quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Para lá do Marão mandam os que lá estão

Uma viagem de verão pelo norte de Portugal, que parece outro país para quem não tem o hábito de viajar de Coimbra para cima; e uma visita à Feira do Livro do Porto para ouvir a Pilar.


Estou num sítio à beira da estrada, numa aldeia perto de Alfândega da Fé, num turismo rural com café e restaurante, e os meus companheiros de sala são todos transmontanos. Sinto-me em casa e percebo que tudo o que gira à minha volta é obra de uma jovem família que trabalha de dia e de noite. Lembro-me do café restaurante do Perneta, perto do Chouto, onde o pessoal da minha terra, nos idos anos setenta, ia encher a barriga em grupo e, algumas vezes, em família.

O arroz-doce não tinha a casca do limão, mas era como se tivesse; o cheiro a perfume na sala fez-me lembrar o cheiro das mulheres nos casamentos e nos dias de festa quando acompanhavam as filhas aos bailes da colectividade. O facto de ser sexta-feira deve explicar a sala cheia, o que obrigou alguns clientes a entrarem numa outra sala do restaurante que ficava longe da vista. 

Numa mesa perto da minha, seis homens sessentões comemoravam uma data festiva. Identifiquei-os um a um com outros homens de trabalho que conheço da minha terra e das terras vizinhas. O que falava mais tinha um bigode em forma de ferradura. Parecia um actor francês dos filmes dos anos sessenta; o cabelo meio esbranquiçado, farto, tinha o molde do boné, o pescoço com uma bossa acentuada; era o único que não bebia vinho tendo optando pela cerveja. Só falaram de trabalho. Dois deles quase que não balbuciaram palavra de tão concentrados que estavam nas postas do bacalhau. Na minha terra e nas terras vizinhas há muitos anos que se perdeu este espírito de grupo, de vizinhança, de compadrio, no bom sentido da palavra. Como não posso ficar a espreitar e a calhandrar todas as mesas vizinhas, concentro-me naquela onde tenho mais para aprender. O telemóvel onde tomei notas serviu também para disfarçar o interesse que tinha naquela conversa de transmontanos à volta de uma mesa. 

Uma menina de nove anos assegura o balcão do café por onde se entra para o restaurante. O pouco tempo que permaneci no espaço, lendo os programas das festas e os cartões de visita dos clientes/empresários espetados na parede, foi suficiente para ouvir o óbvio: “isto é exploração de mão-de-obra infantil”. A menina fingiu que não ouviu, tinha um rosto sério, percebi que conversa daquela, mesmo a gozar, é música para os seus ouvidos. Durante a hora e meia que demorei a roer uma costeleta de novilho, e deixei o tempo correr para não me deitar com as galinhas, passou uma dúzia de vezes no apoio à cozinha e ao serviço de mesas. O telemóvel no bolso de trás das calças e a forma como olhava para os clientes era de quem se sentia em casa e esperava estar a fazer o seu melhor dia de trabalho. Quem diz que “o trabalho da criança é pouco, mas quem o desperdiça é louco” só quis fazer piada. Uma criança de nove anos a ajudar a família consegue fazer melhor que um adulto. E não é só por conhecer os cantos à casa; é por saber onde é que é útil e não atrapalhar quem tem que estar em todo o lado ao mesmo tempo.

Um salazarista com quem convivi ainda alguns anos, e que me falava de alto quando eu era mais jovem, dizia-me com a voz grave que Portugal não é um país agrícola, mas sim um país pedrícola. É preciso ir para lá do Marão para perceber o que ele queria dizer. Mas os homens do norte não são de brincadeiras. Os filhos dos que plantaram as vinhas do Douro andam agora a plantar oliveiras e amendoeiras nas encostas das serras.

Para quem percorre aquelas estradas pelo interior “a vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”, conta Miguel Torga que nasceu em São Martinho da Anta, perto de Vila Real.

Se alguém do meu grupo ler esta crónica, o que é improvável, vai dizer que escrevo de barriga cheia porque não aproveitei o convívio no rio Sabor até ao final. A verdade é que a Pilar del Rio falava nesse dia no encerramento da Feira do Livro do Porto e era impossível estar nos dois lados ao mesmo tempo. Por isso no último dia dormi a manhã na cama e depois regressei ao Porto a parar pelo caminho comendo amoras silvestres e espreitando a paisagem e tentando encontrar memórias de leituras de Miguel Torga mas também de João de Araújo Correia e Aquilino Ribeiro, três escritores que dormiram e ainda dormem à cabeceira da minha cama.

