quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Uma visita ao antiquário e a arte para conforto espiritual

Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam ( : ) alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante.


A minha relação com a cidade de Santarém é parecida com a relação que tenho com a cidade do Porto. Gosto mas nunca me apaixonei. O mesmo com os nativos, nunca participei em tertúlias nem tão pouco fui convidado. Embora sejam bem diferentes são cidades pequenas, se nos queremos manter independentes dos bairros e dos bairristas ficamos quase sempre a falar sozinhos. Há ainda em comum o facto de serem cidades com longas tradições. Os seus nativos não gostam de abrir a porta do coração a estranhos. Podem ser simpáticos mas sem muitas confianças.

Um dia visitei um antiquário no Porto cuja loja desconhecia. Fui seduzido por um livro de capa dura de um autor de que gosto muito. Perguntei o preço do livro que estava por perto do lote de livros que me interessavam para começar a minha peregrinação pelos objectos que me surpreenderam, alguns eram-me familiares, e o antiquário respondeu-me com uma visita guiada a todos os livros que faziam parte daquela caixa/estante. De repente comecei a ouvir as histórias de cada um dos livros conforme ia perguntando pelos preços, mas à segunda descrição já tinha descoberto a quem os livros pertenciam, ou seja, já tinha a certeza de que não estava com visões; eram de uma amiga de longos anos, filha de pais riquinhos, que herdou o bom gosto, mas também muita coisa que lhe enche a casa e que vai ocupando o lugar que não sobra para as novas bugigangas.

Cada vez que cantava um preço para um livro, ou outro objecto, descrevia-me as partes mais importantes da biografia da antiga proprietária, minha amiga, muitas vezes provocado pelas perguntas que de forma provocadora lhe ia fazendo à procura de perceber até onde chegava o paleio do antiquário.

“Tem bom gosto”. “Vou confessar-lhe: isso era de uma arquitecta do Porto que é meio louca”. “Vê-se que é uma mulher inteligente, e pode comprovar por esses livros todos que ela me vendeu”. “Casou com um dinamarquês há pouco tempo, ainda é uma mulher interessante”. “Sim, é rica o suficiente para se desfazer de património que lhe enche a casa. Tem uma pancada medonha”. “Desculpe, mas não posso vender mais barato. A minha cliente obrigou-me a dar-lhe um bom preço pela peça. Ela sabe o valor do que me vende”. “É meio desapegada dos bens materiais, mas informada o suficiente para não se confundir com os herdeiros que, por não saberem o valor da dádiva, vendem a qualquer preço”.

Omito outras considerações mais pessoais e íntimas, que ele me ia contando para me entusiasmar a comprar toda a mercadoria que me interessava, e deixo à imaginação do leitor o que um negociante é capaz de romancear para fazer negócio com um provinciano, que ele primeiro confundiu com um médico de profissão, depois com um empresário endinheirado, mais tarde com um coleccionador daqueles que ele sabe que vão comprar se o preço baixar até ao valor justo.

Saí da loja com meia dúzia de objectos e não tive a sorte de encontrar um livro que eu próprio ofereci à minha amiga há duas dezenas de anos: um livro ilustrado que já quis encontrar para me prendar a mim próprio, e que por mais que procure não consigo encontrar nem no mercado de segunda mão.

A história acaba aqui: nunca mais voltei à loja porque alguns meses depois desta aventura no antiquário reencontrei a minha amiga e contei-lhe uma parte da história. Tive que fazer jus à nossa antiga amizade. Os verdadeiros amigos devem ser as últimas pessoas a quem devemos trair. Já os negociantes têm uma vida toda para ir aprendendo a viver com coincidências, clientes mais ou menos loucos que ou vendem ou compram. Os que compram, e que meia dúzia de dias depois já não sabem onde guardaram a mercadoria, e os que vendem, e ainda nesse mesmo dia gastam o dinheiro numa mala de marca ou numa serigrafia do Artur Bual ou do José de Guimarães, que nas paredes da sala servem de companhia e de apoio espiritual nas horas mais solitárias. JAE.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Os caciques não vão à escola

Hoje quase que não há jornalistas com carta de condução, porque Lisboa tem uma excelente rede de transportes e o jornalismo é caro, os governos fazem-no ainda mais caro, um jornalista que queira contar a epopeia do Parque do Relvão tem que falhar as idas ao Snob, os encontros com os Escárias desta vida.

