terça-feira, 6 de janeiro de 2015

As Flores do Mal


Fernando Pessoa não pertence à lista dos poetas que Witold Gombrowicz zurziu num manifesto lido em 1957 em Buenos Aires perante uma plateia de intelectuais que, revoltados, o obrigaram a fugir a sete pés. Falando da criação em poesia como de um "extracto farmacêutico", Gombrowicz acusa os poetas modernos de "escreverem para eles próprios, para a sua própria fruição estética, se bem que, ao mesmo tempo, façam tudo e mais alguma coisa com vista a publicarem as suas obras". "Os poetas escrevem para os poetas. Os poetas cobrem-se mutuamente de louvores e prestam mutuamente homenagens uns aos outros". Sobem "uns para as costas dos outros", acusa Witold Gombrowicz que diz ainda que "os poetas profissionais são como seres que não se exprimem porque exprimem versos".

O autor do manifesto "Contra a Poesia" não conheceu Fernando Pessoa nem o seu drama em vida. Se tivesse conhecido talvez não tivesse publicado este manifesto sem ter escrito, nem que fosse em rodapé, que Fernando Pessoa foi o único grande poeta moderno que escreveu uma Obra maior que a sua vida e a sua vaidade, e que fez questão de a deixar quase inteira numa arca, como se deixam as antiguidades aos herdeiros sabujos.

"Pertenço a um género de Portugueses/Que depois de estar a Índia descoberta/Ficaram sem trabalho" ( : ). Eis Pessoa no seu melhor, num livro concebido como Obra de Arte, desde logo por ostentar uma capa em madeira, nada a fingir, trabalho bem feito que irá ter seguidores, certamente, e trabalho gráfico incomum na paginação de poemas e textos que nas palavras de Manuel S. Fonseca, o editor, "bebem absinto e vinho louro e tanto fumam ópio como deitam fora um cigarro meio fumado".

Ao lermos textos tão importantes da Obra de Pessoa e dos seus heterónimos, em que "o poeta se funde fisicamente com as suas drogas" lembrámos-nos de Witold Gombrowicz e da sua critica à poesia moderna considerando-a como "extracto farmacêutico". Aparentemente não há nada que ligue estas duas realidades assim como as 51 fotos de Pedro Norton que ilustram o livro não têm qualquer ligação aos textos do poeta que preferia "pensar em fumar ópio a fumá-lo/e achava mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo..."No entanto as fotos falam com os poemas e dos poemas da mesma forma que Witold Gombrowicz assume logo no início do seu manifesto que "quase ninguém gosta de versos e o mundo dos versos é fictício e falso".

Pedro Norton fotografa para dizer também que a fotografia é uma arte que precisa de ser reinventada. A sola do sapato em confronto com o movimento desfocado dos pés, o fundo branco da maioria das fotos e a quase ausência de rostos, fazem deste conjunto de fotografias um bom exercício para que outro Witold Gombrowicz venha dizer que já nada era como no tempo em que Gerard Castelo-Lopes ficava dez minutos a focar a sua objectiva antes de disparar a velha Kodak e nascer uma foto quase perfeita.

O meu fotógrafo de arte de eleição é Fernando Lemos que, ao contrário de Fernando Pessoa, viajou para o outro lado do mundo e não ficou em Lisboa "a fumar a vida". Aliás, Fernando Lemos tem uma Obra gigante, mais na escultura e na pintura que na fotografia, feita a partir do Brasil para onde se mudou em 1953. Recordá-lo enquanto folheamos o livro e lemos Fernando Pessoa, e tentamos decifrar as fotos de Pedro Norton, é uma boa forma de homenagear Fernando Lemos que tem uma Obra ímpar que merecia mais divulgação em Portugal.

Com estas fotos Pedro Norton estende a sua arte à nossa admiração, como nas suas fotos alguém estende o braço para espetar a seringa, ou cospe no lavatório, ou dá voltas na cama preso pelos cabelos. Todas as fotos são metáforas de um passado recente que lembram heranças esquecidas, desventuras, tormentos, solidão e pecado; "Um mundo de Absinto, ópio, tabaco e outros fumos" de que tratam os poemas de Pessoa e que, ao fim de várias leituras do livro, acabamos por achar que as fotos também falam e impõem a cada novo olhar.

Há ainda algo de um cigarro meio fumado que se deita fora a meio do caminho, na forma como algumas fotos nos marcam a memória de uma religião que está presente na nossa vida desde a infância, e que nos acompanha pela vida fora, neste caso mais como forma de praticarmos o sacrilégio que a oração.

As Flores do Mal são uma edição Guerra & Paz com uma tiragem de 1500 exemplares numerados em algarismos árabes e eu tenho o número 65 oferta de um amigo.


Texto de Joaquim Emídio publicado na edição online de O MIRANTE, na secção Livros que São Vidas, disponível através do link: http://www.omirante.pt/index.asp?idEdicao=54&id=78484&idSeccao=560&Action=noticia#.VKu4kHvLHGA