A Pilar, como sempre, foi igual a si própria. Leu um texto original de José Saramago, falou em espanhol porque defende que cada um deve falar a sua língua esteja onde estiver, e, para ser coerente, antes de falar da Obra e do valor do nosso prémio Nobel gozou com a classe política que na Assembleia da República censurou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,  e ainda disseram que estava mal escrito. JAE .

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Diário dos últimos dias de Agosto

Uma viagem de moto pelo bairro de Santarém e concelhos limítrofes daria para uma crónica alargada, mas fica aqui apenas o resumo, assim como pequenas notas dos últimos dias de Agosto.


Para almoçar na capital de distrito na terceira semana de agosto a uma segunda-feira corri Seca e Meca e Olivais de Santarém e só consegui depois de subir as escadas rolantes do Shopping. Aceito na minha caixa de correio a ementa dos restaurantes que se sintam ofendidos com a minha eventual ignorância.


Marquei entrevista com dois gajos de 40 anos para virem trabalhar numa das minhas equipas e falharam os dois. Um morreu-lhe a avó uma hora antes da reunião e o outro apareceu com roupa de morador de rua. 


A Joana esteve em Almeirim com uma figura de um organismo do Estado que nos atura há duas dezenas de anos, desde quando ganhámos estatuto para bater com o punho na mesa, e não o reconheceu apesar do sorriso e do trato pelo nome. Subiu na hierarquia. Os bons que servem o Estado não estão muito tempo no mesmo lugar. O seu ex-presidente conhece-nos desde que andamos nesta vida e a ideia é arrancar-lhe a memória de tantas reuniões em Lisboa em que só faltou brigarmos. Só espero que ainda nos tenhamos lembrado a tempo.


Depois de três meses com as lentes estragadas finalmente fui a uma óptica porque entretanto perdi os óculos de sol na praia da Ursa, num dia que parecia de Outono, em que tomei banho de brisa. Há anos que não bebia água do banho nem conhecia uma pessoa tão profissional que conseguiu desfazer o trabalho do optometrista que me acompanha há quase 20 anos. Incrível como somos resistentes. 


Entreguei para impressão dois livros que são fruto do nosso trabalho nas horas livres: "Camões, além do desconcerto", de Alexei Bueno, e "Confissões de um poeta", de Lêdo Ivo, cujo centenário se comemora este ano e é um dos meus escritores preferidos. Em meados de Setembro estarão nas livrarias. Jamais pensei que um dia ia editar um dos mais brilhantes escritores de língua portuguesa, graças à cedência de direitos de autor do seu filho Gonçalo Ivo.


Fui fazer uma viagem de mota pelo bairro de Santarém, Torres Novas, Alcanena e Golegã, onde querem construir um aeroporto internacional. Fui com uma outra motivação, mas esta ideia assaltou-me várias vezes pelo caminho. A verdade é que já nem os figos se apanham e são negócio. Os lugares multiplicam-se, o casario é muito disperso, e ali toda a gente parece que vive no fim do mundo mas onde tudo o que é terreno fica mais à mão. Como nasci e cresci numa casa entalada entre a lezíria e a charneca, o bairro parece-me sempre um lugar estranho; talvez por isso o coração veja mais do que os meus olhos.


Morreu José António Santos, Zezão para os amigos. Dizem que foi uma cirurgia simples, mas mal calculada que acabou com ele. Era pedreiro de profissão, aluno do mestre Joaquim Antunes, leva com ele os segredos de centenas de ramais de esgoto, ligações de águas pluviais e domésticas, segredos de telhados que todos os invernos metem água, paredes e muros que ainda hoje originam brigas familiares na divisão das propriedades, etc, etc. Falava pouco mas da sua profissão sabia muito. Fui seu companheiro em menino quando subíamos a "Rua do Vale" em grupo depois dos serões na colectividade da terra. Em menino é uma forma de escrever. Pertencemos à geração daqueles que nunca foram meninos, mas nem por isso deixámos de viver a vida e de deixar testemunho. JAE.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Chamusca deu o ouro ao bandido e a Ponte Salgueiro Maia é a excepção

O desenvolvimento numa parte da região centro faz-se por uma ponte de ferro inaugurada em 1908: e o último grande investimento do Governo na região ribatejana foi há 24 anos com a construção da Ponte Salgueiro Maia para aliviar a Ponte D. Luís que foi inaugurada em 1881.


