quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Colete Encarnado em Vila Franca de Xira e as memórias das festas que ficam para a vida

A festa do Colete Encarnado não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica, falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

A festa do Colete Encarnado junta uma multidão em Vila Franca de Xira durante 3 dias. Não há outra festa ligada aos toiros que junte tanta gente, sendo certo que a grande  maioria não vai às corridas nem às largadas e, certamente, uma parte também não aprecia as tradições tauromáquicas nem as aplaude. 

O Colete Encarnado tem uma tal dimensão ao nível da festa popular que os toiros e as touradas ficam para segundo plano. O forte da festa é a presença de milhares de pessoas, os encontros entre grupos de amigos, e, especialmente, a forma como o concelho mostra a sua actividade associativa. A festa nas ruas não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica e falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

Conheço mais de ouvir contar do que vivenciar as festas do Colete Encarnado.  O mesmo com a Feira de Maio, na Azambuja, ou Alenquer, as festas de Mação que também decorrem nesta altura, as de Abrantes que acabaram recentemente, e muitas outras que são notícia em O MIRANTE, e vão continuar a ser, se a redacção do jornal perceber que falar das festas locais é mais do que publicar o programa.  

Nos meus tempos de juventude sempre fui mais de bailaricos e largadas do que de petiscos e copos, embora me lembre de muitas ressacas, também quando era jovem, que me faziam corar de vergonha nos sete dias da semana seguinte. E, uma vez, uma única vez, por obrigação, peguei de caras à saída dos curros as quatro vacas de uma picaria nas festas de Vale de Cavalos, por razões que não é altura para explicar. Mas faço notar que ainda hoje guardo memórias dolorosas de algumas ressacas, e não me lembro de uma única razão para beber quase até cair para o lado.

Voltando ao Colete Encarnado: quando as galinhas tinham dentes, ia a Vila Franca de Xira todos os anos para ter que contar. Ainda hoje provo da mesma sopa. Aonde vou estou sempre a trabalhar. Foram nesses anos dourados, em que ainda tinha mau vinho, que mandava despejar a cerveja para o copo junto ao balcão para depois me juntar aos amigos e ninguém perceber que estava a beber cerveja sem álcool. Mesmo assim, com toda essa escola da vida que me obrigou bem cedo a ganhar juízo, ainda apanhei uns sustos nas varolas, a mota resvalou algumas vezes nas curvas, e cheguei a enfiar o barrete até quase tapar os olhos, mesmo tendo uma curta vida de forcado e nunca tenha vestido o traje de campino. JAE.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Beber água da torneira sem pagar e viver duas vidas sem protestar

Na minha aldeia há muita gente da terra e dos concelhos vizinhos que vão encher garrafões de água na fonte do Pinhão, uma herança da família Lopes da Costa que mantém a propriedade e uma coudelaria bem conhecida. Quando passo por lá também vou à bica beber água para matar a sede do momento, mas jamais acredito em águas milagrosas que não sejam as da chuva. Mas também tenho as minhas manias. Sempre que estou na terra vou à fonte pública dos Carrapiteiros beber água directamente da torneira do fontanário e encher a garrafa que sempre me acompanha no carro. Foi hoje o caso. Fui lá de propósito. A maioria das vezes calha no caminho para a beira do Tejo, onde tenho um bocado de terra e a esperança de um dia ser enterrado ao lado da campa de um cão, a quem eu próprio fiz o funeral há muitos anos. E agora também de uma linda raposa que recentemente foi morrer debaixo da laranjeira onde já dormi e quero continuar a dormir umas sestas.

No dia em que escrevo, varro o chão pela última vez de uma casa que aluguei e depois comprei há meio século, onde aprendi sozinho a trabalhar no ofício e a ganhar dinheiro.

Os últimos meses foram incríveis. Tudo o que foi ficando de uma vida de meio século, entre milhares de coisas e coisinhas, minhas e dos meus, deitei para o lixo, guardei e vendi a exemplo do que aconteceu também com o edifício.

Tive todo o tempo do mundo para sentir o peso de cada peça, de cada móvel, de cada quadro, de cada objecto que enchia os cantos à casa, os fundos às gavetas, enfim, de cada coisa que dantes era parte da minha vida e de um dia para outro passou à situação de dispensável. 

Não senti um pingo de sentimento por ser eu próprio a apanhar os cacos da loiça até ao último bocadinho. Nem quero saber se os gajos que me detestam, e juram vingança (não sei de quê nem porquê) estão por trás da facada que me deram, que por não me ter morto deixou-me mais forte. 

