deixar muita gente de boca aberta. Não vou à missa, mas se fosse rezava pela democracia e pelo funcionamento das instituições do Estado de forma que a direita pífia voltasse para dentro da farda onde se escondia. Temo que nem Deus nos salve se continuarmos a ser governados por democratas cuja missão de vida parece ser desacreditar André Ventura, que já faz da Assembleia da República o palco político para chamar a todos os seus adversários políticos a “Corja”, um termo que só abrindo o dicionário conseguimos avaliar para percebermos também o que vai ser o futuro. JAE.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Uma visita ao antiquário e a arte para conforto espiritual

Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam ( : ) alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante.


A minha relação com a cidade de Santarém é parecida com a relação que tenho com a cidade do Porto. Gosto mas nunca me apaixonei. O mesmo com os nativos, nunca participei em tertúlias nem tão pouco fui convidado. Embora sejam bem diferentes são cidades pequenas, se nos queremos manter independentes dos bairros e dos bairristas ficamos quase sempre a falar sozinhos. Há ainda em comum o facto de serem cidades com longas tradições. Os seus nativos não gostam de abrir a porta do coração a estranhos. Podem ser simpáticos mas sem muitas confianças.

Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam para começar a minha peregrinação pelos objectos que me surpreenderam, alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante. De repente comecei a ouvir as histórias de cada um dos livros conforme ia perguntando pelos preços, mas à segunda descrição já tinha descoberto a quem os livros pertenciam, ou seja, já tinha a certeza de que não estava com visões; eram de uma amiga de longos anos, filha de pais riquinhos, que herdou o bom gosto, mas também muita coisa que lhe enche a casa e que vai ocupando o lugar que não sobra para as novas bugigangas.

Cada vez que cantava um preço para um livro, ou outro objecto, descrevia-me as partes mais importantes da biografia da antiga proprietária, minha amiga, muitas vezes provocado pelas perguntas que de forma provocadora lhe ia fazendo à procura de perceber até onde chegava o paleio do antiquário.

“Tem bom gosto”. “Vou confessar-lhe: isso era de uma arquitecta do Porto que é meio louca”. “Vê-se que é uma mulher inteligente, e pode comprovar por esses livros todos que ela me vendeu”. “Casou com um dinamarquês há pouco tempo, ainda é uma mulher interessante”. “Sim, é rica o suficiente para se desfazer de património que lhe enche a casa. Tem uma pancada medonha”. “Desculpe, mas não posso vender mais barato. A minha cliente obrigou-me a dar-lhe um bom preço pela peça. Ela sabe o valor do que me vende”. “É meio desapegada dos bens materiais, mas informada o suficiente para não se confundir com os herdeiros que, por não saberem o valor da dádiva, vendem a qualquer preço”.

Omito outras considerações mais pessoais e íntimas, que ele me ia contando para me entusiasmar a comprar toda a mercadoria que me interessava, e deixo à imaginação do leitor o que um negociante é capaz de romancear para fazer negócio com um provinciano, que ele primeiro confundiu com um médico de profissão, depois com um empresário endinheirado, mais tarde com um coleccionador daqueles que ele sabe que vão comprar se o preço baixar até ao valor justo.

Saí da loja com meia dúzia de objectos e não tive a sorte de encontrar um livro que eu próprio ofereci à minha amiga há duas dezenas de anos: um livro ilustrado que já quis encontrar para me prendar a mim próprio, e que por mais que procure não consigo encontrar nem no mercado de segunda mão.

A história acaba aqui: nunca mais voltei à loja porque alguns meses depois desta aventura no antiquário reencontrei a minha amiga e contei-lhe uma parte da história. Tive que fazer jus à nossa antiga amizade. Os verdadeiros amigos devem ser as últimas pessoas a quem devemos trair. Já os negociantes têm uma vida toda para ir aprendendo a viver com coincidências, clientes mais ou menos loucos que ou vendem ou compram. Os que compram, e que meia dúzia de dias depois já não sabem onde guardaram a mercadoria, e os que vendem, e ainda nesse mesmo dia gastam o dinheiro numa mala de marca ou numa serigrafia do Artur Bual ou do José de Guimarães, que nas paredes da sala servem de companhia e de apoio espiritual nas horas mais solitárias. JAE.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Os caciques não vão à escola

Hoje quase que não há jornalistas com carta de condução, porque Lisboa tem uma excelente rede de transportes e o jornalismo é caro, os governos fazem-no ainda mais caro, um jornalista que queira contar a epopeia do Parque do Relvão tem que falhar as idas ao Snob, os encontros com os Escárias desta vida.

Pensar globalmente e agir localmente é a frase que fica de um momento cimeiro dos tempos recentes que só é comparável noutras dimensões à queda do muro de Berlim e a tudo o que desmoronou a seguir, a tudo o que se ergueu também mas não é disso que quero falar aqui neste cantinho, neste jornal local/regional, editado para servir uma região e uma comunidade com a voz sumida, muitas vezes afónica, organizada como se fosse um grande quintal, dividido por cercas de arame farpado, num território onde os caciques compram com facilidade as propriedades de muros altos, daqueles a quem serviram, embora nunca cheguem a conquistar o mérito e a humanidade daqueles a quem conquistaram o mesmo estatuto, embora nunca o respeito e a dignidade, porque cacique não vai à escola, não lê, ignora o poder transformador das artes e de todas as ciências, o que ele sabe é o que dá a terra que nunca foi lavrada e semeada; 

local e regional é o mesmo que dizer charneca, aldeia, ruína, floresta, municipal, entre tantos termos que dão significado à nossa História, que Alves Redol, José Saramago, Joaquim Veríssimo Serrão e tantos outros homens de letras souberam interpretar e deixar escrito, embora poucos de nós saibamos interpretar o que lemos e muitas vezes nem saibamos sequer ler, quanto mais interpretar, foi por isso que na morte de Sérgio Carrinho ninguém falou/escreveu sobre o Parque do Relvão, todos os jornais locais/ regionais incluíndo os de Lisboa e Porto, fizeram o obituário como se Sérgio Carrinho tivesse trabalhado 40 anos no exercício de um cargo público como um simples artesão de fazer colheres de pau, quem é que sabe o que é verdadeiramente o Parque do Relvão? e dos que sabem quem é que quer escrever nos jornais sobre a derrota e a humilhação de que a Chamusca foi vítima depois de Sérgio Carrinho ter sido o único autarca do país a pensar primeiro no interesse nacional e só depois no interesse do seu concelho e do bem-estar da sua população? 

todos sabemos que sem omeletes não se fazem ovos, José Sócrates e antes Mário Soares e Álvaro Cunhal quiseram ter a comunicação social na mão, porque os jornalistas são os únicos intérpretes da realidade que a podem explicar ao mundo chamando os bois pelos nomes, por isso é preciso ter os jornais controlados, hoje quase que não há jornalistas com carta de condução, porque Lisboa tem uma excelente rede de transportes e o jornalismo é caro, os governos fazem-no ainda mais caro, um jornalista que queira contar a epopeia do Parque do Relvão tem que falhar as idas ao Snob, os encontros com os Escárias desta vida, não tem tempo para ir à televisão fazer um comentário em horário nobre, isto está mau para a democracia, para o interior do país onde o grande negócio é o eucalipto, e logo a seguir as estufas no Alentejo, onde o território já se equipara a Marrocos, por isso, em homenagem ao Sérgio Carrinho, fiquem lá com o aeroporto, com todos os aeroportos que quiserem construir, um dia destes há-de aparecer outro Sérgio Carrinho que bata com a mão na mesa e faça ver a estes merdosos dos políticos do Reino que os provincianos aceitam levar com o lixo em cima, com os camiões a entrarem pela casa adentro, mas alguém tem que ajudar a sustentar o Centro de Apoio Social da Carregueira, a construírem outra ponte sobre o rio Tejo ao lado da que já existe, que o resto nós fazemos, cá nos desenrascamos; 

isto de viver por perto dos sobreiros não é assim tão mau como parece, temos pena é que a nossa gente continue a desprezar a educação dos filhos e nos saiam na rifa políticos locais que estudaram para caciques, sacanas que estão sempre prontos para se meterem a jeito de levarem umas palmadas, gente ordinária que não tem um mínimo de noção das suas tristes figuras, e para rematar que a prosa já vai longa, temos pena que o texto seja editado com uma pontuação à Saramago mas foi o que saiu, e como esta crónica não é para convencer ninguém, é muito provável até que a maioria dos leitores fique a meio do caminho, pois que se danem os falsos reformadores do Governo, os caciques que andam por aí a viver à custa do orçamento, e já agora que vou embalado que quem sair presidente da Câmara da Chamusca nas próximas eleições leve o Parque do Relvão em folhetos para o Rossio de Lisboa e faça uma campanha junto dos turistas nacionais e estrangeiros que certamente faz desabar a caliça do Carmo e da Trindade. JAE.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Morreu Sérgio Carrinho: a sua vida dá um romance

Não há melhor forma de falar de Sérgio Carrinho que recordar o seu gosto pelas velharias, o prazer de conversar enquanto partilhava um cigarro e um copo meio cheio, a facilidade com que metia a mão ao bolso e enchia a mão de quem lhe pedia ajuda.

A minha manhã de hoje, dia 31 de Agosto, em que Sérgio Carrinho adormeceu para sempre, foi passada numa feira de velharias a regatear preços de livros, a saber como vai o preço do ouro e da prata em segunda mão, a ouvir histórias de gente que anda com a casa às costas, almoça e lancha fazendo uso de uma mão, trabalhando com a outra a mostrar a mercadoria ou a receber o dinheiro das vendas.

Não há melhor forma de falar de Sérgio Carrinho que recordar o seu gosto pelas velharias, o prazer de conversar enquanto partilhava um cigarro e um copo meio cheio, a facilidade com que metia a mão ao bolso e enchia a mão de quem lhe pedia ajuda para comprar tabaco, mas também muitas vezes dinheiro para comprar o pão, a botija do gás ou pagar a factura da luz.

A vida de Sérgio Carrinho dava um livro; um romance para ser mais exacto. O autor deste texto pode dar uma ajuda a quem se propuser romancear a vida do autarca da Chamusca que vai ficar para a História. Foi ele que me convidou para entrar na política, e foi já como presidente da câmara que o acompanhei durante alguns serões de trabalho no salão nobre dos Paços do Concelho.