 "Caro cliente a sua encomenda foi expedida, pode seguir o seu rasto aqui". Sua recente condenação em tribunal poderá ser contestada desde que peça ajuda neste sítio...". Você tem direito a uma parte de uma doação que foi deixada por....". "Há fotos a circular na internet onde você aparece em situação que pode gerar escândalo. Se quiser que as fotos desapareçam faça uma transferência de 10 mil euros....". Este tipo de mensagens é recorrente na minha caixa de correio, em Spam, e há outras ainda mais bem elaboradas que apago na hora e em catadupa.

Resolvi falar do assunto porque voltou a aparecer nos reels do facebook uma entrevista de Daniel Oliveira a Teresa Guilherme com texto falso, à medida dos interesses habilidosos de um sítio de jogos de azar. 

Decerto que para a maioria dos leitores desta coluna o correio enganoso e os textos na internet, a vender gato por lebre, são de fácil identificação. Mas num país em que as pessoas ficam perturbadas e doentes com as várias horas de imagens de guerra na televisão, de violência, de fogos e de outros desastres naturais, como é que conseguem discernimento para responderem com confiança e sem alarmes a estas ameaças que chegam pela internet?

Portugal tem uma Entidade Reguladora para a Comunicação Social que não funciona, como aliás é norma na grande maioria das entidades reguladoras, ainda mais importantes para o bom funcionamento da democracia. Neste caso estamos entregues a um organismo cheio de problemas com falta de recursos humanos, sem uma dinâmica de trabalho credível e de acordo com a força do sector da comunicação social, nomeadamente ao nível das televisões e dos sítios que controlam as redes sociais e fazem valer o seu poder.

Lisboa é a capital europeia onde estão a ser construídos mais novos hotéis. Esta semana a câmara de Lisboa pôs a circular informação que o turismo precisa de ser descentralizado dentro da cidade. Nada mais verdadeiro para quem conhece a realidade. Mas isto não é de loucos? A câmara de Lisboa vai limitar a circulação dos turistas e escolher a hora em que cada um quer subir e descer o Chiado e as ruas da freguesia de Santa Maria Maior. Enquanto isso os Tuk Tuk são às centenas mal estacionados, as trotinetas circulam sem respeito pela segurança dos peões, mais os milhares de bicicletas dos entregadores de comida que, na sua grande maioria, não respeitam as regras de circulação.

Os condutores de TVDE trouxeram uma nova realidade para quem circula em Lisboa. Param onde o cliente os espera, ou onde o cliente os manda parar. Regra geral é no meio da estrada, na curva, em cima das passadeiras, quase sem excepção. E os que conduzem pela cidade à procura de clientes são arrogantes, usam a buzina por tudo e por nada; Lisboa regrediu um século ao nível do civismo e do respeito.

Não falo aqui de Lisboa por acaso. Ricardo Gonçalves recordou recentemente que o Governo não investe na região ribatejana há mais de 30 anos. A Ponte Salgueiro Maia foi o último investimento de respeito para substituir a ponte D. Luís inaugurada em 1881. A região ribatejana ainda apanha a área metropolitana de Lisboa. Devido à A1 estamos tão próximos em tempo de viagem de Lisboa como Braga do Porto. Mas até Vila Franca de Xira é um concelho enjeitado pelas promessas do Governo; veja-se o que se passa com o edifício do Tribunal e com as escolas. Outro caso criminoso: a Chamusca deu o ouro ao bandido, ou seja, deu o terreno para os resíduos perigosos que ninguém quis dar. Mais de 25 anos depois da inauguração do Parque do Relvão o desenvolvimento de uma boa parte do território da região centro, no século XXI da graça de Deus, é sustentado por uma ponte de ferro inaugurada em 1909 graças a um benemérito chamado João Joaquim Isidro dos Reis. Enquanto em Lisboa os hotéis continuam a crescer, as esplanadas dos restaurantes tomaram conta da Rua Augusta e ruas adjacentes, a partir de Vila Franca de Xira até Coimbra a região vive dos Templários e de Fátima, a nossa Senhora dos pobres. E o mais curioso é que os nossos líderes políticos regionais enfiam a viola no saco; os do PS contentam-se em fazerem parte da corte e do negócio e os do PSD em serem parte do negócio e da corte. Não meto todos no mesmo saco, mas as excepções são tão poucas que hoje julgo a parte pelo todo sem sentir que estou a ser injusto. JAE

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Os mestres da fraude e sangue e dinheiro

A França é um dos países mais democráticos do mundo onde a cidadania dá cartas. Nem por isso a corrupção deixa de ser um flagelo tal como em Portugal. A diferença é que uma década depois dos acontecimentos já podemos escrutinar os ladrões em acção, em filmes e séries bem produzidas.