Pensar globalmente e agir localmente é a frase que fica de um momento cimeiro dos tempos recentes que só é comparável noutras dimensões à queda do muro de Berlim e a tudo o que desmoronou a seguir, a tudo o que se ergueu também mas não é disso que quero falar aqui neste cantinho, neste jornal local/regional, editado para servir uma região e uma comunidade com a voz sumida, muitas vezes afónica, organizada como se fosse um grande quintal, dividido por cercas de arame farpado, num território onde os caciques compram com facilidade as propriedades de muros altos, daqueles a quem serviram, embora nunca cheguem a conquistar o mérito e a humanidade daqueles a quem conquistaram o mesmo estatuto, embora nunca o respeito e a dignidade, porque cacique não vai à escola, não lê, ignora o poder transformador das artes e de todas as ciências, o que ele sabe é o que dá a terra que nunca foi lavrada e semeada; 

local e regional é o mesmo que dizer charneca, aldeia, ruína, floresta, municipal, entre tantos termos que dão significado à nossa História, que Alves Redol, José Saramago, Joaquim Veríssimo Serrão e tantos outros homens de letras souberam interpretar e deixar escrito, embora poucos de nós saibamos interpretar o que lemos e muitas vezes nem saibamos sequer ler, quanto mais interpretar, foi por isso que na morte de Sérgio Carrinho ninguém falou/escreveu sobre o Parque do Relvão, todos os jornais locais/ regionais incluíndo os de Lisboa e Porto, fizeram o obituário como se Sérgio Carrinho tivesse trabalhado 40 anos no exercício de um cargo público como um simples artesão de fazer colheres de pau, quem é que sabe o que é verdadeiramente o Parque do Relvão? e dos que sabem quem é que quer escrever nos jornais sobre a derrota e a humilhação de que a Chamusca foi vítima depois de Sérgio Carrinho ter sido o único autarca do país a pensar primeiro no interesse nacional e só depois no interesse do seu concelho e do bem-estar da sua população? 

todos sabemos que sem omeletes não se fazem ovos, José Sócrates e antes Mário Soares e Álvaro Cunhal quiseram ter a comunicação social na mão, porque os jornalistas são os únicos intérpretes da realidade que a podem explicar ao mundo chamando os bois pelos nomes, por isso é preciso ter os jornais controlados, hoje quase que não há jornalistas com carta de condução, porque Lisboa tem uma excelente rede de transportes e o jornalismo é caro, os governos fazem-no ainda mais caro, um jornalista que queira contar a epopeia do Parque do Relvão tem que falhar as idas ao Snob, os encontros com os Escárias desta vida, não tem tempo para ir à televisão fazer um comentário em horário nobre, isto está mau para a democracia, para o interior do país onde o grande negócio é o eucalipto, e logo a seguir as estufas no Alentejo, onde o território já se equipara a Marrocos, por isso, em homenagem ao Sérgio Carrinho, fiquem lá com o aeroporto, com todos os aeroportos que quiserem construir, um dia destes há-de aparecer outro Sérgio Carrinho que bata com a mão na mesa e faça ver a estes merdosos dos políticos do Reino que os provincianos aceitam levar com o lixo em cima, com os camiões a entrarem pela casa adentro, mas alguém tem que ajudar a sustentar o Centro de Apoio Social da Carregueira, a construírem outra ponte sobre o rio Tejo ao lado da que já existe, que o resto nós fazemos, cá nos desenrascamos; 