Foi sol de pouca dura porque tínhamos tanto em comum que depressa nos cansamos um do outro. Não rima mas é verdade. Nunca deixamos de ser amigos, mas ele era um mouro de trabalho e eu era um jovem irresponsável que queria era putas e música, como se dizia na altura, e acho que ainda hoje se diz, mas sem a palavra puta.

Sim, se alguém escrever um romance e misturar no enredo a vida de Sérgio Carrinho, vai ter que usar muitas palavras chulas, porque ele não as evitava em qualquer circunstância, aliás, quem o conheceu sabe bem que os seus olhos riam quando lhe saía um palavrão que originava quase sempre uma gargalhada.

Soube da sua morte quando cheguei a casa carregado de livros, que ele também adoraria ter na sua estante, com excepção de dois ou três temas que não lhe interessavam, nomeadamente comunicação social e poesia. Sérgio Carrinho era tudo menos um poeta ou um leitor de poesia. Para ele os poetas eram uns chatos, embora fosse amigo de muitos poetas populares, nomeadamente da sua terra, o que não retira verdade ao que acabo de escrever. O seu gosto era pela História, nomeadamente política e social.

A vida que levou como autarca durante trinta anos não lhe deu tempo para fazer uma grande biblioteca ou ler a maioria dos seus autores preferidos. O que mais deixou na memória dos que com ele conviveram foi a ideia de que o mundo só anda para a frente com a força das ideias e do trabalho. Por isso ganhou todas as eleições em que foi a votos. E saiu da política devido à lei da limitação de mandatos que coincidiu, quis o destino, com a sua queda física e mental, embora não simultânea, mas quase, para sua tristeza e desgosto.

Nada disso o impedia de continuar a gargalhar, a gostar de conversar, continuar a queimar cigarros, de vez em quando com as lágrimas mais à flor dos olhos, mas sem mesuras, que mesureiro é coisa que ninguém lhe podia chamar, nem agora que já morreu e não está cá para se defender. JAE

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

A morte em directo do forcado Manuel Trindade

 Manuel Trindade, forcado do grupo de S. Manços, morreu ao tentar pegar na primeira tentativa um touro com quase 700 quilos na corrida que se realizou no passado dia 22 de Agosto na praça de toiros do Campo Pequeno. A morte não foi imediata, mas as contusões que o forcado sofreu contra as tábuas foram tão fortes que a sua morte acabou por acontecer horas depois já no Hospital.

Não deixo passar a morte deste forcado sem deixar aqui o que penso desta ocorrência e aquilo que protagonizo para o futuro da actuação dos grupos de forcados nas arenas. Assim como defendo o uso de bandarilha sem arpão, defendo que um grupo de forcados que se desfez em quatro segundos até o forcado da cara morrer contra as tábuas deve repensar a sua existência e a sua responsabilidade na morte do seu companheiro.

Não vale a pena poupar palavras. Um forcado que vai para a cara de um toiro sabe que pode morrer se não tiver as ajudas de que precisa. Se as ajudas forem incapazes de se juntarem a ele na cara do toiro, de parar o toiro ou desviá-lo das tábuas, o forcado pode morrer. Foi o caso.  Alguma coisa deve ser alterada, tendo em conta o historial da arte de pegar toiros. Nos últimos anos morreram 11 forcados nas arenas portuguesas (o número é provisório e cheguei lá depois de falar com alguns críticos da festa que escrevem regularmente sobre toiros).

Por ter vestido uma jaqueta sei o que é viajar à córnea ou à barbela na cabeça de um touro até bater nas tábuas. Eu e muitas centenas de forcados tivemos sempre a sorte do nosso lado, e não deixámos lá os miolos nem os órgãos que depois de castigados causam a morte antes da ajuda médica.

Um grupo de forcados vai para dentro do redondel com oito homens, mas tem outros tantos na trincheira. O que nós vemos nas fotos e no vídeo da pega de Manuel Trindade é quase um suicídio em directo. O toiro não tinha cara de diabo, mas com os seus quase 700 quilos certamente que tinha a força de um diabo.

Tenho no computador o filme da pega e é doloroso ver como o grupo de S. Manços foi ficando pelo caminho naqueles breves quatro segundos enquanto durou a reunião entre forcado e toiro e o embate nas tábuas que causou a tragédia.

Quem me lê e é aficionado vai dizer que estou a aproveitar-me da infelicidade de um forcado para ganhar leitores e fazer demagogia. Não estou: primeiro porque sei que na cabeça do forcado da cara o seu maior medo é chegar às tábuas sem ajuda, depois porque já vivi a mesma situação; segundo porque mesmo os forcados que nunca pegaram um toiro de caras sabem que o grande perigo das pegas não vem do toiro baixar a cabeça demais, de ensarilhar ou sequer de tentar derrotar o forcado; com mais ou menos pirueta ninguém morre da queda. Mas contra as tábuas morre-se ou fica-se paraplégico com muita facilidade, seja nas touradas oficiais, nas picarias ou nas largadas.

Quem fez o favor de me enviar o filme dos acontecimentos publicou as imagens e convidou-me a usá-las. Respondi-lhe que O MIRANTE, regra geral, não publica fotos de pessoas ou actos violentos. Do outro lado veio a resposta que eu esperava: “concordo: alguma coisa tem que ser feita para que se possam evitar mais mortes nas arenas como a de Manuel Trindade”.

Os trapezistas do circo já não morrem se caírem do arame, os pilotos de fórmula 1 morrem mas muito menos que os forcados, e quando arriscam é para sustentarem as suas grandes fortunas, o mesmo com os pilotos de aviões, de barcos, os atletas de alta competição que muito raramente morrem a praticarem desporto. Não é justo que os responsáveis pelas corridas de toiros não protejam os seus principais protagonistas que são os forcados, quando a pega corre mal e os seus companheiros não estão à altura de o ajudarem, embora por razões alheias à sua vontade e coragem.

Confesso que pensei duas vezes se devia escrever sobre o assunto, sabendo que o mundo dos touros não tem quem pense as touradas, quem tenha soluções para humanizar mais o espectáculo, defendendo-o dos anti-taurinos que são capaz de festejarem a morte de um toureiro ou de um forcado como se festeja a morte de um terrorista. Ver e ouvir os militantes anti-taurinos festejarem a morte de um toureiro ou de um forcado é execrável e mostra que ainda vivemos numa sociedade onde não há limites para a desumanidade. JAE

Nota: Dedico esta crónica a Rui Manuel Souto Barreiros que, embora tenha mais 12 anos do que eu, ainda me ensinou muito sobre como se sobrevivia, na altura da juventude, no seio dos grupos de forcados .



Henrique de Carvalho Dias publicou na edição online de O MIRANTE um texto e uma galeria de fotos da corrida no Campo Pequeno onde Manuel Trindade perdeu a vida. Esta foto foi cedida por Eugénio Eiroa Franco, um jornalista aficionado que edita o  “tribunadatauromaquia”. Entre o momento da reunião do forcado com a cara do touro e o embate fatal nas tábuas passaram apenas quatro segundos.


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Cheguei a velho... e agora?

Em tempo de eleições autárquicas, os velhos como eu perguntam quem é o candidato que promete a construção de residências para seniores, que tem um protocolo com as instituições do concelho para que nenhum velho morra em casa sozinho. Quem é o autarca que faz propaganda política com o investimento em cuidados para as pessoas da terceira idade, aqueles que nos últimos 70, 80 ou 90 anos carregaram o país às costas? Acho que não encontramos nenhum.

Não sei se faz sentido escrever uma crónica a dizer que cheguei à idade da velhice, mas ainda não me caiu a ficha. Quero dizer: tenho a idade de velho, mas mantenho a forma física e julgo que intelectual para fazer o que sempre fiz, embora em alguns casos mais devagar e com mais calma. Claro que não vai ser por muito tempo. Basta olhar à minha volta e fazer dos outros os meus espelhos.

O título da crónica não é inocente: quem sabe sirva de inspiração para um podcast. Não sou eu que me vou meter em trabalhos, mas quem não tem nada para fazer certamente tem aqui um bom pretexto para conseguir uns milhões de seguidores e ainda poder sonhar com uma entrevista numa qualquer televisão, no horário da manhã, que é quando o país acorda para a triste realidade do jornalismo em televisão.

A maioria da população adulta que vota é velha como eu e não faz a diferença na hora do voto. A maioria de nós nem imagina onde é que vai passar o resto dos seus dias, quem lhes vai mudar a última fralda ou dar o último prato de sopa à colher, se as coisas derem para o torto e não morrermos jovens como todos desejamos. Quantos de nós têm, ou vai ter a curto prazo, 2 ou 3 mil euros para pagar a uma residência de idosos que não seja um lar ilegal, ou legal mas gerido por alguém que aceita velhos a bom preço (900 euros), como quem acolhe cães moribundos?

Em tempo de eleições autárquicas, os velhos como eu que se perguntem quem é o candidato que promete a construção de residências para seniores, que tem um protocolo com as instituições do concelho para que nenhum velho morra em casa sozinho? Quem é o autarca que faz propaganda política com o investimento em cuidados para as pessoas da terceira idade, aqueles que nos últimos 70, 80 ou 90 anos carregaram o país às costas? Acho que não encontramos nenhum.

Quem não tiver amealhado uma boa fortuna, ou não tiver familiares endinheirados, se viver muito tempo baboso e de fralda tem um fim pior que um rato que se mete num buraco de uma cobra.

É difícil perceber que a direita do PSD e a esquerda do PS ainda sejam tão estúpidos que não gastem agora com os velhos e as crianças o que já não precisam de gastar em alcatrão e saneamento básico. É difícil perceber que os políticos/autarcas continuem a dar de mão beijada os melhores terrenos aos Continentes e aos Pingos Doces desta vida para, em vez de termos jardins e monumentos à entrada das nossas cidades, tenhamos grandes superfícies comerciais com anúncios gigantescos a fazerem lembrar a poluição visual nos países de terceiro mundo.

