A livraria é a minha melhor praia de verão ou de inverno. Crónica de uma tarde na Gulbenkian, onde bebo café ao lado de alguns dos meus escritores preferidos, mas onde também já fui assaltado numa cena digna de filme.
A Fundação Gulbenkian, em Lisboa, tem o jardim mais bonito do mundo para compensar um provinciano desterrado do ambiente do campo e da charneca. Há mais de quatro décadas que frequento aquele espaço, e vejo-o sempre com novos olhos e sentimentos. Um dia destes passei a manhã na livraria, para onde consegui entrar fugindo a algumas condicionantes pelo facto de andarem em filmagens nos jardins. Dentro da livraria, uma hora depois de ter folheado meia dúzia de livros( a minha melhor praia de verão e de inverno é o ambiente de uma livraria), comecei a ver do lado de lá do vidro as cenas para a série “Crónica dos Bons Malandros”, mais uma adaptaçao do livro com o mesmo título de Mário Zambujal, que a RTP está a produzir. Fiquei ali mais uma hora a ver uma dúzia de actores a repetirem uma cena, um deles empurrando uma cadeira de rodas e os outros todos em rebanho. A cena parecia a coisa mais banal do mundo, não tinha falas, e o realizador mandou repetir uma dúzia de vezes. Ninguém imagina o peso daqueles microfones no ar a acompanharem as cenas e a cara de enfado dos artistas e dos técnicos depois de cada repetição.
Quando resolvi voltar aos livros, sem outras distrações, comecei a ouvir a voz do Mário Zambujal. Espreitei até o encontrar fora da livraria, mas dentro do edifício, a conversar com uma jornalista. Posicionei-me de forma a ficar a ouvir a conversa do jornalista e escritor que está com 84 anos mas mantém uma clareza de espírito e uma qualidade na escrita que faz inveja aos santos.
Embora não tenha frequentado, como jornalista, as redacções onde trabalharam os grandes jornalistas do tempo em que comecei a escrever, convivi e fui amigo de muitos que me proporcionaram o contacto directo com a realidade. Cito dois que já morreram; Luís de Miranda Rocha, no Diário de Lisboa, e Baptista Bastos, que trabalhou no Diário Popular e, mais tarde, ajudou a fundar O Ponto, um jornal de vida curta mas que muito me inspirou. Duas figuras distintas mas igualmente homens de talento, que se entregaram ao trabalho de alma e coração, a quem ouvi contar muitas vezes alguns segredos da profissão de jornalista/escritor de quando eu nascia para a vida.
Do quanto consegui ouvir, fiquei a saber que Mário Zambujal precisou de reescrever algumas crónicas para que algumas personagens tenham história que caiba no filme, para mais ou para menos, conforme os casos, já que “os malandros hoje são muito mais sofisticados”, e “aquelas histórias tiveram o seu tempo”, segundo palavras do autor. Mas o que retenho acima de tudo foi a forma como ele contou o ambiente nas redacções dos jornais nos anos 70: “Havia sempre uma nuvem de fumo nas salas, um vozear constante entre camaradas a trocarem informação e a fazerem perguntas, que os motores de busca hoje resolvem em segundos, e aquele batuque das máquinas de escrever, que ainda hoje parece que ouço, um batuque constante, que parecia uma música de orquestra”.
Não tenho a certeza que este episódio de um sábado à tarde na livraria da Gulbenkian sirva os leitores desta coluna. Por isso acrescento duas notas que podem ajudar a minorar o textinho de uma semana de muito trabalho com os dentes cerrados e pouca inspiração. Já fui assaltado, com uma faca de cozinha a centímetros do meu nariz, nos jardins da Gulbenkian, mas só conto a história completa do assalto a um realizador de cinema.
A Fundação tem uma biblioteca onde se passa uma manhã, ou uma tarde, sem darmos conta do tempo; e mesmo ao lado tem um café com esplanada para o jardim, onde é possível encontrarmos o nosso escritor de eleição a beber um café ao lado da nossa mesa; sempre a dois passos da água do lago, dos patos e dos peixes, e também com um barulho de fundo dos carros da Avenida de Berna, e agora também das obras na Praça de Espanha. Sonho todas as noites com viagens a Estocolmo, Budapeste, Copenhaga, Berlim, etc, etc, mas, de verdade, se conseguir esquecer-me do trabalho que tenho á minha espera em Santarém ou na Chamusca, ligar o telemóvel em modo de silêncio, mesmo com os pés no chão, e confinado em Lisboa, viajo mais do que alguma vez pensei ser possível. JAE.
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