Ao fundo da rua onde escrevo, ainda estão de pé as paredes de uma antiga taberna e cervejaria que foi onde me fiz homem dos 11 aos 22 anos a trabalhar de borla para o meu pai.

Carreguei muitos milhares de quartões de vinho (e alguns de água)  para as quatro cartolas de quinhentos livros de onde saía o vinho a copo para o balcão.

Registo estas memórias enquanto espero pelo Filipe Barreiras que foi almoçar com o seu pessoal para depois darmos continuidade à limpeza, no dia de fecho desta edição, com o Bernardo e a Joana ao leme, e viagem marcada para os cus de judas, o lugar onde também mergulham nas nuvens outros gajos como eu que já fizeram o seu caminho e, agora, só precisam de não faltarem às consultas e não esquecerem de tomar a medicação. 

Nota: Dedico esta crónica à minha avó Ilda que é uma das mulheres da minha vida e a única a ter a iniciativa de meter cinco contos no meu bolso quando soube que eu tinha resolvido tomar de trespasse a ourivesaria do senhor Silva. A minha família nunca foi grande, mas ter uma avó como ela fez de mim o menino da família mais rica da minha aldeia. Ainda hoje. JAE

quinta-feira, 26 de junho de 2025

A vida na aldeia e o que se dizia nos altares das igrejas

Estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe.


Sou um provinciano assumido embora goste de entrar em palácios e palacetes e até ficar por lá a beber um copo. Depois vou à minha vida, e essas experiências para mim são como ir ao cinema. Se forem boas fica a recordação, se não forem, um dia já estou a ver o filme outra vez de tanto ouvir dizer que é bom. Assim é com os palácios e os palacetes, ou seja, os museus, que visito vezes sem conta embora me dê ao luxo de mal conhecer alguns considerados famosos que são de visita quase semanal de gente muito importante.

Lembrei-me deste privilégio de me sentir um provinciano ao ler três newsletters seguidas que o Expresso me envia por ser subscritor dos temas que os jornalistas tratam semanalmente e que me oferecem de mão beijada. Confesso que com estas leituras resumidas das notícias de Lisboa fico informado o suficiente para não ver televisão e, muito menos, ler os jornais mais do que aquilo que me interessa sobremaneira.

Foi num desses dias em que enchi o papo de informação desportiva e política resumida (do Expresso e do El País) que estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta; parei o carro na rua onde cabem à vontade dois automóveis, e estive ali num bate boca como há muito tempo não experimentava. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe e algum já enlatado há muitas dezenas de anos, tal foi o alcance temporal dos temas que tratámos na cavaqueira.

Como tinha o carro a apanhar uma faixa de rodagem, e estávamos os três a apanhar ainda uma parte da outra, embora encostados à parede,  os carros que passavam para baixo e para cima tinham que abrandar à séria, embora a rua seja daquelas onde apetece acelerar. 

Escusado será dizer que tirando os que acenavam com a mão por serem conhecidos ou vizinhos, os outros faziam má cara por terem que reduzir a velocidade de 80 ou 90 para 30 ou 40 quilómetros por hora. E naquela hora fiquei a saber por uma das vizinhas o que custa sair à porta de casa e levar com um carro a quase a 100 à hora numa rua dentro da vila, onde, de repente, pode saltar uma criança ou um adulto distraído com o saco do lixo na mão.

Habituado a andar mais de carro do que a pé nas ruas da minha aldeia, de vez em quando também com a mania que as ruas foram feitas só à medida dos automóveis e das motos, ouvi cobras e lagartos de condutores que passavam e faziam má cara por causa do incómodo de terem que abrandar a velocidade.

Nem abençoado pela conversa, com duas pessoas com quem não falava há muitos anos, deixei de pensar nas vezes em que eu também, sempre a acelerar para não perder o comboio, noutras ruas e noutras vilas e aldeias, devo ter levado o responso que, naquele fim de tarde, ouvi rezar com todas as letras a pessoas que conduziam os seus automóveis com o semblante de quem levava o rei na barriga.