O voto é secreto e cada um deve votar segundo as suas convicções. Por uma vez faço um apelo aos velhos como eu que votem em quem tem nos seus programas eleitorais políticas de apoio à construção de creches e residências para idosos. Chega de nos meterem o dedo no traseiro e de fingirem que também não conhecem as pessoas da terra que para serem pais têm que deixar de trabalhar ou são segregados e espoliados dos seus direitos.

Por último: os velhos como eu sabem quem trouxe Ricardo Salgado de volta do Brasil para refazer a sua fortuna; quem recebia Belmiro de Azevedo nos gabinetes; quem fechou os olhos aos assaltos às empresas públicas desde que a nossa democracia perdeu o estado de graça.  Está na hora dos nossos políticos tirarem a máscara e não continuarem a querer fazer-se passar por otários que nós já comemos muitas gamelas de malvas cozidas e temos memória de elefante. JAE


Nota: Duas frases, que nenhum velho deve esquecer, de dois velhos que morreram jovens. Millôr Fernandes: “Um homem é realmente velho quando só pensa nisso”. Pablo Picasso: “É preciso muito tempo para nos tornarmos jovens”.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

É muito fácil enlouquecer quando não se viaja

“O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. Uma crónica sobre um livro de Luísa Dacosta e as cartas particulares a Marcello Caetano.

O que deu origem a esta crónica foi o gesto de, ao chegar a casa, quase às 11 da noite, ir à estante e tirar um livro para cima de uma mesa para no outro dia não me esquecer de o levar dentro da mala para o escritório e enviar no correio a um amigo que fez o favor de mo emprestar. Não é um livro qualquer: é um livro de Luísa Dacosta (1927-2015) com dedicatória, que se intitula Corpo Recusado, cuja leitura nunca teria procurado se o meu amigo não me tivesse contado que o livro é autobiográfico e conta a história de um amor traído. O personagem principal era uma figura importante da crítica literária portuguesa, que faz parte do meu imaginário, e com quem aprendi a desvendar alguns livros. Sabê-lo ali retratado na figura do amante que não foi capaz de saltar a cerca, fez-me saber, desde há cerca de um ano em que li o livro, em que lugar exacto da estante ele repousava à espera de ser devolvido.

Não por acaso hoje foi dia de cumprir a promessa de devolver o livro; passei uma boa parte da tarde à procura de um livro de Joaquim Veríssimo Serrão, que me lembro de ler e assinalar como faço aos livros de que gosto e depois guardo religiosamente para ir relendo. E um livro fácil de substituir na estante, mas o que procuro tem as marcas de uma primeira e segunda leitura que eu não gostava de perder. Por isso procuro-o, sabendo que um dia vou achá-lo, embora nessa altura certamente já tenha comprado um novo volume.

Acabei de reler os dois volumes das “Cartas Particulares a Marcello Caetano” com prefácio e organização de José Freire Antunes. A ideia era transcrever algumas das cartas para provar à sociedade que a comemoração do centenário da data de nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão merecia ter figuras do Estado, e que a sua amizade com Marcello Caetano não foi caso único, antes e depois do 25 de Abril, havendo até o caso das cartas do actual presidente da República, que bem merecem uma leitura embora à distância de muito mais de meio século. Com a mão na massa cheguei à conclusão que mostrar estas cartas exige-me um trabalho que não me apetece fazer, e escrever o que me vai na alma sobre o assunto começa a parecer-me gastar cera com defuntos. No entanto valeu a pena a releitura. Os dois volumes estão ao lado da biografia de Pacheco Pereira sobre Álvaro Cunhal, também em dois grossos volumes, estes com menos horas de leitura do que aquelas que eu acho que merecem. Heráclito deixou escrito que “os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”. É assim também com a leitura: quanto mais queremos saber sobre a vida de algumas figuras públicas mais nos escapa o que eles viveram na realidade.

Antes de começar a escrever a crónica e de voltar a folhear Corpo Recusado, em jeito de despedida do livro que me proporcionou uma leitura quase mística, sem arriscar um único sinal de leitura porque não se podem riscar os livros que os amigos nos emprestam, descobri uma folha com uma citação de um livro de Lawrence Durrell: “O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. O sentido da frase tem tudo a ver com o romance da Luísa Dacosta, mas agora também serve para deixar aqui nota da certeza que se sente de que por mais que nos esforcemos nunca conseguimos escrever na perfeição a carta adiada, a crónica, o poema ou o romance que diariamente nos consome os neurónios. JAE.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Tejo poluído e o Douro das águas profundas e navegáveis

No Porto é fácil falar de igual para igual com qualquer pessoa. No meu caso gosto de carregar nas teclas das ondas da praia da Aguda, das águas revoltas do mar de Esposende, ou da Granja, e o resto vem com a memória do que li nos livros de Agustina, Camilo, Eça ou João de Araújo Correia, entre outros.


Dormir com uma má decisão que só pode ser revertida no dia seguinte, se tudo der certo, já é canja para mim que cheguei à idade de quem vive à beira do abismo: ou deito-me por aí abaixo ou aprendo a equilibrar-me. Escolhi para já a última alternativa. 

Desfiz o equívoco que deu origem ao primeiro parágrafo com uma simples frase: já não sou o Joaquim que era há 20 anos. E o problema resolveu-se sem mágoas e equívocos, fruto do que sem pensar e de forma a despachar conversa tinha dito no dia anterior, e sem que com isso tenha perdido a razão. 

Na noite em que escrevo num quarto de hotel do Porto, estou de regresso de um momento musical numa casa apalaçada de um empresário da cidade.  Embora não seja a minha praia, “viajei”, durante o convívio, com alguns amigos e conhecidos por vários países do mundo por onde eles ainda viajam, alguns já dividindo trabalho com os filhos, fazendo aquilo que os portugueses sempre fizeram bem: vender o nosso produto lá fora. 

Como já não estou em idade de desvendar segredos, ou seja, já pouco me interessa saber como se ganha dinheiro, basta e sobeja-me ouvir as histórias, como a da senhora que há 60 anos se passeava no Porto com o Porsche com seis pessoas lá dentro, e deu várias voltas ao mundo a vender vinho do Porto da casa de família; o empresário que começou a viajar para a Tailândia e enriqueceu em meia dúzia de anos; o que construiu um império que lhe permite ter a casa de seis milhões onde hoje me acompanhou até à porta na hora da despedida, ou aquele que, por brincadeira, comprou um quadro de um pintor famoso e hoje tem uma colecção de arte que vale uns bons milhões.

No Porto é fácil falar de igual para igual com qualquer pessoa. No meu caso gosto de carregar nas teclas das ondas da praia da Aguda, das águas revoltas do mar de Esposende, ou da Granja, e o resto vem com a memória do que li nos livros de Agustina, Camilo, Eça ou João de Araújo Correia, entre outros. 

O Joaquim que hoje tem a oportunidade de ouvir, mesmo sem saber trautear, as canções do Rui Veloso numa casa apalaçada de Gaia, Vila da Feira ou Matosinhos, é o mesmo que há meio século corria para Lisboa para conhecer mundo e aprender o ofício que lhe deu corpo e espírito, qual deles o mais importante, para hoje poder decidir, quase à beira do abismo, se me cago de medo de cair ou se, na desportiva, aprendo sem dramas a arte de me equilibrar até a queda se transformar no prazer da última evasão.

Há força de acreditar que nunca devemos perder as ilusões, finalmente consegui perceber porque é que o norte e os portugueses do norte de Portugal fazem a diferença. Não fazia nada de diferente na minha vida se pudesse voltar atrás e mudar alguma coisa; talvez antecipasse uma dezena de anos a ingestão dos comprimidos que comecei a tomar para a queda do cabelo. Fiquei careca muito cedo, mas não tão cedo o suficiente para que os cabelos nos olhos não me tivessem tirado a visão, impedindo-me de ter ficado muito tempo a olhar de perto as águas poluídas do meu rio Tejo, em vez de ter ido mais cedo e mais vezes rio acima até ao Douro para ver melhor nas suas águas profundas e navegáveis. JAE

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Numa guerra os primeiros a morrer são as crianças

É imperdoável que os líderes dos organismos mundiais, a começar pela ONU, dirigida pelo português António Guterres, discursam nos dias de hoje a clamarem que “a fome jamais deve ser usada como arma de guerra”, quando todos os dias, e de há muitos séculos, essa é a arma principal dos facínoras. Uma vergonha que nos envergonha. 


Julho e Agosto são meses de menos trabalho em quase todas as profissões: a economia do país cresce significativamente em muitas áreas mas na maioria dos casos quase que anda a passo de caracol. Eu não me queixo: faça sol ou faça chuva tenho sempre trabalho, e quando não tenho invento, que é aquilo onde, para minha desgraça, acho que ainda sou o melhor de mim no meio de tanta gente que, certamente, já me deve olhar ou começar a ver como descartável.

Hoje, segunda-feira, dia 28 de Julho, por volta das 17h00,  o correio da redacção tem três e-mails de leitores a pedirem ajuda para denunciarmos roubos e má administração de alguns responsáveis por gabinetes de trabalho de autarquias, nomeadamente com assuntos ligados às obras e más condições de habitabilidade. É raro o dia que os leitores de O MIRANTE não contribuem para a agenda dos jornalistas, o que para nós é uma honra, um sinal de que embora não tenhamos sempre razão, temos um trabalho que nos obriga a nunca baixarmos os braços. Há outras mensagens no correio de hoje menos importantes, aparentemente, de leitores a protestarem por não terem recebido a edição impressa na sexta-feira, ameaçando desistir da assinatura. Há dias em que o telefone toca várias vezes só para explicarmos que a culpa é dos CTT que recebem os valores das facturas, a tempo e horas, todos os meses, e que não retribuem prestando o serviço com a qualidade que deviam. Nem por isso deixamos de dialogar com a administração dos CTT, também porque devemos ser dos maiores clientes do país. Curiosamente, são muito mais as reclamações da área do Vale do Tejo, a área com mais população, do que da Lezíria e Médio Tejo, mas ninguém tem explicações para dar, e nós limitamo-nos a confiar na lei do mercado; e a pedir encarecidamente a compreensão dos assinantes, já que as nossas notícias e reportagens são únicas e o jornal tem, no mínimo, uma vida que, em muitos casos, dura muito para além dos sete dias da semana.