França é o país mais democrático do mundo, ou um dos mais democráticos, onde se geraram as revoltas sociais que nas últimas décadas têm feito girar, com mais velocidade, a terra à volta da lua. A mais marcante dos nossos tempos foi o Maio de 1968, e a última foi a dos coletes amarelos, coisas diferentes mas que mostram a dinâmica da sociedade francesa. Nem por isso há muito menos corrupção que noutros países desenvolvidos. O caso do imposto do carbono é um bom exemplo que espelha a fragilidade dos governos ditos de esquerda, socialistas ou social-democratas. A fraude terá custado aos cofres franceses mais de 5 mil milhões de euros, e tudo se deveu ao facilitismo que os políticos franceses proporcionaram aos mestres da fraude. Fraudes e corrupção também é com Portugal. Mas há uma diferença significativa. A do carbono foi em 2009 e já deu pelos menos um filme em 2021, e uma série com 12 episódios disponíveis na Filmin que mostram bem como o poder político tem pés de barro. Também já foram julgados e presos alguns dos empresários corruptos, mas muitos fugiram do país e jamais pagarão pelos seus crimes.

Em Portugal há muitos livros e reportagens publicadas sobre a queda do BES, a falência do Banif, a Operação Marquês, os favores da Banca a empresários manhosos, enfim, só para ficarmos com os números mais recentes da miséria humana, desde 2017 até Maio de 2013 havia cerca de 190 políticos portugueses a braços com a Justiça.

A diferença entre França e Portugal é a forma como a justiça funciona, lá é muito mais célere, assim como é diferente para muito melhor a atenção que os produtores de cinema e televisão dão aos mestres da fraude, os mestres que acham que o Estado português não tem salvação. O caso recente do dinheiro encontrado na estante do chefe de gabinete de António Costa é um bom exemplo. A classe política portuguesa está toda em causa quando foge deste debate e não promove o funcionamento da Justiça para que saibamos, rapidamente, como é que se movimenta tanto dinheiro vivo nas barbas de quem manda nisto tudo.

Cada partido da oposição, com a ajuda das associações de cidadãos, devia falar e discutir, dia sim, dia sim, como o Estado compromete o funcionamento da Justiça ao permitir, em interesse próprio, que os tribunais administrativos demorem mais de duas décadas a resolverem a maioria dos processos, onde o próprio Estado tem interesses. A grande maioria destes processos acabam só depois das pessoas morrerem, ou desistirem pelo cansaço, pela descrença no Sistema, por falta de dinheiro para pagarem aos advogados, etc, etc.

É ridículo votar numa classe política que não se deixa escrutinar quando estão todos a defender os milhões de financiamento às suas organizações, quando todos fazem tábua rasa de questões ligadas à reforma das instituições mais importantes para a democracia. JAE.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Os rios também correm para a morte

Durante três horas andei cerca de três quilómetros ao lado de um aqueduto secular que em tempos levava a água da nascente do Alviela para matar a sede à população de Lisboa; e vi à luz do luar como no rio Alviela corre uma água cristalina, embora seja fácil concluir que os rios também correm para a morte.

Sou jornalista mas não sou parvo. Por isso procuro, em função da minha vontade de viver mais uns anos com alguma qualidade de vida, empenhar-me no meu trabalho sem fazer futurologia. Em vez de ficar a ler todos os jornais e revistas e textos literários e de viagens que me chegam de todos os endereços do mundo, vou caminhar, nadar, andar de bicicleta ou de mota, ver cinema e teatro, visitar livrarias como se visita, ou visitava, a casa da avó.

