segunda-feira, 18 de junho de 2018

Um poeta que não acreditava na inspiração

(conversa com João Cabral de Melo Neto quatro dias antes da sua morte)

Foi a poeta Suzana Vargas que me levou a um palacete da praia do Flamengo onde vivia o poeta João Cabral de Melo Neto. Por mais incrível que possa parecer a porta estava no trinco, embora fossemos guiados já dentro de casa por uma empregada. Eu fiquei no salão à espera; a Suzana foi à procura do poeta por entre salas.
O que tínhamos previsto aconteceu; Marly Oliveira, a poeta e também mulher de JCML, não apareceu nem para nos cumprimentar nem mais tarde para se despedir: Susana, que a conhecia bem, já tinha avisado; ela gostava era que viéssemos cá a casa para a entrevistar.
Passaram quase vinte anos deste encontro; o que melhor guardo são as palavras iniciais de desânimo; a morte, que o visitou passados quatro dias, já andava por ali na luz dos seus olhos; mesmo assim o poeta fez revelações que me deixaram rendido; uma delas teve a ver com Miró. JCML contou que o visitava muitas vezes no seu atelier, em Barcelona, e que não conseguia falar com ele de poesia porque o pintor tinha muito pouco interesse pela literatura.
Da sua estadia em Portugal (Porto) como Cônsul Geral (1984-1987), pouco antes da sua reforma, o poeta tinha poucas recordações; o que nos contou foram acidentes de percurso; e não conseguimos roubar-lhe uma palavra elogiosa sobre amigos com quem tenha convivido ou relacionado na cidade Invicta.
JCML repetiu várias vezes que não acreditava na inspiração e que o verdadeiro artista tem que viver obsessivamente a sua Obra. No dia em que conversámos com ele, enterrado no sofá de um salão de época, o poeta queria falar sobre quase tudo menos de literatura; a cegueira, e "uma angústia que não tinha cura", juntamente com uma medicação muito forte era, para o autor de A Educação pela Pedra, "assim como uma bala enterrada no corpo".