As crianças são as primeiras vítimas

O que se passa no mundo, na Ucrânia e na Palestina, e em muitos países africanos de que nunca ouvimos falar, e que parece que não existem, é o maior absurdo dos dias que vivemos. Matar crianças à fome é a arma mais poderosa usada pelos ditadores políticos. Sem querer desviar as atenções das imagens que chegam de Gaza, com as crianças a morrerem à fome devido à guerra, remeto para um filme com o título de A Chorona, que pode ser visto na plataforma Filmin, um drama político que tem como pano de fundo o genocídio da população indígena maia, em 1982, sob o comando do ditador guatemalteco Efraín Ríos Montt. O director do filme, o guatemalteco Jayro Bustamante, mostra como se ataca um povo e se acaba com ele pela raiz, ou seja, antes de matar os pais matam-se primeiro os seus filhos, porque são as crianças, com a morte dos adultos, que ficam para darem testemunho. A guerra é cruel em todos os aspectos, mas fazer a guerra começando por matar primeiro as crianças, parece ser uma táctica tão antiga como a existência da humanidade. Mesmo assim os nossos políticos discursam como se fossem padres, e embora não usem armas com balas que matam, usam as palavras e os argumentos falsos que vão matando lentamente, como é o caso das crianças em Gaza. É imperdoável que os líderes dos organismos mundiais, a começar pela ONU, dirigida pelo português António Guterres, discursem nos dias de hoje a clamarem que “a fome jamais deve ser usada como arma de guerra”, quando todos os dias, e de há muitos séculos, essa é a arma principal dos facínoras. Uma vergonha que nos envergonha. JAE.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

José António Falcão: o alentejano que mora no coração do Ribatejo

José António Falcão é mais conhecido no Alentejo que os últimos ministros dos últimos governos do país. É um alentejano de gema, filho de proprietários agrícolas, mas a sua praia é a museologia, o património, a biodiversidade, a música e o trabalho de dinamizador cultural que vai conciliando com o de conservador de museus, ensaísta, professor, investigador, entre outros afazeres todos ligados ao que mais o apaixona. Mora em Santarém há muitos anos com a sua mulher Sara Fonseca, mas parece que ninguém dá por ele.


Escrever uma crónica é como varrer o chão da nossa casa. Assim como é difícil varrer o chão sem deixar algum lixo pelos cantos, ainda que seja apenas o cotão debaixo dos móveis, escrever sobre um acontecimento obriga-nos a esquecer muitas vezes aquilo que mais nos marcou, mas que não pode ser contado porque sabemos que não interessa ao leitor.

No sábado à noite fui a Coruche assistir a um recital de piano que fez parte do programa do Terras Sem Sombra que já vai na sua 21ª edição. A Igreja da Misericórdia registou uma enchente para ver e ouvir Eliane Reyes ao piano a tocar as 14 valsas de Chopin. Tive a sorte de ficar perto do palco, o que me permitiu observar tudo aquilo que num recital passa quase sempre despercebido à maioria do público presente na plateia. É exactamente disso mesmo que não vou falar porque não escrevo crítica musical nem acredito que o assunto interesse aos poucos que lêem esta coluna. Assim como não falo dos apertos de mão que recebi, dos beijos, das saudações pelo nome próprio, das conversas cruzadas antes e depois do concerto que quase fazem de mim um munícipe coruchense.

Não posso dizer que acompanho o Terras Sem Sombra como um alentejano ou um grande amigo e admirador do José António Falcão e da Sara Fonseca. Mas já assisti a sessões suficientes para confirmar que o Terras Sem Sombra é um caso à parte no panorama das iniciativas culturais com assinatura. Não só pela importância dos programas, que variam de ano para ano, como pelas parcerias que conquista a cada edição. Neste caso, na noite do concerto da Eliane Reyes, estavam como convidados o embaixador da Bélgica e um delegado geral de Bruxelas, que patrocinam o festival e suportaram o pesado (imagino) cachet da premiada e prestigiada pianista belga.   

José António Falcão é um alentejano dos quatro costados, mas curiosamente vive em Santarém há muitos anos. É herdeiro de uma grande casa agrícola no Alentejo, mas a sua vida é dedicada às coisas da cultura, desde a valorização do património à divulgação de tudo o que mexe com a nossa identidade cultural, sem excepções. O facto de viver no coração do Ribatejo e trabalhar na divulgação e valorização do seu Alentejo, levando a cultura aos lugares mais isolados do território, faz dele uma figura intelectual de excepção. Há menos de um mês estava a almoçar no café Central, em Santarém, com a proprietária da maior e mais prestigiada ganadaria do Alentejo, a prepararem mais um fim-de-semana do programa do Terras Sem Sombra deste ano.

Falta contar que José António Falcão foi  conservador da Casa dos Patudos entre 1993 e 1997, e responsável pelo Museu Municipal em Alpiarça, entre 2003 e 2008. O resto é uma vasta lista de prémios, de condecorações, de uma vasta bibliografia, de muito trabalho no terreno, na área académica, investigação, assim como na área da museologia, que é onde se destaca mais o seu trabalho e a sua participação na vida cultural do país. Ainda hoje guardo o catálogo da exposição de arte sacra que organizou no Panteão Nacional que foi uma das mais visitadas de sempre naquele monumento nacional.

Curiosamente, uma das últimas vezes que conversamos em Santarém, não foi sobre o Terras Sem Sombra, nem sobre a sua múltipla actividade cultural e profissional no país e no estrangeiro. Em 2020 o alarme de incêndio do edifício da empresa Águas de Santarém esteve avariado cerca de um ano e disparava a meio da noite deixando os moradores num desespero sem conseguir dormir. Só quando O MIRANTE escreveu sobre o assunto é que acabou o martírio. Um dos moradores é José António Falcão, o escalabitano adoptado que, aparentemente, poucos conhecem e sabem que é uma personalidade intelectual com um vastíssimo e rico currículo que qualquer associação da cidade bem podia aproveitar se os seus dirigentes soubessem onde ele mora e lhes batessem à porta. JAE.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Colete Encarnado em Vila Franca de Xira e as memórias das festas que ficam para a vida

A festa do Colete Encarnado não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica, falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

A festa do Colete Encarnado junta uma multidão em Vila Franca de Xira durante 3 dias. Não há outra festa ligada aos toiros que junte tanta gente, sendo certo que a grande  maioria não vai às corridas nem às largadas e, certamente, uma parte também não aprecia as tradições tauromáquicas nem as aplaude. 

O Colete Encarnado tem uma tal dimensão ao nível da festa popular que os toiros e as touradas ficam para segundo plano. O forte da festa é a presença de milhares de pessoas, os encontros entre grupos de amigos, e, especialmente, a forma como o concelho mostra a sua actividade associativa. A festa nas ruas não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica e falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

Conheço mais de ouvir contar do que vivenciar as festas do Colete Encarnado.  O mesmo com a Feira de Maio, na Azambuja, ou Alenquer, as festas de Mação que também decorrem nesta altura, as de Abrantes que acabaram recentemente, e muitas outras que são notícia em O MIRANTE, e vão continuar a ser, se a redacção do jornal perceber que falar das festas locais é mais do que publicar o programa.  

Nos meus tempos de juventude sempre fui mais de bailaricos e largadas do que de petiscos e copos, embora me lembre de muitas ressacas, também quando era jovem, que me faziam corar de vergonha nos sete dias da semana seguinte. E, uma vez, uma única vez, por obrigação, peguei de caras à saída dos curros as quatro vacas de uma picaria nas festas de Vale de Cavalos, por razões que não é altura para explicar. Mas faço notar que ainda hoje guardo memórias dolorosas de algumas ressacas, e não me lembro de uma única razão para beber quase até cair para o lado.

Voltando ao Colete Encarnado: quando as galinhas tinham dentes, ia a Vila Franca de Xira todos os anos para ter que contar. Ainda hoje provo da mesma sopa. Aonde vou estou sempre a trabalhar. Foram nesses anos dourados, em que ainda tinha mau vinho, que mandava despejar a cerveja para o copo junto ao balcão para depois me juntar aos amigos e ninguém perceber que estava a beber cerveja sem álcool. Mesmo assim, com toda essa escola da vida que me obrigou bem cedo a ganhar juízo, ainda apanhei uns sustos nas varolas, a mota resvalou algumas vezes nas curvas, e cheguei a enfiar o barrete até quase tapar os olhos, mesmo tendo uma curta vida de forcado e nunca tenha vestido o traje de campino. JAE.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Beber água da torneira sem pagar e viver duas vidas sem protestar

Na minha aldeia há muita gente da terra e dos concelhos vizinhos que vão encher garrafões de água na fonte do Pinhão, uma herança da família Lopes da Costa que mantém a propriedade e uma coudelaria bem conhecida. Quando passo por lá também vou à bica beber água para matar a sede do momento, mas jamais acredito em águas milagrosas que não sejam as da chuva. Mas também tenho as minhas manias. Sempre que estou na terra vou à fonte pública dos Carrapiteiros beber água directamente da torneira do fontanário e encher a garrafa que sempre me acompanha no carro. Foi hoje o caso. Fui lá de propósito. A maioria das vezes calha no caminho para a beira do Tejo, onde tenho um bocado de terra e a esperança de um dia ser enterrado ao lado da campa de um cão, a quem eu próprio fiz o funeral há muitos anos. E agora também de uma linda raposa que recentemente foi morrer debaixo da laranjeira onde já dormi e quero continuar a dormir umas sestas.

No dia em que escrevo, varro o chão pela última vez de uma casa que aluguei e depois comprei há meio século, onde aprendi sozinho a trabalhar no ofício e a ganhar dinheiro.

Os últimos meses foram incríveis. Tudo o que foi ficando de uma vida de meio século, entre milhares de coisas e coisinhas, minhas e dos meus, deitei para o lixo, guardei e vendi a exemplo do que aconteceu também com o edifício.

Tive todo o tempo do mundo para sentir o peso de cada peça, de cada móvel, de cada quadro, de cada objecto que enchia os cantos à casa, os fundos às gavetas, enfim, de cada coisa que dantes era parte da minha vida e de um dia para outro passou à situação de dispensável. 

Não senti um pingo de sentimento por ser eu próprio a apanhar os cacos da loiça até ao último bocadinho. Nem quero saber se os gajos que me detestam, e juram vingança (não sei de quê nem porquê) estão por trás da facada que me deram, que por não me ter morto deixou-me mais forte. 