Esta semana fui caminhar de noite por caminhos do Alviela à procura de ver a chuva de estrelas, mas de verdade só vi mesmo as estrelas no céu e viajei enquanto durou a caminhada e a meia hora em que estive deitado na terra a admirar a beleza do firmamento. Como para ver não é preciso estar de boca fechada, troquei conversa com pessoas que vivem na minha aldeia global e fiquei a saber que Casével, no concelho de Santarém, deve ser a única aldeia no mundo que antes de ter um projecto para a instalação de saneamento básico tem um projecto para um aeroporto internacional; e que ali bem pertinho as casas de São Vicente do Paul não têm número de porta mas os carteiros conseguem distribuir, sem problemas, o correio entre uma população que deve chegar às mil pessoas. 

Durante três horas andei cerca de três quilómetros ao lado de um aqueduto secular que em tempos levava a água da nascente do Alviela para matar a sede à população de Lisboa; e vi à luz do luar como no rio Alviela corre uma água cristalina até chegar ao território onde as fábricas e as indústrias usam e abusam das virtudes da mãe natureza. Caso para dizer que os rios também correm para a morte.

Os Olhos de D`água na Louriceira, Alcanena, são um pequeno paraíso para quem sabe, da experiência da vida vivida, notar as diferenças entre viver nas cidades atulhadas de carros e de poluição, e num território onde partilhamos os caminhos com os pastores e os rebanhos, podemos dormir ou simplesmente ficar a noite ao relento, deixar o carro à porta de casa, parar no meio da rua para ver o nascer ou o pôr do sol, mas também a chuva de estrelas mesmo que só vejamos as luzes dos aviões que tomaram conta das estradas do céu.

Escrever é como correr. Não é como mijar.

O verão é sempre boa altura para recomendar livros novos. Miguel Esteves Cardoso acabou de lançar um livro para quem gosta de escrever e não sabe como alimentar o fogo da escrita. "Como Escrever" é uma viagem com o autor como nunca foi possível nos seus livros anteriores, nem tão pouco nas suas crónicas diárias no jornal Público. O livro não é recomendado para quem não acha, como Miguel Esteves Cardoso, que "escrever é o nosso melhor meio de expressão". Também não se recomenda a pessoas que não entendem porque é que "escrever é um falar melhorado. Um falar em que temos tempo para pensar. E tempo para procurar as palavras apropriadas. E tempo para organizá-las de forma a dizer melhor o que têm para dizer". "Escrever é indiscutivelmente a melhor forma de expressão. E a mais respeitada e, logo, a que mais resultados obtém". "Corte o mal pela raíz: aprenda a escrever". Ora aqui está um livro surpreendente, escrito por alguém que é, talvez,  o melhor de todos nós a escrever, embora seja também aquele que mais deve conhecer os defeitos de quem faz tudo para alimentar a preguiça de escrever. "Escrever é como correr. Não é como mijar. E, no entanto, os principiantes escrevem como mijam: quando lhes apetece. Esperam que a vontade de escrever se torne avassaladora e depois escrevem, pressionados pela pressa de desabafar. Confundem a inspiração com a pressão da bexiga". Um livro imperdível para quem gosta do MEC e não quer morrer estúpido. JAE .

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

As curandeiras, bruxas e aprendizes de feiticeiros

O mal de inveja é um dos trabalhos mais solicitados nas consultas das bruxas; elas têm que acudir a mulheres que são traídas, cornudos mansos, gente endividada e clientes que sofrem de mau olhado.

Confesso que tenho simpatia pelas bruxas e curandeiras embora por motivos diferentes. Mas há um que é comum às duas artes que faz com que tenha interesse e goste de ir sabendo novas e mandadas do demónio: falo do jeito que bruxas e curandeiras têm para adivinhar que parte do nosso corpo é mais doente que fraco é o nosso cérebro. Jamais as bruxas governavam a vida se os nossos cérebros não estivessem, em muitos casos, em estágio na idade média. São, no entanto, as doenças mais modernas, que nos trazem a morte lenta, que alimentam a arte do demónio que bruxas e curandeiras tão bem sabem desempenhar.