isto de viver por perto dos sobreiros não é assim tão mau como parece, temos pena é que a nossa gente continue a desprezar a educação dos filhos e nos saiam na rifa políticos locais que estudaram para caciques, sacanas que estão sempre prontos para se meterem a jeito de levarem umas palmadas, gente ordinária que não tem um mínimo de noção das suas tristes figuras, e para rematar que a prosa já vai longa, temos pena que o texto seja editado com uma pontuação à Saramago mas foi o que saiu, e como esta crónica não é para convencer ninguém, é muito provável até que a maioria dos leitores fique a meio do caminho, pois que se danem os falsos reformadores do Governo, os caciques que andam por aí a viver à custa do orçamento, e já agora que vou embalado que quem sair presidente da Câmara da Chamusca nas próximas eleições leve o Parque do Relvão em folhetos para o Rossio de Lisboa e faça uma campanha junto dos turistas nacionais e estrangeiros que certamente faz desabar a caliça do Carmo e da Trindade. JAE.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Morreu Sérgio Carrinho: a sua vida dá um romance

Não há melhor forma de falar de Sérgio Carrinho que recordar o seu gosto pelas velharias, o prazer de conversar enquanto partilhava um cigarro e um copo meio cheio, a facilidade com que metia a mão ao bolso e enchia a mão de quem lhe pedia ajuda.

A minha manhã de hoje, dia 31 de Agosto, em que Sérgio Carrinho adormeceu para sempre, foi passada numa feira de velharias a regatear preços de livros, a saber como vai o preço do ouro e da prata em segunda mão, a ouvir histórias de gente que anda com a casa às costas, almoça e lancha fazendo uso de uma mão, trabalhando com a outra a mostrar a mercadoria ou a receber o dinheiro das vendas.

Não há melhor forma de falar de Sérgio Carrinho que recordar o seu gosto pelas velharias, o prazer de conversar enquanto partilhava um cigarro e um copo meio cheio, a facilidade com que metia a mão ao bolso e enchia a mão de quem lhe pedia ajuda para comprar tabaco, mas também muitas vezes dinheiro para comprar o pão, a botija do gás ou pagar a factura da luz.

A vida de Sérgio Carrinho dava um livro; um romance para ser mais exacto. O autor deste texto pode dar uma ajuda a quem se propuser romancear a vida do autarca da Chamusca que vai ficar para a História. Foi ele que me convidou para entrar na política, e foi já como presidente da câmara que o acompanhei durante alguns serões de trabalho no salão nobre dos Paços do Concelho.

Foi sol de pouca dura porque tínhamos tanto em comum que depressa nos cansamos um do outro. Não rima mas é verdade. Nunca deixamos de ser amigos, mas ele era um mouro de trabalho e eu era um jovem irresponsável que queria era putas e música, como se dizia na altura, e acho que ainda hoje se diz, mas sem a palavra puta.

Sim, se alguém escrever um romance e misturar no enredo a vida de Sérgio Carrinho, vai ter que usar muitas palavras chulas, porque ele não as evitava em qualquer circunstância, aliás, quem o conheceu sabe bem que os seus olhos riam quando lhe saía um palavrão que originava quase sempre uma gargalhada.

Soube da sua morte quando cheguei a casa carregado de livros, que ele também adoraria ter na sua estante, com excepção de dois ou três temas que não lhe interessavam, nomeadamente comunicação social e poesia. Sérgio Carrinho era tudo menos um poeta ou um leitor de poesia. Para ele os poetas eram uns chatos, embora fosse amigo de muitos poetas populares, nomeadamente da sua terra, o que não retira verdade ao que acabo de escrever. O seu gosto era pela História, nomeadamente política e social.

A vida que levou como autarca durante trinta anos não lhe deu tempo para fazer uma grande biblioteca ou ler a maioria dos seus autores preferidos. O que mais deixou na memória dos que com ele conviveram foi a ideia de que o mundo só anda para a frente com a força das ideias e do trabalho. Por isso ganhou todas as eleições em que foi a votos. E saiu da política devido à lei da limitação de mandatos que coincidiu, quis o destino, com a sua queda física e mental, embora não simultânea, mas quase, para sua tristeza e desgosto.