Ao fundo da rua onde escrevo, ainda estão de pé as paredes de uma antiga taberna e cervejaria que foi onde me fiz homem dos 11 aos 22 anos a trabalhar de borla para o meu pai.

Carreguei muitos milhares de quartões de vinho (e alguns de água)  para as quatro cartolas de quinhentos livros de onde saía o vinho a copo para o balcão.

Registo estas memórias enquanto espero pelo Filipe Barreiras que foi almoçar com o seu pessoal para depois darmos continuidade à limpeza, no dia de fecho desta edição, com o Bernardo e a Joana ao leme, e viagem marcada para os cus de judas, o lugar onde também mergulham nas nuvens outros gajos como eu que já fizeram o seu caminho e, agora, só precisam de não faltarem às consultas e não esquecerem de tomar a medicação. 

Nota: Dedico esta crónica à minha avó Ilda que é uma das mulheres da minha vida e a única a ter a iniciativa de meter cinco contos no meu bolso quando soube que eu tinha resolvido tomar de trespasse a ourivesaria do senhor Silva. A minha família nunca foi grande, mas ter uma avó como ela fez de mim o menino da família mais rica da minha aldeia. Ainda hoje. JAE

quinta-feira, 26 de junho de 2025

A vida na aldeia e o que se dizia nos altares das igrejas

Estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe.


Sou um provinciano assumido embora goste de entrar em palácios e palacetes e até ficar por lá a beber um copo. Depois vou à minha vida, e essas experiências para mim são como ir ao cinema. Se forem boas fica a recordação, se não forem, um dia já estou a ver o filme outra vez de tanto ouvir dizer que é bom. Assim é com os palácios e os palacetes, ou seja, os museus, que visito vezes sem conta embora me dê ao luxo de mal conhecer alguns considerados famosos que são de visita quase semanal de gente muito importante.

Lembrei-me deste privilégio de me sentir um provinciano ao ler três newsletters seguidas que o Expresso me envia por ser subscritor dos temas que os jornalistas tratam semanalmente e que me oferecem de mão beijada. Confesso que com estas leituras resumidas das notícias de Lisboa fico informado o suficiente para não ver televisão e, muito menos, ler os jornais mais do que aquilo que me interessa sobremaneira.

Foi num desses dias em que enchi o papo de informação desportiva e política resumida (do Expresso e do El País) que estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta; parei o carro na rua onde cabem à vontade dois automóveis, e estive ali num bate boca como há muito tempo não experimentava. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe e algum já enlatado há muitas dezenas de anos, tal foi o alcance temporal dos temas que tratámos na cavaqueira.

Como tinha o carro a apanhar uma faixa de rodagem, e estávamos os três a apanhar ainda uma parte da outra, embora encostados à parede,  os carros que passavam para baixo e para cima tinham que abrandar à séria, embora a rua seja daquelas onde apetece acelerar. 

Escusado será dizer que tirando os que acenavam com a mão por serem conhecidos ou vizinhos, os outros faziam má cara por terem que reduzir a velocidade de 80 ou 90 para 30 ou 40 quilómetros por hora. E naquela hora fiquei a saber por uma das vizinhas o que custa sair à porta de casa e levar com um carro a quase a 100 à hora numa rua dentro da vila, onde, de repente, pode saltar uma criança ou um adulto distraído com o saco do lixo na mão.

Habituado a andar mais de carro do que a pé nas ruas da minha aldeia, de vez em quando também com a mania que as ruas foram feitas só à medida dos automóveis e das motos, ouvi cobras e lagartos de condutores que passavam e faziam má cara por causa do incómodo de terem que abrandar a velocidade.

Nem abençoado pela conversa, com duas pessoas com quem não falava há muitos anos, deixei de pensar nas vezes em que eu também, sempre a acelerar para não perder o comboio, noutras ruas e noutras vilas e aldeias, devo ter levado o responso que, naquele fim de tarde, ouvi rezar com todas as letras a pessoas que conduziam os seus automóveis com o semblante de quem levava o rei na barriga.

Cheguei ao fim do texto sem explicar muito bem por que é que comecei por escrever que sou um provinciano assumido. Agora também já não tenho muito espaço para explicar, mas fica aqui o resumo do que não consegui escrever: a vida na aldeia já não é o que era dantes mas, embora não sinta saudades de outros tempos, vale mais uma hora de conversa sobre o que se dizia no altar da igreja há meio século, do que ver e ouvir os novos padres das paróquias a darem missa campal. JAE.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Leila Slimani, Carla Madeira, Arturo Pérez-Reverte, Juan José Millás e a fraqueza de quem tem o poder

O juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. 

Nos últimos dias já visitei mais vezes a Feira do Livro de Lisboa do que nos últimos três anos. A Feira do Livro de Lisboa também é uma feira de vaidades. Os livros baixam de preço até 30% mas a grande maioria já está nos sítios dos alfarrabistas, ou numa qualquer feira, a menos de 50% do custo inicial. A questão aqui é a Feira, o espaço, o convívio, o livro que é pretexto para ir dar uma volta, comer uma fartura, beber um café, marcar um encontro, e encontrar acima de tudo. A Feira é um grande negócio para quem a organiza e uma forma de os grandes grupos editoriais fazerem a promoção das suas marcas. As vendas devem ter muito pouca importância, a levar em conta que o mesmo título do mesmo autor muitas vezes enche uma estante inteira. E os pavilhões são pequenos. E cada um custa quase dois mil euros. Por isso há grupos editoriais que alugam dezenas deles para mostrarem importância e grandeza. E há editores que deixam lá as suas barbas porque nem devem ganhar para o que comem.

Este ano encontrei logo nos primeiros dias duas escritoras excepcionais de quem gostava de ser amigo. Carla Madeira e Leila Slimani: cada uma delas, separadas por meia dúzia de anos, escreveram dois romances eróticos como não conheço muitos, que deixam os textos de Henry Miller ou de Casanova a milhas de distância. Durante o tempo em que estive a observar as sessões de autógrafos, posso garantir que 80% dos leitores eram mulheres. "O Jardim do Ogre", da Leila Slimani, contra a história de uma mulher ninfomaníaca e o "Tudo é Rio", da Carla Madeira, conta a história de uma prostituta envolvida num triângulo amoroso. Mas estes dois títulos são, nos dois casos, apenas o início de carreira de duas grandes escritoras com livros que já venderam mais de um milhão de exemplares.

Conversei cinco minutos com Carla Madeira, que já é uma senhora de 60 anos, mas a minha conversa com Leila Slimani continua adiada. Leila Slimani não tem mãos a medir apesar dos seus 43 anos; se há alguém na literatura que nesta altura tem estatuto de vedeta é ela. Acaba de publicar o último livro de uma trilogia que conta a saga da sua família, mas antes destes três romances mais autobiográficos tem outros títulos que os seus futuros leitores têm que desbravar para se apaixonarem primeiro pelos seus primeiros quatro livros, entre eles Canção Doce, que é um romance de uma crueza incomum, que só pode ser contado por a sua autora ser genial e certamente a melhor discípula de Tahar Ben Jelloun.


Não me canso de citar Fernando Pessoa que escreveu que a literatura existe porque a vida não chega. No dia em que escrevo este texto encontrei uma entrevista com Juan José Millás que, a certa altura, conta que leu no jornal que “o juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. Ou seja, a menos que esteja meio metro mais alto do que a pessoa interrogada. É assustador, mas exemplifica muito bem o que está a acontecer. Em outras palavras, um juiz vir interrogar uma testemunha, a um lugar, e pedir uma tribuna, porque senão ele não sabe interrogar... é um ponto de vista esclerosado; para ele, esse olhar de cima para baixo é o olhar do poder. E ele, para interrogar uma testemunha, tem que se sentir mais poderoso”. A citação está fora do contexto da entrevista mas vive bem sem ela. E resolvi aproveitá-la para introduzir aquilo que se passou com um amigo a quem dava trabalho para o ajudar a ganhar a vida. Numa das muitas vezes que entrei na sua empresa, certo dia mandou-me sentar num sofá no seu escritório para me fazer as queixinhas do costume. Só que desta vez acrescentou uma conversa incomum: perguntou-me se eu tinha dado pelo facto de estar sentado num sofá que me obrigava a olhar para ele de queixo levantado, de baixo para cima. Lembro-me de ter sorrido e ficado calado.  Então ele explicou-me que estava farto de ser usado, que estava a obrigar todas as pessoas que iam à sua empresa a olharem para ele com a bola baixa, não aguentava mais tanta desfaçatez. Não é nada contigo, afirmou, mas queria que soubesses, explicou, como explicava muitas vezes o que lhe ia acontecendo na vida de menos bom, e que eu ouvia devolvendo algumas palavras de circunstância mas também de conforto. Esta história é antiga e desde essa altura que praticamente deixei de ver a criatura. Deixei de lhe dar trabalho e ele deixou de me aparecer pela frente. Há pessoas que só existem na nossa vida porque nós somos condescendentes, vamos beber todos os dias à nascente do rio e depois durante o caminho paramos para dar um pouco de água a quem não sabe que os grandes rios começam de uma pequena nascente e vão desaguar num grande estuário que, regra geral, é o mar.

Na mesma revista online (Zenda) onde li a entrevista com Juan José Millás pode ler-se uma crónica de Arturo Pérez-Reverte que se intitula “No dia em que me tornei nazista”, em que ele explica como conseguiu entrevistar um nazista a quem Franco deu nacionalidade espanhola e que estava escondido em S. Sebastian. Arturo Pérez-Reverte é outra grande figura da literatura e do jornalismo que me impele a meter a cabeça nos livros diariamente e a aprender a gostar de viver sempre com um livro debaixo do braço ou a sonhar que viajo nas histórias que vou lendo. JAE.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um Ribatejano encantado com a vida no Minho

Crónica sobre a arte de ser feliz a caminhar, e descobrir o país a norte, onde as tradições nos remetem para os tempos dos nossos avós.