Cheguei ao fim do texto sem explicar muito bem por que é que comecei por escrever que sou um provinciano assumido. Agora também já não tenho muito espaço para explicar, mas fica aqui o resumo do que não consegui escrever: a vida na aldeia já não é o que era dantes mas, embora não sinta saudades de outros tempos, vale mais uma hora de conversa sobre o que se dizia no altar da igreja há meio século, do que ver e ouvir os novos padres das paróquias a darem missa campal. JAE.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Leila Slimani, Carla Madeira, Arturo Pérez-Reverte, Juan José Millás e a fraqueza de quem tem o poder

O juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. 

Nos últimos dias já visitei mais vezes a Feira do Livro de Lisboa do que nos últimos três anos. A Feira do Livro de Lisboa também é uma feira de vaidades. Os livros baixam de preço até 30% mas a grande maioria já está nos sítios dos alfarrabistas, ou numa qualquer feira, a menos de 50% do custo inicial. A questão aqui é a Feira, o espaço, o convívio, o livro que é pretexto para ir dar uma volta, comer uma fartura, beber um café, marcar um encontro, e encontrar acima de tudo. A Feira é um grande negócio para quem a organiza e uma forma de os grandes grupos editoriais fazerem a promoção das suas marcas. As vendas devem ter muito pouca importância, a levar em conta que o mesmo título do mesmo autor muitas vezes enche uma estante inteira. E os pavilhões são pequenos. E cada um custa quase dois mil euros. Por isso há grupos editoriais que alugam dezenas deles para mostrarem importância e grandeza. E há editores que deixam lá as suas barbas porque nem devem ganhar para o que comem.

Este ano encontrei logo nos primeiros dias duas escritoras excepcionais de quem gostava de ser amigo. Carla Madeira e Leila Slimani: cada uma delas, separadas por meia dúzia de anos, escreveram dois romances eróticos como não conheço muitos, que deixam os textos de Henry Miller ou de Casanova a milhas de distância. Durante o tempo em que estive a observar as sessões de autógrafos, posso garantir que 80% dos leitores eram mulheres. "O Jardim do Ogre", da Leila Slimani, contra a história de uma mulher ninfomaníaca e o "Tudo é Rio", da Carla Madeira, conta a história de uma prostituta envolvida num triângulo amoroso. Mas estes dois títulos são, nos dois casos, apenas o início de carreira de duas grandes escritoras com livros que já venderam mais de um milhão de exemplares.

Conversei cinco minutos com Carla Madeira, que já é uma senhora de 60 anos, mas a minha conversa com Leila Slimani continua adiada. Leila Slimani não tem mãos a medir apesar dos seus 43 anos; se há alguém na literatura que nesta altura tem estatuto de vedeta é ela. Acaba de publicar o último livro de uma trilogia que conta a saga da sua família, mas antes destes três romances mais autobiográficos tem outros títulos que os seus futuros leitores têm que desbravar para se apaixonarem primeiro pelos seus primeiros quatro livros, entre eles Canção Doce, que é um romance de uma crueza incomum, que só pode ser contado por a sua autora ser genial e certamente a melhor discípula de Tahar Ben Jelloun.


Não me canso de citar Fernando Pessoa que escreveu que a literatura existe porque a vida não chega. No dia em que escrevo este texto encontrei uma entrevista com Juan José Millás que, a certa altura, conta que leu no jornal que “o juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. Ou seja, a menos que esteja meio metro mais alto do que a pessoa interrogada. É assustador, mas exemplifica muito bem o que está a acontecer. Em outras palavras, um juiz vir interrogar uma testemunha, a um lugar, e pedir uma tribuna, porque senão ele não sabe interrogar... é um ponto de vista esclerosado; para ele, esse olhar de cima para baixo é o olhar do poder. E ele, para interrogar uma testemunha, tem que se sentir mais poderoso”. A citação está fora do contexto da entrevista mas vive bem sem ela. E resolvi aproveitá-la para introduzir aquilo que se passou com um amigo a quem dava trabalho para o ajudar a ganhar a vida. Numa das muitas vezes que entrei na sua empresa, certo dia mandou-me sentar num sofá no seu escritório para me fazer as queixinhas do costume. Só que desta vez acrescentou uma conversa incomum: perguntou-me se eu tinha dado pelo facto de estar sentado num sofá que me obrigava a olhar para ele de queixo levantado, de baixo para cima. Lembro-me de ter sorrido e ficado calado.  Então ele explicou-me que estava farto de ser usado, que estava a obrigar todas as pessoas que iam à sua empresa a olharem para ele com a bola baixa, não aguentava mais tanta desfaçatez. Não é nada contigo, afirmou, mas queria que soubesses, explicou, como explicava muitas vezes o que lhe ia acontecendo na vida de menos bom, e que eu ouvia devolvendo algumas palavras de circunstância mas também de conforto. Esta história é antiga e desde essa altura que praticamente deixei de ver a criatura. Deixei de lhe dar trabalho e ele deixou de me aparecer pela frente. Há pessoas que só existem na nossa vida porque nós somos condescendentes, vamos beber todos os dias à nascente do rio e depois durante o caminho paramos para dar um pouco de água a quem não sabe que os grandes rios começam de uma pequena nascente e vão desaguar num grande estuário que, regra geral, é o mar.