Nada disso o impedia de continuar a gargalhar, a gostar de conversar, continuar a queimar cigarros, de vez em quando com as lágrimas mais à flor dos olhos, mas sem mesuras, que mesureiro é coisa que ninguém lhe podia chamar, nem agora que já morreu e não está cá para se defender. JAE

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

A morte em directo do forcado Manuel Trindade

 Manuel Trindade, forcado do grupo de S. Manços, morreu ao tentar pegar na primeira tentativa um touro com quase 700 quilos na corrida que se realizou no passado dia 22 de Agosto na praça de toiros do Campo Pequeno. A morte não foi imediata, mas as contusões que o forcado sofreu contra as tábuas foram tão fortes que a sua morte acabou por acontecer horas depois já no Hospital.

Não deixo passar a morte deste forcado sem deixar aqui o que penso desta ocorrência e aquilo que protagonizo para o futuro da actuação dos grupos de forcados nas arenas. Assim como defendo o uso de bandarilha sem arpão, defendo que um grupo de forcados que se desfez em quatro segundos até o forcado da cara morrer contra as tábuas deve repensar a sua existência e a sua responsabilidade na morte do seu companheiro.

Não vale a pena poupar palavras. Um forcado que vai para a cara de um toiro sabe que pode morrer se não tiver as ajudas de que precisa. Se as ajudas forem incapazes de se juntarem a ele na cara do toiro, de parar o toiro ou desviá-lo das tábuas, o forcado pode morrer. Foi o caso.  Alguma coisa deve ser alterada, tendo em conta o historial da arte de pegar toiros. Nos últimos anos morreram 11 forcados nas arenas portuguesas (o número é provisório e cheguei lá depois de falar com alguns críticos da festa que escrevem regularmente sobre toiros).

Por ter vestido uma jaqueta sei o que é viajar à córnea ou à barbela na cabeça de um touro até bater nas tábuas. Eu e muitas centenas de forcados tivemos sempre a sorte do nosso lado, e não deixámos lá os miolos nem os órgãos que depois de castigados causam a morte antes da ajuda médica.

Um grupo de forcados vai para dentro do redondel com oito homens, mas tem outros tantos na trincheira. O que nós vemos nas fotos e no vídeo da pega de Manuel Trindade é quase um suicídio em directo. O toiro não tinha cara de diabo, mas com os seus quase 700 quilos certamente que tinha a força de um diabo.

Tenho no computador o filme da pega e é doloroso ver como o grupo de S. Manços foi ficando pelo caminho naqueles breves quatro segundos enquanto durou a reunião entre forcado e toiro e o embate nas tábuas que causou a tragédia.

Quem me lê e é aficionado vai dizer que estou a aproveitar-me da infelicidade de um forcado para ganhar leitores e fazer demagogia. Não estou: primeiro porque sei que na cabeça do forcado da cara o seu maior medo é chegar às tábuas sem ajuda, depois porque já vivi a mesma situação; segundo porque mesmo os forcados que nunca pegaram um toiro de caras sabem que o grande perigo das pegas não vem do toiro baixar a cabeça demais, de ensarilhar ou sequer de tentar derrotar o forcado; com mais ou menos pirueta ninguém morre da queda. Mas contra as tábuas morre-se ou fica-se paraplégico com muita facilidade, seja nas touradas oficiais, nas picarias ou nas largadas.

Quem fez o favor de me enviar o filme dos acontecimentos publicou as imagens e convidou-me a usá-las. Respondi-lhe que O MIRANTE, regra geral, não publica fotos de pessoas ou actos violentos. Do outro lado veio a resposta que eu esperava: “concordo: alguma coisa tem que ser feita para que se possam evitar mais mortes nas arenas como a de Manuel Trindade”.

Os trapezistas do circo já não morrem se caírem do arame, os pilotos de fórmula 1 morrem mas muito menos que os forcados, e quando arriscam é para sustentarem as suas grandes fortunas, o mesmo com os pilotos de aviões, de barcos, os atletas de alta competição que muito raramente morrem a praticarem desporto. Não é justo que os responsáveis pelas corridas de toiros não protejam os seus principais protagonistas que são os forcados, quando a pega corre mal e os seus companheiros não estão à altura de o ajudarem, embora por razões alheias à sua vontade e coragem.