Se quero saber quantos anos Portugal está atrasado em relação aos países mais desenvolvidos do mundo, viajo para Itália. E não é nem de longe nem de perto o melhor exemplo, mas é aquele que eu encontro com mais facilidade juntando o útil ao agradável. Depois Itália teve, e ainda tem, uma organização cujo nome (Máfia) já entrou no dicionário de todas as línguas do mundo e que, com o tempo, acabou por chegar a Portugal, coisa que facilmente se comprova, embora o pior ainda esteja para vir (e todos seremos vítimas. E não haverá inocentes… nem pintados de azul).

Se quero saber como Portugal e os portugueses são diferentes nas várias regiões, subo ao Norte e fico por lá dois ou três dias e vejo como o povo português do sul e da grande Lisboa, onde vive quase um terço da população, é tão diferente do povo do norte como os brasileiros são diferentes dos ucranianos.

No primeiro domingo do mês de Junho caminhei todo o dia pelas margens e leito do rio Caldo, em plena Serra do Gerês, e tive a sorte de seguir na estrada, e depois pelo meio do mato, a “Subida da Vezeira”, tradição que se explica em poucas palavras: no início do Verão, o gado bovino é conduzido para os baldios, onde permanece durante a época de pastagens mais abundantes. A vezeira é acompanhada pelos vezeireiros, que cuidam do gado e das suas necessidades na vezeira.

Quem não sabe um boi desta vida em comunidade admira-se, primeiro por ver como animais com 500 quilos conseguem subir aqueles terrenos montanhosos e cheios de mato, e, depois, como ainda há pessoas que mantêm a tradição de criar animais quando, economicamente, a grande maioria só tem prejuízo, embora tire partido do prazer e do prestígio local de ajudar a manter as tradições, contribuindo ainda para a preservação do património cultural imaterial e para a valorização do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Como o caminho que fiz ao longo do dia me levou para várias freguesias da Serra do Gerês, tive oportunidade de conhecer outros vezeireiros de outras vezeiras, e de ouvir contar como se organizam, como se defendem no Inverno, e de que forma se organizam para deixarem o gado no pasto e poderem ir à sua vida, que, ali, toda a gente vive de vários ofícios.

Apesar da conversa viva e culta sobre os costumes das gentes daquelas aldeias, foram dois adolescentes, que acompanhavam os pais, que me explicaram como funcionam e se organizam os vezeireiros, a cor de cada um dos animais, as suas origens, enfim, um tratado que só se escreve, edita e estuda na universidade da vida.

O rio que percorremos ao longo de sete quilómetros, durante uma boa parte do dia, tem as piscinas mais belas do mundo, digo eu, que, embora já tenha viajado muito, só conheço meia dúzia de metros quadrados de paraíso, pelas minhas contas uma parte ínfima do que deve ser o tamanho do olimpo.

A Gabel Oliveira, que é a guia do grupo e viajante profissional, foi quem me fez voltar a caminhar por carreiros de pastores, a saltar de pedra em pedra, e a deixar, por enquanto, o grupo do meu amigo Carlos Cupeto, que, não sendo viajante profissional, é um dos maiores dinamizadores culturais que já conheci, com uma actividade em várias áreas que vão desde a caminhada à tertúlia, entre muitas outras. Há muitos anos que o acompanho, mas ultimamente não tenho marcado o ponto. JAE.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O dia de Quinta-feira de Ascensão ainda é como era dantes

A Quinta-feira de Ascensão marca os feriados municipais em 12 concelhos da região, mas só a Chamusca e Alenquer fazem da data um dia festivo. Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Salvaterra de Magos, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira comemoram a data mas apenas como celebração e consagração da Primavera.

Vivemos tempos de Ascensão que, curiosamente, incluem um dia em que é feriado em 12 concelhos da região (Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Chamusca, Salvaterra, Arruda dos Vinhos, Alenquer e Vila Franca de Xira). Só a Chamusca e Alenquer festejam o dia de Quinta-feira de Ascensão, ou Dia da Espiga, como também é conhecido, por ser o dia em que se comemora a consagração da Primavera. Apesar do feriado estar enraizado nas tradições locais, o dia feriado não é dia de festa a não ser na Chamusca e Alenquer. Em Maio de 2013 O MIRANTE publicou um texto, no seguimento de uma conversa com a maioria dos autarcas, onde o feriado é assumido apenas como dia de descanso, e todos concordaram que era assim que ia ficar, já que há outras datas para organizar festas locais. Aceito, mas não concordo. O dia do concelho devia ser festejado com iniciativas que dessem dignidade à data. Embora conceda que não sou um farol de exemplos, acho que os feriados municipais deviam ser mais valorizados. De verdade nunca festejo ou festejei o meu dia de aniversário, e quando os outros festejam a passagem do ano, ou outras datas importantes do nosso calendário, eu fico em casa a ver um filme ou a ler um livro. Mas uma coisa são os gostos pessoais, outra é a vida em comunidade.

Nos últimos anos, com a experiência da vida, só compareço a algumas iniciativas quando me apetece. Faço a gestão da minha agenda de forma a não desaparecer do mapa, mas também a não me obrigar a ser escravo do trabalho, de obrigações morais, gostos bairristas, entre outros.

Escrevo depois de ter decidido que este ano a Quinta-feira de Ascensão será um bom pretexto para uma manhã no campo a apanhar as laranjas doces que ainda restam nas laranjeiras, molhar os pés no rio, caminhar na areia durante meia hora e depois regressar a casa por caminhos da charneca, tentando olhar para o lado as vezes suficientes para não me esquecer que a paisagem mudou muito nos últimos anos, assim como mudámos muitos de nós que já não têm cu para as bebedeiras, as noitadas de picarias, os convívios pela noite fora para fortalecer amizades e reforçar o círculo de amigos.

Ainda num tempo e numa idade em que me apetece escrever/falar da sobrevivência da alma, importa lembrar que “a imortalidade não se queda apenas nas pessoas que deixam rastro luminoso da sua existência, pois também se junta ao património mental que deixam para a posteridade”. Roubei estas palavras a um livro onde o Historiador Joaquim Veríssimo Serrão escreve e deixa a sua marca, um livro que fala de homenagens, mas também serve de testemunho, para não esquecermos que somos “animais de trabalho”, mas também Homens com sentimentos, alegrias e dores que vão transformando a nossa maneira de ver e viver o mundo em que estamos mergulhados de corpo e alma.

Do livro de onde retirei esta frase está uma citação que não resisto a deixar aqui: “os homens de letras necessitam de 10 palavras para dizer o mesmo que um jurista faz em 5 páginas”. A citação justifica-se porque quero aproveitar o tempo de Ascensão para voltar a deixar aqui mais uma memória sobre o centenário do nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão, que se comemora a 8 de Julho, e a que voltaremos mais vezes, aqui nesta coluna ou nas páginas do corpo deste jornal. JAE.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Joaquim Veríssimo Serrão: um homem comprometido com políticas de direita mas com um coração de esquerda

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.

Não posso dizer que fui amigo de Joaquim Veríssimo Serrão mas fui quase. Só o facto de a História não ser uma das disciplinas que mais cultivo não fizeram maior a nossa convivência e amizade. Joaquim Veríssimo Serrão fazia amigos com facilidade e era visceralmente um homem que gostava de ser útil aos outros. Conhecia todas as regras de um diplomata, cavalheiro e bom samaritano, não por ser um genial Historiador e Professor, mas por ser, acima de tudo, uma pessoa boa. 

O centenário do seu nascimento, que se comemora a 8 de Julho, vai ser aparentemente assinalado com a prata da casa, o que será muito pouco para o que ele merece e Santarém lhe deve. A já anunciada cerimónia incluiu gente bem intencionada, nada nos faz duvidar disso, mas é só mais uma iniciativa à boa maneira local:  convidam-se os professores doutores do costume, assim como os doutourandos, e está garantido o sucesso da iniciativa. Santarém tem lepra quando é preciso mostrar grandeza e orgulho. Parece que o 25 de Abril não mudou mentalidades em certos sectores da sociedade. Não escrevo mais sobre este problema escalabitano, que tem raízes noutros concelhos, porque seria bater no ceguinho se trouxesse aqui o que penso da instituição que foi fundada para valorizar o trabalho de Joaquim Veríssimo Serrão, o seu nome e a sua obra.

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.  

Num país culto e politicamente evoluído, que não o nosso, aprisionado por interesses inconfessáveis daqueles que continuam a governar sem cultura democrática, os livros que cito neste texto  eram de leitura obrigatória nas universidades e em todos os fóruns onde se discute o futuro do mundo e dos homens, a injustiça e a solidariedade entre os povos.

O livro "Correspondência com Marcelo Caetano 1974-1980", tem uma história que merece outro livro. Algumas cartas antes de serem entregues ao remetente foram lidas num acto de censura que não se justificava no período que já se tinha vivido em democracia e, segundo sabemos, algumas dessas cartas ficaram inéditas. Escrevo de cor, do que ouvi a pessoas amigas, não tenho qualquer relação com a família ou com o Centro de Investigação com o seu nome, embora receba com regularidade os convites para as sessões, mas não preciso de ajuda para considerar este livro de republicação obrigatória no centenário do seu autor, ainda por cima numa altura em que a revolução de Abril já completou meio século. Sim, o livro é sobre amizade, confiança, solidariedade e revolução, e sobre censura e falta de respeito pelos valores e direitos humanos que nenhum 25 de Abril consegue implantar definitivamente para todas as pessoas, sem excepção, ontem como hoje.

Compreendo os que ainda têm medo de se colarem à memória do ilustre Historiador, principalmente pelo que ele escreveu em “Confissões no Exílio”. O que lá está escrito ninguém poderá ignorar, sequer rasgar, de forma a fazer desaparecer as opiniões do autor sobre Salazar e Marcelo Caetano.  Nada disso envergonha ou deve limitar a palavra ou a admiração pelo Homem, o Historiador e o escalabitano ferrenho. Joaquim Veríssimo Serrão era um homem assumidamente de direita, devido às suas amizades e à fidelidade canina que gostava de exibir, muitas vezes até de forma exagerada. De coração era um esquerdista. Quem conseguisse chegar à fala com ele podia contar com o que precisasse se estivesse ao seu alcance. 

Temo que as novas gerações não venham a conhecer, principalmente nas escolas e universidades, um homem brilhante, que dedicou toda a sua vida a escrever a História de Portugal e a lutar pelos seus ideais, pelos seus amigos e pelo seu país, na grande maioria das vezes escrevendo para dar testemunho.