Na mesma revista online (Zenda) onde li a entrevista com Juan José Millás pode ler-se uma crónica de Arturo Pérez-Reverte que se intitula “No dia em que me tornei nazista”, em que ele explica como conseguiu entrevistar um nazista a quem Franco deu nacionalidade espanhola e que estava escondido em S. Sebastian. Arturo Pérez-Reverte é outra grande figura da literatura e do jornalismo que me impele a meter a cabeça nos livros diariamente e a aprender a gostar de viver sempre com um livro debaixo do braço ou a sonhar que viajo nas histórias que vou lendo. JAE.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um Ribatejano encantado com a vida no Minho

Crónica sobre a arte de ser feliz a caminhar, e descobrir o país a norte, onde as tradições nos remetem para os tempos dos nossos avós.

Se quero saber quantos anos Portugal está atrasado em relação aos países mais desenvolvidos do mundo, viajo para Itália. E não é nem de longe nem de perto o melhor exemplo, mas é aquele que eu encontro com mais facilidade juntando o útil ao agradável. Depois Itália teve, e ainda tem, uma organização cujo nome (Máfia) já entrou no dicionário de todas as línguas do mundo e que, com o tempo, acabou por chegar a Portugal, coisa que facilmente se comprova, embora o pior ainda esteja para vir (e todos seremos vítimas. E não haverá inocentes… nem pintados de azul).

Se quero saber como Portugal e os portugueses são diferentes nas várias regiões, subo ao Norte e fico por lá dois ou três dias e vejo como o povo português do sul e da grande Lisboa, onde vive quase um terço da população, é tão diferente do povo do norte como os brasileiros são diferentes dos ucranianos.

No primeiro domingo do mês de Junho caminhei todo o dia pelas margens e leito do rio Caldo, em plena Serra do Gerês, e tive a sorte de seguir na estrada, e depois pelo meio do mato, a “Subida da Vezeira”, tradição que se explica em poucas palavras: no início do Verão, o gado bovino é conduzido para os baldios, onde permanece durante a época de pastagens mais abundantes. A vezeira é acompanhada pelos vezeireiros, que cuidam do gado e das suas necessidades na vezeira.

Quem não sabe um boi desta vida em comunidade admira-se, primeiro por ver como animais com 500 quilos conseguem subir aqueles terrenos montanhosos e cheios de mato, e, depois, como ainda há pessoas que mantêm a tradição de criar animais quando, economicamente, a grande maioria só tem prejuízo, embora tire partido do prazer e do prestígio local de ajudar a manter as tradições, contribuindo ainda para a preservação do património cultural imaterial e para a valorização do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Como o caminho que fiz ao longo do dia me levou para várias freguesias da Serra do Gerês, tive oportunidade de conhecer outros vezeireiros de outras vezeiras, e de ouvir contar como se organizam, como se defendem no Inverno, e de que forma se organizam para deixarem o gado no pasto e poderem ir à sua vida, que, ali, toda a gente vive de vários ofícios.

Apesar da conversa viva e culta sobre os costumes das gentes daquelas aldeias, foram dois adolescentes, que acompanhavam os pais, que me explicaram como funcionam e se organizam os vezeireiros, a cor de cada um dos animais, as suas origens, enfim, um tratado que só se escreve, edita e estuda na universidade da vida.

O rio que percorremos ao longo de sete quilómetros, durante uma boa parte do dia, tem as piscinas mais belas do mundo, digo eu, que, embora já tenha viajado muito, só conheço meia dúzia de metros quadrados de paraíso, pelas minhas contas uma parte ínfima do que deve ser o tamanho do olimpo.