Confesso que pensei duas vezes se devia escrever sobre o assunto, sabendo que o mundo dos touros não tem quem pense as touradas, quem tenha soluções para humanizar mais o espectáculo, defendendo-o dos anti-taurinos que são capaz de festejarem a morte de um toureiro ou de um forcado como se festeja a morte de um terrorista. Ver e ouvir os militantes anti-taurinos festejarem a morte de um toureiro ou de um forcado é execrável e mostra que ainda vivemos numa sociedade onde não há limites para a desumanidade. JAE

Nota: Dedico esta crónica a Rui Manuel Souto Barreiros que, embora tenha mais 12 anos do que eu, ainda me ensinou muito sobre como se sobrevivia, na altura da juventude, no seio dos grupos de forcados .



Henrique de Carvalho Dias publicou na edição online de O MIRANTE um texto e uma galeria de fotos da corrida no Campo Pequeno onde Manuel Trindade perdeu a vida. Esta foto foi cedida por Eugénio Eiroa Franco, um jornalista aficionado que edita o  “tribunadatauromaquia”. Entre o momento da reunião do forcado com a cara do touro e o embate fatal nas tábuas passaram apenas quatro segundos.


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Cheguei a velho... e agora?

Em tempo de eleições autárquicas, os velhos como eu perguntam quem é o candidato que promete a construção de residências para seniores, que tem um protocolo com as instituições do concelho para que nenhum velho morra em casa sozinho. Quem é o autarca que faz propaganda política com o investimento em cuidados para as pessoas da terceira idade, aqueles que nos últimos 70, 80 ou 90 anos carregaram o país às costas? Acho que não encontramos nenhum.

Não sei se faz sentido escrever uma crónica a dizer que cheguei à idade da velhice, mas ainda não me caiu a ficha. Quero dizer: tenho a idade de velho, mas mantenho a forma física e julgo que intelectual para fazer o que sempre fiz, embora em alguns casos mais devagar e com mais calma. Claro que não vai ser por muito tempo. Basta olhar à minha volta e fazer dos outros os meus espelhos.

O título da crónica não é inocente: quem sabe sirva de inspiração para um podcast. Não sou eu que me vou meter em trabalhos, mas quem não tem nada para fazer certamente tem aqui um bom pretexto para conseguir uns milhões de seguidores e ainda poder sonhar com uma entrevista numa qualquer televisão, no horário da manhã, que é quando o país acorda para a triste realidade do jornalismo em televisão.

A maioria da população adulta que vota é velha como eu e não faz a diferença na hora do voto. A maioria de nós nem imagina onde é que vai passar o resto dos seus dias, quem lhes vai mudar a última fralda ou dar o último prato de sopa à colher, se as coisas derem para o torto e não morrermos jovens como todos desejamos. Quantos de nós têm, ou vai ter a curto prazo, 2 ou 3 mil euros para pagar a uma residência de idosos que não seja um lar ilegal, ou legal mas gerido por alguém que aceita velhos a bom preço (900 euros), como quem acolhe cães moribundos?

Em tempo de eleições autárquicas, os velhos como eu que se perguntem quem é o candidato que promete a construção de residências para seniores, que tem um protocolo com as instituições do concelho para que nenhum velho morra em casa sozinho? Quem é o autarca que faz propaganda política com o investimento em cuidados para as pessoas da terceira idade, aqueles que nos últimos 70, 80 ou 90 anos carregaram o país às costas? Acho que não encontramos nenhum.

Quem não tiver amealhado uma boa fortuna, ou não tiver familiares endinheirados, se viver muito tempo baboso e de fralda tem um fim pior que um rato que se mete num buraco de uma cobra.

É difícil perceber que a direita do PSD e a esquerda do PS ainda sejam tão estúpidos que não gastem agora com os velhos e as crianças o que já não precisam de gastar em alcatrão e saneamento básico. É difícil perceber que os políticos/autarcas continuem a dar de mão beijada os melhores terrenos aos Continentes e aos Pingos Doces desta vida para, em vez de termos jardins e monumentos à entrada das nossas cidades, tenhamos grandes superfícies comerciais com anúncios gigantescos a fazerem lembrar a poluição visual nos países de terceiro mundo.