Santarém não pode confiar a Obra e a memória de Joaquim Veríssimo Serrão só a quem se sente herdeiro do seu legado. A sua herança ainda incomoda e condiciona muita gente que ficou presa ao passado recente. Por isso é preciso ver mais longe, sentir mais de perto, julgar sem sentenciar, homenagear sem sentimentalismos bacocos. 

Santarém já não é só "um livro de pedra" como lhe chamou Almeida Garret. Santarém de hoje é, também, uma pedra no sapato de muita gente que tenta varrer a importância da cidade e das suas gentes para os buracos das muralhas milenares. Joaquim Veríssimo Serrão não ganhou o prémio Nobel como José Saramago, mas estão os dois por aí, mais perto ou mais longe, a contribuírem para que a História se vá  reescrevendo, e a darem o exemplo que não pode nem deve ser desperdiçado pelas novas gerações; também porque é cada vez mais raro encontrar gente com coluna vertebral, que não se verga a interesses mesquinhos, que não vive de joelhos nem renega os seus ideais por mais que isso lhe custe os olhos da cara. JAE.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um elogio ao ministro Pedro Duarte e uma boa razão para dormir na casa do cão

O governo caiu a menos de um ano de trabalho mas o ministro Pedro Duarte não deixou de cumprir o prometido à imprensa regional. Pelo menos 200 dos cerca de 308 concelhos de Portugal não têm uma livraria. Não faltará muito tempo para que também não tenham uma papelaria ou um local ou se vendam jornais.

O governo de Luís Montenegro caiu mas vai ficar na memória de muitos empresários e jornalistas que trabalham na imprensa local e regional. O ministro Pedro Duarte cumpriu uma das suas promessas de ajudar a imprensa local e regional, e corrigiu um erro crasso de um antigo governante do Partido Socialista, que há mais de duas dezenas de anos mandou cortar ao meio no incentivo à leitura com a mesma facilidade com que bebia água quando tinha sede. Já nessa altura Portugal era dos poucos países da Europa que não tinha  políticas públicas de avaliação como havia na maioria dos países desenvolvidos. Mais de vinte anos passados nada mudou de substancial ao nível dessas avaliações, mas o ministro da tutela não saiu sem cumprir a promessa de ajudar a imprensa regional e local, e aumentou a comparticipação do Estado para 85% do valor total pago aos CTT. 

Na última década fecharam mais de metade dos jornais que se editavam em Portugal. Pelo menos 200 dos cerca de 308 concelhos de Portugal não têm uma livraria. Não faltará muito tempo para que também não tenham uma papelaria ou um local ou se vendam jornais. O cerco aperta-se para a comunicação social de proximidade, e as empresas mais fracas, antes de começarem a poupar na tiragem, começam a trabalhar sem jornalistas que assegurem uma informação independente e de qualidade, limitando-se a republicarem textos sem qualquer validade para a cultura local, a grande maioria textos de opinião e de informação institucional.

O Congresso Mundial de Jornalistas atribuiu no passado dia 4 de Maio a Caneta de Ouro da Liberdade à Associação de Editores de Imprensa Regional da Ucrânia. Oleksii Pogorelov, presidente da Associação de Negócios de Mídia da Ucrânia, ressaltou na hora dos agradecimentos a motivação que inspira a imprensa independente a continuar seu trabalho. “Na Ucrânia, o jornalismo não é apenas uma profissão. É uma forma de sobreviver, uma forma de preservar a memória e uma forma de resistir”, disse, acrescentando que, “quando os jornalistas se calam, os ocupantes falam em seu lugar. Não escrevemos porque somos corajosos. Escrevemos porque o silêncio não é uma opção. O jornalismo independente não é um luxo, é a infraestrutura da liberdade”.

Escrevo esta crónica a poucos dias das eleições e depois de ter visto na televisão, em diferido,  o debate entre os dois principais candidatos dos dois partidos mais representativos da democracia portuguesa. Juntei-me aos cerca de quase três milhões de portugueses que assistiram à contenda em directo e na hora da briga. Não sinto o orgulho de outros tempos por se aproximar a hora de votar mais uma vez. E não sinto qualquer remorso por me recusar a ver os debates organizados pelas televisões que, desde há muitos anos, se transformaram num lavar de roupa suja que nos deixa nervosos e sem sono, sabendo que o que está em causa para o nosso futuro nunca será discutido nem conversado de forma a que tenhamos esperança num pacto de regime para as políticas da saúde da educação, da justiça, dos transportes e da habitação; o objectivo principal parece o mesmo dos tempos do PREC (Plano Revolucionário em Curso) em que as palavras de ordem eram dividir para reinar.

Por último: há quase quarenta anos que em certos dias acordo a meio da noite para corrigir uma frase, ou apenas uma palavra, de um texto que no outro dia vai sair em letra de forma, no meio de uma notícia ou de uma reportagem, depois do jornal chegar à máquina de impressão. As palavras são traiçoeiras e às vezes escrevemos barbaridades pensando que estamos a escrever um texto inspirado em Fernão Mendes Pinto ou Gabriel Garcia Marquez. Ainda hoje é assim, embora sinta menos o peso da responsabilidade. O JL (Jornal de Letras) saiu um dia destes para as bancas com um número dedicado a Camilo Castelo Branco publicando na capa, a toda a largura e altura, a foto (uma famosa pintura de João Abel Manta) de Eça de Queirós. Juro que, se um dia for responsável por um erro destes, vou dormir no quintal, na casa do cão, no mínimo durante um ano. E conto isto só para dizer que em quase quarenta anos nunca uma capa de O MIRANTE foi para a máquina de  impressão sem que eu lhe tivesse posto os olhos em cima. JAE.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O 25 de Abril e o apagão

O PCP deixou de ser no Ribatejo um partido mobilizador, os homens que lhe davam força foram morrendo no verdadeiro sentido da palavra, e outros foram morrendo para a ideia de que ainda podemos acreditar nos amanhãs que cantam.


A democracia portuguesa perdeu qualidades, 51 anos depois do 25 de Abril de 1974. O povo que saiu à rua já não é o mesmo que hoje vai ao arraial, embora a luta por um mundo melhor continue a ser uma boa razão para desfilar, ou simplesmente sair à rua, com o cravo vermelho ao peito.

Ouvi algumas comunicações/discursos sobre o 25 de Abril e corei de vergonha. Discursos pobres, sem conteúdos, a fugirem à realidade nua e crua, autarcas acomodados que, para não se incomodarem, escreveram e leram textos merdosos para tentarem escapar entre os pingos da chuva. Mas houve excepções, e desta vez Rio Maior foi a maior de todas, assim como a de Constância que aproveitou para recordar, pelos nomes próprios, os militares do concelho que morreram na guerra. Deixo mais informações para quem gosta de explorar a internet e as gravações das assembleias municipais onde alguns políticos locais fizeram figuras de bichos do mato com gravata.

Desde Abril de 1974 que conheço e tenho relação de amizade/proximidade com um homem que foi membro do Comité Central do PCP, deputado na Assembleia da República, dirigente e militante fervoroso. Nos últimos 30 anos comecei a vê-lo chegar do campo ao fim do dia com o seu tractor e no seu fato de trabalho. Para ele o dia 25 de Abril começou a ser comemorado no meio da Lezíria, onde ainda hoje ganha a vida todos os dias. Nos primeiros anos ficava indignado. Pensava cá com os meus botões: como é que alguém perde as suas convicções ao ponto de ir trabalhar todo o dia na data em que se comemora uma das revoluções mais bonitas que aconteceram no mundo, em que caiu uma ditadura quase sem um pingo de sangue. E ainda por cima foi um dos que mais saiu à rua e discursou das varandas.

Nunca lhe falei do assunto. Às vezes encontrava-o e falávamos de política, mas ele nunca disse mais do que aquilo que eu já sabia. Habituei-me, depois, a ver outros camaradas a fazerem exactamente o mesmo: a aproveitarem o feriado para trabalharem nas suas propriedades. O PCP deixou de ser no Ribatejo um partido mobilizador, os homens que lhe davam força foram morrendo no verdadeiro sentido da palavra, e outros foram morrendo para a ideia de que ainda podemos acreditar nos amanhãs que cantam. Hoje sou eu que escolho todos os feriados, incluindo o do dia 25 de Abril, para sujar as botas de terra do campo e cuidar da meia dúzia de árvores de fruto que vou partilhando com os pássaros. Vou ficando ligado às comemorações porque tenho essa obrigação, mas fico triste por ver como alguns autarcas maltratam a data, esquecendo que têm 50 anos de memórias para poderem trabalhar na data festiva, e um mundo virado do avesso como não tínhamos há 50 anos.

Meio século depois do 25 de Abril, e já que a regionalização está a ser feita de cu para o ar, paulatinamente, os municípios podiam aproveitar para realizar acções conjuntas de sensibilização das populações para minorarem os bairrismos doentios, as fronteiras que ainda existem entre vilas, aldeias e lugares, como se vivêssemos ainda numa monarquia.


O apagão do dia 28 de Abril foi uma espécie de revolução. Em algumas terras do Ribatejo parecia um dia feriado com a particularidade de haver mais gente na rua e nos parques, muito mais que aos domingos. Em Lisboa foi o caos. Mas só visto. Do aeroporto ao Martim Moniz havia centenas de pessoas a puxarem pelas malas a caminho dos hóteis onde iam dormir. E na cidade como nas vilas e aldeias muita gente de garrafões e sacos de comida preparavam-se para o pior que, felizmente, não aconteceu. JAE.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Papa Francisco e Jorge O Mourão

Esta crónica dormia num computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. É dedicada ao cineasta Jorge O Mourão a quem fiquei a dever uma homenagem em vida. Esta crónica, sem o uso de aspas aspas, é uma forma de homenagear um homem que nunca ficou em casa a dar comida aos pombos; tal como o Papa Francisco que resolveu aceitar ser Papa para tentar acabar com o fanatismo no seio da Igreja.

Esta crónica começa com uma mensagem de voz no telemóvel. “Ok Joaquim estou a caminho do boteco na rua Francisco Serrador. O boteco chama-se “Escadinhas” por razões óbvias. Te espero”. 