Na passada terça-feira, dia 5, por volta das seis da tarde, subimos ao sétimo andar de um prédio situado na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, para visitar o poeta, João Cabral de Melo Neto. Apesar da saúde já muito frágil, o poeta, recebeu-nos com cordialidade e manteve uma conversa de quase uma hora para falar um pouco da sua vida, da sua obra e do drama de viver cego e com "uma angústia que não tinha cura". Quatro dias depois soubemos da sua morte pelos jornais. O autor de Morte e Vida Severina, A Educação pela Pedra e Museu de Tudo foi traído pelo coração aos 79 anos. A literatura de língua portuguesa perdeu um dos seus maiores representantes, Prémio Camões e Rainha Sofia pelo conjunto da sua obra.
João Cabral de Melo Neto era um dos maiores poetas de língua portuguesa. Autor de uma obra que é considerada das mais representativas e originais do século, o seu nome foi várias vezes apontado como candidato ao Nobel da Literatura e, entre muitos prémios que ganhou, os de maior destaque foram o prémio Camões e Rainha Sofia para o conjunto da obra publicada.
Autor de Morte e Vida Severina, um auto de Natal escrito por encomenda que era considerado uma das suas obras mais importantes, embora o poeta dissesse que era "a coisa mais relaxada que já escrevi", João Cabral lançou a polémica no meio literário quando confessou que não acreditava na inspiração e que "gostaria de criar como um matemático, sempre a partir de elementos racionais".
Reconhecendo dever uma boa parte da sua aprendizagem da arte a Le Corbusier, um arquitecto famoso que era muito citado por amigos seus do mesmo oficio, quando as suas vidas decorriam com normalidade na cidade natal de Recife, João Cabral de Melo Neto confessava que aprendeu com ele "a fazer arte não com o mórbido mas com o são, não com o espontâneo mas com o construído". Diplomata de carreira, João Cabral viveu os últimos anos da sua vida profissional no Porto, onde deixou muitos amigos e leu Mensagem de Fernando Pessoa, a poesia de Sofia, Eugénio de Andrade e Herberto Helder, os poetas portugueses que mais apreciava. Sobre a poesia de Camões reconheceu que nunca aprendeu a admirar verdadeiramente o poeta porque "na escola ele era muito mal ensinado" e isso pesou para sempre na suas opções de leitura.
"O meu trabalho em Portugal nunca me deu muito tempo para conviver com escritores. As relações entre Brasil e Portugal sempre foram muito difíceis e isso deixou-me pouco tempo para conviver com os amigos", recordou, acentuando no entanto que o longo período de doença da sua primeira mulher também ajudou, pela negativa, a marcar esse tempo.
Depois de recordar bons e maus momentos da vida e da sua carreira literária, de explicar como "a escrita era um verdadeiro sofrimento, é muito melhor ler do que escrever", João Cabral confessou, numa voz que parecia apagar-se a cada palavra que pronunciava, que a sua vida de escritor tinha terminado. "Estou cego e não sou capaz de ditar. Para mim a forma visual do poema é muito importante", adiantou, depois de confessar também que não aceitava que lhe lessem livros porque lhe faltava a paciência e a angústia que sentia era mais forte do que tudo. "De resto não sinto nenhuma necessidade de escrever. Os medicamentos que tomo para a depressão tomam conta de mim. Para quem passou a vida lendo e escrevendo a situação é dramática mas eu tenho sabido habituar-me a esta realidade", disse.
Numa sala ampla de um sétimo andar de um apartamento da Praia do Flamengo, o poeta de A Educação pela pedra ia procurando manter acesa uma conversa de amigos, das poucas que tinha aceitado nos últimos tempos. "Telefonam muito a pedir entrevistas mas eu já não atendo ninguém. Também já não recebo muitas visitas. As pessoas procuram-me mas eu depressa as desincentivo ou mando alguém fazê-lo por mim. Quem eu mais recebo são escritores a pedirem o meu voto para a Academia", acabou por confessar com um sorriso, talvez o primeiro dessa tarde, que durou muito pouco tempo depois de confrontado com o recente apoio a Roberto Campos, um intelectual de direita que substituiu Dias Gomes, um escritor de esquerda falecido em acidente de viação, na cada vez mais desacreditada Academia Brasileira de Letras.
Das suas passagens por Espanha, onde exerceu a carreira de diplomata durante mais tempo e com maior sucesso, João Cabral recordou as relações de amizade com Miró e outros pintores famosos da época. Das relações com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, dois dos mais famosos escritores seus contemporâneos, falou como de irmãos se tratassem, "embora nada exista para testemunhar a não ser a memória do que foi vivido. Eu não escrevia cartas a ninguém. Devo ter sido o único escritor que não recebeu uma carta de Bandeira", confessou, adiantando no entanto que as relações com Drummond foram muitos especiais porque "foi ele que me convenceu que eu também poderia ser poeta".
Para o autor de Uma faca só lâmina, Cão com plumas e A escola das facas, "uma pessoa para criar tem que saber viver com uma obsessão. Não importa qual, pode ser o amor de uma mulher, uma ideia política, na certeza de que assim o artista toma-se uma pessoa mais lúcida".
Foi com estas palavras repetidas de uma entrevista entretanto publicada num livro de António Carlos Secchin, um dos maiores estudiosos da obra cabralina, que João Cabral começou a pôr um ponto final na conversa da tarde da passada terça-feira, dia 5, no amplo salão da sua casa na Praia do Flamengo.
Momentos antes da porta do 701 se fechar, depois de uma última despedida, o poeta falou da morte e do consolo que sentia por ter aproveitado tão bem os seus quase oitenta anos de vida. Pelo que contam os jornais, o poeta morreu vitimado por um poema que lhe atingiu o coração.

Quaderna agradece a Joaquimm António Emídio
e ao jonal O Mirante a cedência de publicação.

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