A Gabel Oliveira, que é a guia do grupo e viajante profissional, foi quem me fez voltar a caminhar por carreiros de pastores, a saltar de pedra em pedra, e a deixar, por enquanto, o grupo do meu amigo Carlos Cupeto, que, não sendo viajante profissional, é um dos maiores dinamizadores culturais que já conheci, com uma actividade em várias áreas que vão desde a caminhada à tertúlia, entre muitas outras. Há muitos anos que o acompanho, mas ultimamente não tenho marcado o ponto. JAE.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

O dia de Quinta-feira de Ascensão ainda é como era dantes

A Quinta-feira de Ascensão marca os feriados municipais em 12 concelhos da região, mas só a Chamusca e Alenquer fazem da data um dia festivo. Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Salvaterra de Magos, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira comemoram a data mas apenas como celebração e consagração da Primavera.

Vivemos tempos de Ascensão que, curiosamente, incluem um dia em que é feriado em 12 concelhos da região (Alcanena, Almeirim, Golegã, Torres Novas, Azambuja, Benavente, Cartaxo, Chamusca, Salvaterra, Arruda dos Vinhos, Alenquer e Vila Franca de Xira). Só a Chamusca e Alenquer festejam o dia de Quinta-feira de Ascensão, ou Dia da Espiga, como também é conhecido, por ser o dia em que se comemora a consagração da Primavera. Apesar do feriado estar enraizado nas tradições locais, o dia feriado não é dia de festa a não ser na Chamusca e Alenquer. Em Maio de 2013 O MIRANTE publicou um texto, no seguimento de uma conversa com a maioria dos autarcas, onde o feriado é assumido apenas como dia de descanso, e todos concordaram que era assim que ia ficar, já que há outras datas para organizar festas locais. Aceito, mas não concordo. O dia do concelho devia ser festejado com iniciativas que dessem dignidade à data. Embora conceda que não sou um farol de exemplos, acho que os feriados municipais deviam ser mais valorizados. De verdade nunca festejo ou festejei o meu dia de aniversário, e quando os outros festejam a passagem do ano, ou outras datas importantes do nosso calendário, eu fico em casa a ver um filme ou a ler um livro. Mas uma coisa são os gostos pessoais, outra é a vida em comunidade.

Nos últimos anos, com a experiência da vida, só compareço a algumas iniciativas quando me apetece. Faço a gestão da minha agenda de forma a não desaparecer do mapa, mas também a não me obrigar a ser escravo do trabalho, de obrigações morais, gostos bairristas, entre outros.

Escrevo depois de ter decidido que este ano a Quinta-feira de Ascensão será um bom pretexto para uma manhã no campo a apanhar as laranjas doces que ainda restam nas laranjeiras, molhar os pés no rio, caminhar na areia durante meia hora e depois regressar a casa por caminhos da charneca, tentando olhar para o lado as vezes suficientes para não me esquecer que a paisagem mudou muito nos últimos anos, assim como mudámos muitos de nós que já não têm cu para as bebedeiras, as noitadas de picarias, os convívios pela noite fora para fortalecer amizades e reforçar o círculo de amigos.

Ainda num tempo e numa idade em que me apetece escrever/falar da sobrevivência da alma, importa lembrar que “a imortalidade não se queda apenas nas pessoas que deixam rastro luminoso da sua existência, pois também se junta ao património mental que deixam para a posteridade”. Roubei estas palavras a um livro onde o Historiador Joaquim Veríssimo Serrão escreve e deixa a sua marca, um livro que fala de homenagens, mas também serve de testemunho, para não esquecermos que somos “animais de trabalho”, mas também Homens com sentimentos, alegrias e dores que vão transformando a nossa maneira de ver e viver o mundo em que estamos mergulhados de corpo e alma.

Do livro de onde retirei esta frase está uma citação que não resisto a deixar aqui: “os homens de letras necessitam de 10 palavras para dizer o mesmo que um jurista faz em 5 páginas”. A citação justifica-se porque quero aproveitar o tempo de Ascensão para voltar a deixar aqui mais uma memória sobre o centenário do nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão, que se comemora a 8 de Julho, e a que voltaremos mais vezes, aqui nesta coluna ou nas páginas do corpo deste jornal. JAE.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Joaquim Veríssimo Serrão: um homem comprometido com políticas de direita mas com um coração de esquerda

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.

Não posso dizer que fui amigo de Joaquim Veríssimo Serrão mas fui quase. Só o facto de a História não ser uma das disciplinas que mais cultivo não fizeram maior a nossa convivência e amizade. Joaquim Veríssimo Serrão fazia amigos com facilidade e era visceralmente um homem que gostava de ser útil aos outros. Conhecia todas as regras de um diplomata, cavalheiro e bom samaritano, não por ser um genial Historiador e Professor, mas por ser, acima de tudo, uma pessoa boa. 