O voto é secreto e cada um deve votar segundo as suas convicções. Por uma vez faço um apelo aos velhos como eu que votem em quem tem nos seus programas eleitorais políticas de apoio à construção de creches e residências para idosos. Chega de nos meterem o dedo no traseiro e de fingirem que também não conhecem as pessoas da terra que para serem pais têm que deixar de trabalhar ou são segregados e espoliados dos seus direitos.

Por último: os velhos como eu sabem quem trouxe Ricardo Salgado de volta do Brasil para refazer a sua fortuna; quem recebia Belmiro de Azevedo nos gabinetes; quem fechou os olhos aos assaltos às empresas públicas desde que a nossa democracia perdeu o estado de graça.  Está na hora dos nossos políticos tirarem a máscara e não continuarem a querer fazer-se passar por otários que nós já comemos muitas gamelas de malvas cozidas e temos memória de elefante. JAE


Nota: Duas frases, que nenhum velho deve esquecer, de dois velhos que morreram jovens. Millôr Fernandes: “Um homem é realmente velho quando só pensa nisso”. Pablo Picasso: “É preciso muito tempo para nos tornarmos jovens”.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

É muito fácil enlouquecer quando não se viaja

“O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. Uma crónica sobre um livro de Luísa Dacosta e as cartas particulares a Marcello Caetano.

O que deu origem a esta crónica foi o gesto de, ao chegar a casa, quase às 11 da noite, ir à estante e tirar um livro para cima de uma mesa para no outro dia não me esquecer de o levar dentro da mala para o escritório e enviar no correio a um amigo que fez o favor de mo emprestar. Não é um livro qualquer: é um livro de Luísa Dacosta (1927-2015) com dedicatória, que se intitula Corpo Recusado, cuja leitura nunca teria procurado se o meu amigo não me tivesse contado que o livro é autobiográfico e conta a história de um amor traído. O personagem principal era uma figura importante da crítica literária portuguesa, que faz parte do meu imaginário, e com quem aprendi a desvendar alguns livros. Sabê-lo ali retratado na figura do amante que não foi capaz de saltar a cerca, fez-me saber, desde há cerca de um ano em que li o livro, em que lugar exacto da estante ele repousava à espera de ser devolvido.

Não por acaso hoje foi dia de cumprir a promessa de devolver o livro; passei uma boa parte da tarde à procura de um livro de Joaquim Veríssimo Serrão, que me lembro de ler e assinalar como faço aos livros de que gosto e depois guardo religiosamente para ir relendo. E um livro fácil de substituir na estante, mas o que procuro tem as marcas de uma primeira e segunda leitura que eu não gostava de perder. Por isso procuro-o, sabendo que um dia vou achá-lo, embora nessa altura certamente já tenha comprado um novo volume.

Acabei de reler os dois volumes das “Cartas Particulares a Marcello Caetano” com prefácio e organização de José Freire Antunes. A ideia era transcrever algumas das cartas para provar à sociedade que a comemoração do centenário da data de nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão merecia ter figuras do Estado, e que a sua amizade com Marcello Caetano não foi caso único, antes e depois do 25 de Abril, havendo até o caso das cartas do actual presidente da República, que bem merecem uma leitura embora à distância de muito mais de meio século. Com a mão na massa cheguei à conclusão que mostrar estas cartas exige-me um trabalho que não me apetece fazer, e escrever o que me vai na alma sobre o assunto começa a parecer-me gastar cera com defuntos. No entanto valeu a pena a releitura. Os dois volumes estão ao lado da biografia de Pacheco Pereira sobre Álvaro Cunhal, também em dois grossos volumes, estes com menos horas de leitura do que aquelas que eu acho que merecem. Heráclito deixou escrito que “os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”. É assim também com a leitura: quanto mais queremos saber sobre a vida de algumas figuras públicas mais nos escapa o que eles viveram na realidade.