Jorge O Mourão é um cineasta de 78 anos com cerca de meia centena de curtas e documentários que fazem parte da história do cinema brasileiro.  O privilégio de nos conhecermos deveu-se ao encontro no Bairro da Glória, a um sábado, à hora do almoço, em dia de feira de rua, num encontro que durou até ao cair da tarde, quando os corpos quase nus começaram a desaparecer na paisagem, e o Carnaval já estava na rua. Dia 5 de Fevereiro de 2024.

 O poeta Alexei Bueno pediu a meio do convívio para ser fotografado, de charuto ao canto da boca, ao lado daquele que para ele é o Godard brasileiro. O Mourão estava na nossa companhia graças ao André Seffrin, que o conhece desde que chegou ao Rio de Janeiro há quarenta anos. O Mourão era amigo do Walmir Ayala, jornalista, crítico de artes e escritor, com quem André Seffrin trabalhou, e que ficou para sempre ligado à sua vida.

O reencontro, dois dias depois, foi para receber um livrinho da autoria do cineasta que é um marco na sua vida. O livro deixa testemunho da vida de um artista que tem seis filhos de cinco mulheres, que sempre perseguiu um objectivo de vida que era ter um filho de 10 em 10 anos e fazer um filme de 5 em 5. Ficou por cumprir na íntegra porque, um dia, em Trancoso, apareceu-lhe pela frente uma alemã, “que parecia um anjo, branquinha como a neve”. Ao chegar perto dele desatou o cabelo e quase voou atrás dele ao abanar o pescoço, para que o cabelo caísse até quase à sua bunda. “O namorado estava com ela, mas era um hippie em início de vida”. Facilmente o cineasta percebeu que ia dormir pela primeira vez com um anjo. E dormiu. E tudo acabou em poucos dias. Um ano depois a alemã voltou a Trancoso e trazia uma criança nos braços. Hoje esse filho do Jorge tem 32 anos, e ele foi conhecê-lo há pouco tempo, em território alemão, e só não morreu lá quase por milagre.

Jorge O Mourão foi recentemente tema de capa do jornal “Folha de S. Paulo”, que lhe dedicou três páginas no caderno de cultura. Está lá contada uma boa parte da história de vida do autor que fugiu da ditadura brasileira para Nova Iorque, e fez-se traficante de cocaína para sobreviver. Conviveu com os grandes vultos da cultura americana dessa época, e disso dá conta no seu livro. Miles Davis pediu-lhe para ele “comer” a sua mulher; o músico John Lennon e o poeta Allen Ginsberg, entre outros famosos da altura, assinaram petições que o Jorge organizava para combater a ditadura brasileira. 

Na conversa na esplanada da rua Francisco Serrador, Jorge O Mourão explicou a presença no Rio de Janeiro do seu filho caçula, que está a ajudá-lo a organizar milhares de papéis, fotos e outras memórias de uma longa vida de activismo ligado ao cinema, ao jornalismo, à literatura, à política e à representação.

“Sempre fui um fazedor compulsivo, mas não um organizador. O meu grande sonho era voltar a Vale de Remígio, terra do meu avô, e morrer por lá a beber vinho do Porto e a comer queijo Serra da Estrela. Ainda tenho esse sonho. Quando fui ao Algarve fazer um filme fiquei uns dias numa pensão em Lisboa. A moça portuguesa que me acompanhava queria que eu dissesse quando voltava para o Brasil. Respondi-lhe que toda a minha vida viajei sem bilhete de volta. Nunca marquei datas de regresso. O importante é partir, voltar é sempre quando dá jeito ou chegamos ao fim de um caminho”. Conseguir a dupla nacionalidade é outro dos seus objectivos.  “Mas eu tenho um problema cujas iniciais são parecidas com um problema que afecta as mulheres todos os meses: Sofro de DPM, ou seja, tenho a doença da dispersão, preguiça e modéstia”. “Há quatro anos um moço australiano andou à minha procura no Rio de Janeiro. Acabou por me encontrar e fui convidado para ir a Nova Iorque para uma mostra de cinema internacional. Estive lá e fui recebido como uma vedeta. Foi nessa altura que ia morrendo quando aproveitei para viajar para a Alemanha e conhecer o meu filho”.

O espaço não chega para continuar a citar mais frases do Jorge e algumas partes do trabalho editorial da Folha de S. Paulo. Quem estiver a ler este texto não julgue que a conversa foi só ao ritmo de novela. Nos dois encontros, o cheiro a churrasco no bairro da Glória, e o cheiro a bafio da rua Francisco Serrador, podiam ser matéria importante para um romance ou uma biografia de O Mourão. O autor deste texto estava de férias e perdeu a oportunidade de meter o nariz no anexo alugado onde Jorge O Mourão guarda o seu espólio.

Este texto dormia no computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. Jorge O Mourão também morreu, entretanto, e os seus 60 filmes ficaram para contar a história de um artista subversivo, que conheci já em final de vida, e que recordo como um Papa Francisco, com uma voz doce, um desejo imenso de me ouvir falar da região de Trás os Montes, de Lisboa, das raízes portuguesas que pareciam sair do seu peito cabeludo e do seu corpo magro, mas ainda cheio de energia. Abençoado Papa Francisco, abençoado cineasta Jorge O Mourão. JAE.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O bullying no jornalismo

Quem conhece um pouco da história deste meio século de liberdade tem na vida dos jornais, das revistas e das televisões, mas principalmente nos jornais, um retrato do país. E não é nada de que nos possamos orgulhar. Isto está mau para a liberdade de imprensa, qualquer bardamerda que acha que os jornalistas têm as costas largas vai apresentar uma queixa por difamação. De verdade, o que eles querem é condicionar, meter medo, chatear, roubar tempo, obrigar o jornalista a perder a paciência, a pensar se não é melhor mudar de ofício.


Guardo da minha infância um recado dos mais velhos, que começava na voz autoritária do meu pai e acabava nos conselhos que nem sempre procurava dos homens mais velhos com quem aprendi a viver: “Não te queixes rapaz, se não puderes arreia, mas não te queixes que se tiveres que arrear vai custar-te o dobro”.

Às vezes olho por mim abaixo e pergunto-me como cheguei até aqui, como é que fiz todo este caminho e nem dei pelos anos passarem. Lembro-me de ser um rapaz soberbo, convencido que quando se tem vinte anos de idade a eternidade está assegurada. Hoje estou quase no fim da linha e nem acredito. Só sei que continuo a ser o rapaz de antigamente porque continuo a ser incapaz de me queixar que não seja ao médico. E mesmo nas consultas esqueço-me sempre de algo importante. Falo com os médicos do Sporting, do trabalho, dos livros, das viagens, e só quando chego à rua é que me lembro que deixei a consulta a meio.

Já fui a tribunal uma centena de vezes e tenho aprendido a lidar com a Justiça sem me queixar. Fui constituído arguido centenas de vezes sempre sem medo de ser condenado. Confesso que perdi o conto às vezes em que fui à PSP e ao Procurador do Tribunal prestar declarações. Um dos advogados que actualmente me assiste disse-me recentemente, numa conversa de preparação de um julgamento, que eu tenho a mania que qualquer dia também aprendo a fazer a revisão do meu carro. Disse-lhe que tinha ido prestar declarações numa acusação com mais de trinta páginas e ele, com a mão na cara, foi perguntando, “e falou?”, e eu disse que sim, e ele ainda tapou mais o rosto e gozou comigo por eu ter a mania da facilitar e pensar que a verdade é como o azeite.

É claro que ainda não é hoje que me vou queixar, mas isto está mau para a liberdade de imprensa, qualquer bardamerda que acha que os jornalistas têm as costas largas vai apresentar uma queixa por difamação. De verdade, o que eles querem é condicionar, meter medo, chatear, roubar tempo, obrigar o jornalista a perder a paciência, a pensar se não é melhor mudar de ofício, ou a fazer como muitos falsos jornalistas que vêm para a profissão para um dia chegarem a assessores de imprensa e ficarem perto dos gajos que são donos disto tudo. Quem conhece um pouco da história deste meio século de liberdade tem na vida dos jornais, das revistas e das televisões, mas principalmente nos jornais, um retrato do país. E não é nada de que nos possamos orgulhar. E em muitos casos até nos devia envergonhar. Mas o saldo é positivo, continua a ser a favor da classe. O problema desta vida é que há pessoas que nunca estão satisfeitas com o seu trabalho, sobretudo os jornalistas, talvez a profissão mais bela do mundo mas igualmente a mais ingrata e trabalhosa.

Muita gente sabe o que é o bullying nas escolas, na vida dos adolescentes, mas poucos conhecem o termo na profissão de jornalista. Lido com o problema há muitos anos e por variadas razões , todas relacionadas com pessoas que se sentem poderosas, que engoliram o globo terrestre e que acham que o dinheiro e as influências os ajudam a falar e a pensar. Nunca me queixei, ou me senti vítima, sempre encarei o bullying como uma consequência do meu trabalho, hoje mais do meu dever do que do meu trabalho. Mas denunciar estas práticas, que são criminosas, é o dever de qualquer jornalista que sabe que tem leitores interessados no seu trabalho.

Esta semana passei pelas caixas automáticas dos supermercados Continente para me despachar mais rapidamente. E não consegui a factura dos dois artigos. Fiquei danado. Na loja logo ao lado (estava num centro comercial) ouvi esta conversa que parecia ser para mim: “não uses aquelas caixas; estás a contribuir para quem quer diminuir postos de trabalho”. Sem qualquer justificação lembrei-me que esta semana a Benedita, que só tem 9 meses, andava pelo chão da redacção do jornal, enquanto a mãe e o pai não iam para casa. Quando escrevo, no início do texto, sobre os tempos em que pensava que era eterno, não sabia que a eternidade se conquistava deixando o que temos aos nossos filhos e netos para eles continuarem o nosso legado. Mas nada disto se diz, escreve e pensa, sem um certo receio: esta vida de jornalista e editor é a melhor herança que se pode deixar aos filhos e aos netos? Acredito que sim. E acredito convencido que eles vão ser bem melhores do que eu fui, no trabalho e na gestão, e muito mais inteligentes para não trabalharem tanto e até tão tarde na vida. JAE.