O centenário do seu nascimento, que se comemora a 8 de Julho, vai ser aparentemente assinalado com a prata da casa, o que será muito pouco para o que ele merece e Santarém lhe deve. A já anunciada cerimónia incluiu gente bem intencionada, nada nos faz duvidar disso, mas é só mais uma iniciativa à boa maneira local:  convidam-se os professores doutores do costume, assim como os doutourandos, e está garantido o sucesso da iniciativa. Santarém tem lepra quando é preciso mostrar grandeza e orgulho. Parece que o 25 de Abril não mudou mentalidades em certos sectores da sociedade. Não escrevo mais sobre este problema escalabitano, que tem raízes noutros concelhos, porque seria bater no ceguinho se trouxesse aqui o que penso da instituição que foi fundada para valorizar o trabalho de Joaquim Veríssimo Serrão, o seu nome e a sua obra.

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.  

Num país culto e politicamente evoluído, que não o nosso, aprisionado por interesses inconfessáveis daqueles que continuam a governar sem cultura democrática, os livros que cito neste texto  eram de leitura obrigatória nas universidades e em todos os fóruns onde se discute o futuro do mundo e dos homens, a injustiça e a solidariedade entre os povos.

O livro "Correspondência com Marcelo Caetano 1974-1980", tem uma história que merece outro livro. Algumas cartas antes de serem entregues ao remetente foram lidas num acto de censura que não se justificava no período que já se tinha vivido em democracia e, segundo sabemos, algumas dessas cartas ficaram inéditas. Escrevo de cor, do que ouvi a pessoas amigas, não tenho qualquer relação com a família ou com o Centro de Investigação com o seu nome, embora receba com regularidade os convites para as sessões, mas não preciso de ajuda para considerar este livro de republicação obrigatória no centenário do seu autor, ainda por cima numa altura em que a revolução de Abril já completou meio século. Sim, o livro é sobre amizade, confiança, solidariedade e revolução, e sobre censura e falta de respeito pelos valores e direitos humanos que nenhum 25 de Abril consegue implantar definitivamente para todas as pessoas, sem excepção, ontem como hoje.

Compreendo os que ainda têm medo de se colarem à memória do ilustre Historiador, principalmente pelo que ele escreveu em “Confissões no Exílio”. O que lá está escrito ninguém poderá ignorar, sequer rasgar, de forma a fazer desaparecer as opiniões do autor sobre Salazar e Marcelo Caetano.  Nada disso envergonha ou deve limitar a palavra ou a admiração pelo Homem, o Historiador e o escalabitano ferrenho. Joaquim Veríssimo Serrão era um homem assumidamente de direita, devido às suas amizades e à fidelidade canina que gostava de exibir, muitas vezes até de forma exagerada. De coração era um esquerdista. Quem conseguisse chegar à fala com ele podia contar com o que precisasse se estivesse ao seu alcance. 

Temo que as novas gerações não venham a conhecer, principalmente nas escolas e universidades, um homem brilhante, que dedicou toda a sua vida a escrever a História de Portugal e a lutar pelos seus ideais, pelos seus amigos e pelo seu país, na grande maioria das vezes escrevendo para dar testemunho.

Santarém não pode confiar a Obra e a memória de Joaquim Veríssimo Serrão só a quem se sente herdeiro do seu legado. A sua herança ainda incomoda e condiciona muita gente que ficou presa ao passado recente. Por isso é preciso ver mais longe, sentir mais de perto, julgar sem sentenciar, homenagear sem sentimentalismos bacocos. 

Santarém já não é só "um livro de pedra" como lhe chamou Almeida Garret. Santarém de hoje é, também, uma pedra no sapato de muita gente que tenta varrer a importância da cidade e das suas gentes para os buracos das muralhas milenares. Joaquim Veríssimo Serrão não ganhou o prémio Nobel como José Saramago, mas estão os dois por aí, mais perto ou mais longe, a contribuírem para que a História se vá  reescrevendo, e a darem o exemplo que não pode nem deve ser desperdiçado pelas novas gerações; também porque é cada vez mais raro encontrar gente com coluna vertebral, que não se verga a interesses mesquinhos, que não vive de joelhos nem renega os seus ideais por mais que isso lhe custe os olhos da cara. JAE.