Antes de começar a escrever a crónica e de voltar a folhear Corpo Recusado, em jeito de despedida do livro que me proporcionou uma leitura quase mística, sem arriscar um único sinal de leitura porque não se podem riscar os livros que os amigos nos emprestam, descobri uma folha com uma citação de um livro de Lawrence Durrell: “O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. O sentido da frase tem tudo a ver com o romance da Luísa Dacosta, mas agora também serve para deixar aqui nota da certeza que se sente de que por mais que nos esforcemos nunca conseguimos escrever na perfeição a carta adiada, a crónica, o poema ou o romance que diariamente nos consome os neurónios. JAE.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Tejo poluído e o Douro das águas profundas e navegáveis

No Porto é fácil falar de igual para igual com qualquer pessoa. No meu caso gosto de carregar nas teclas das ondas da praia da Aguda, das águas revoltas do mar de Esposende, ou da Granja, e o resto vem com a memória do que li nos livros de Agustina, Camilo, Eça ou João de Araújo Correia, entre outros.


Dormir com uma má decisão que só pode ser revertida no dia seguinte, se tudo der certo, já é canja para mim que cheguei à idade de quem vive à beira do abismo: ou deito-me por aí abaixo ou aprendo a equilibrar-me. Escolhi para já a última alternativa. 

Desfiz o equívoco que deu origem ao primeiro parágrafo com uma simples frase: já não sou o Joaquim que era há 20 anos. E o problema resolveu-se sem mágoas e equívocos, fruto do que sem pensar e de forma a despachar conversa tinha dito no dia anterior, e sem que com isso tenha perdido a razão. 

Na noite em que escrevo num quarto de hotel do Porto, estou de regresso de um momento musical numa casa apalaçada de um empresário da cidade.  Embora não seja a minha praia, “viajei”, durante o convívio, com alguns amigos e conhecidos por vários países do mundo por onde eles ainda viajam, alguns já dividindo trabalho com os filhos, fazendo aquilo que os portugueses sempre fizeram bem: vender o nosso produto lá fora. 

Como já não estou em idade de desvendar segredos, ou seja, já pouco me interessa saber como se ganha dinheiro, basta e sobeja-me ouvir as histórias, como a da senhora que há 60 anos se passeava no Porto com o Porsche com seis pessoas lá dentro, e deu várias voltas ao mundo a vender vinho do Porto da casa de família; o empresário que começou a viajar para a Tailândia e enriqueceu em meia dúzia de anos; o que construiu um império que lhe permite ter a casa de seis milhões onde hoje me acompanhou até à porta na hora da despedida, ou aquele que, por brincadeira, comprou um quadro de um pintor famoso e hoje tem uma colecção de arte que vale uns bons milhões.

No Porto é fácil falar de igual para igual com qualquer pessoa. No meu caso gosto de carregar nas teclas das ondas da praia da Aguda, das águas revoltas do mar de Esposende, ou da Granja, e o resto vem com a memória do que li nos livros de Agustina, Camilo, Eça ou João de Araújo Correia, entre outros. 

O Joaquim que hoje tem a oportunidade de ouvir, mesmo sem saber trautear, as canções do Rui Veloso numa casa apalaçada de Gaia, Vila da Feira ou Matosinhos, é o mesmo que há meio século corria para Lisboa para conhecer mundo e aprender o ofício que lhe deu corpo e espírito, qual deles o mais importante, para hoje poder decidir, quase à beira do abismo, se me cago de medo de cair ou se, na desportiva, aprendo sem dramas a arte de me equilibrar até a queda se transformar no prazer da última evasão.

Há força de acreditar que nunca devemos perder as ilusões, finalmente consegui perceber porque é que o norte e os portugueses do norte de Portugal fazem a diferença. Não fazia nada de diferente na minha vida se pudesse voltar atrás e mudar alguma coisa; talvez antecipasse uma dezena de anos a ingestão dos comprimidos que comecei a tomar para a queda do cabelo. Fiquei careca muito cedo, mas não tão cedo o suficiente para que os cabelos nos olhos não me tivessem tirado a visão, impedindo-me de ter ficado muito tempo a olhar de perto as águas poluídas do meu rio Tejo, em vez de ter ido mais cedo e mais vezes rio acima até ao Douro para ver melhor nas suas águas profundas e navegáveis. JAE