O mal de inveja é um dos trabalhos mais solicitados nas consultas das bruxas; elas têm que acudir a mulheres que são traídas, cornudos mansos, gente endividada, clientes que sofrem de mau olhado, tudo problemas reais que as personalidades fracas, que não conseguem olhar o sol de frente, acham que conseguem resolver consultando as feiticeiras que, na maioria dos casos, só sabem contar dinheiro. Também há casos irreversíveis de pessoas que já nasceram com a massa cerebral grossa demais, e em vez de irem nadar no Tejo ou correr para o meio dos sobreiros para amaciarem a coisa, resolvem brigar com os pais, filhos, amigos, namorados, companheiros de trabalho, vizinhos, etc etc, e assim envenenarem a sua vida e a dos que lhe estão próximos. Nada do que escrevi até agora justifica o que deu origem a esta crónica que é o quanto gosto das bruxas. A minha última experiência foi numa feira medieval a ver uma bruxa transmitir oralmente o que designava cada runa que os clientes tiravam de um caldeirão. Dizem que a prática tem mais de três mil anos e foi retomada na idade média. Durante três horas em que vadiei por uma feira cujo recinto tinha mais de vinte mil pessoas, a fila para a Curandeira tinha sempre entre três a quatro dezenas de pessoas. Ouvi algumas gargalhadas sonoras e vi alguns rostos incrédulos. Mas tudo aquilo me fascinou porque é um artista a brincar com as palavras e com a fé dos outros, um artista devidamente caracterizado num palco a fazer jus a uma frase de Fernando Pessoa que bem pode ser adaptada a este caso: a bruxaria existe porque a vida não chega.

Para não pensarem que falo de cor... também fui à bruxa duas vezes; daquelas visitas a sério em que temos que temer pela nossa saúde mental, ou então a consulta não merece o preço que pagamos. Os resultados foram diferentes, mas podem ser explicados numa frase curta; se a bruxa te convenceu... tens que lá voltar até ficares curado do teu fraco entendimento da vida.

Conheço muita gente que atribui os seus azares às pragas, ao mau olhado, às armadilhas da inveja, aos agouros, e não posso terminar esta crónica sem dizer que ouço estas queixas desde a minha infância, na altura às mulheres que ripavam camisas de milho no palheiro do José Pedro Guilherme, na Chamusca, e algumas choravam porque na noite anterior o diabo do marido tinha levado para casa o demónio em forma de barril de vinho. Também já me rogaram pragas, enviaram cartas anónimas com pozinhos de perlimpimpim, trouxeram recados de consultas partilhadas levando o meu nome e data de nascimento; já me leram a mão e deitaram as cartas e, na maioria dos casos, quase que me deixei apaixonar pelo prazer de falarem de mim sem saberem quem eu era e sou.

Fica aqui um texto que guardo no computador que roubei das redes sociais a uma bruxa que vive como uma bruxa e que conheci por ser gerente de um alojamento local. E é o texto que me faz gostar de bruxas, coisa que dificilmente conseguiria explicar por palavras minhas.


ENCONTRA UMA BRUXA. Bruxas são mulheres sensuais, que não têm medo de demonstrar os seus sentimentos, não seguram a sua gargalhada, nem as suas lágrimas. Sentem 100% tudo ao seu redor, por isso são confusas e consideradas muitas vezes doidinhas. Elas demonstram no seu cabelo a sua liberdade, expressam a sua magia nos seus colares de pedras e cristais, amuletos especiais e tatuagens.

Podes encontrar uma Bruxa no supermercado, no corredor dos temperos, experimentando ervas soltas, mas também no corredor dos chocolates. Podes encontrar uma Bruxa na rua, distraída com o céu, a tirar uma foto do Sol, a tocar numa árvore com gentileza, conversando com um cão ou gato e até simplesmente respirando fundo. Podes encontrar uma Bruxa no shopping, toda arrumada e de preto, com os seus acessórios diferentes, com a sua cara séria, mas que sorri com facilidade. Distraída na loja do ocultismo ou mesmo na livraria.

Podes vê-la quando estás com amigos, em alguma festa, na escola quando vais buscar os teus filhos, e até mesmo no jardim quando vais passear o teu cão. Podem vestir farda e até terem um emprego super normal, mas existe algo nos olhos delas que as denunciam. A maneira como falam, como olham, como mexem no cabelo e até mesmo como sorriem. Encontra uma bruxa e encontrarás uma amiga. É muito fácil reconhecê-las, andam muitas por aí, disso podes ter a certeza. JAE.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Uma crónica para comunistas e activistas ambientais de Vila Franca de Xira que remete para um artigo de opinião

Macacos me mordam se estou só a escrever para comunistas de cabeça empedernida e activistas que são contra as touradas mas não sabem nem querem saber que em Portugal há um milhão de cães na rua abandonados pelos donos. 


A almofada da cama e a areia da praia são os melhores suportes para pousar a cabeça e ler um livro. Roubando tempo ao sono diário e mergulhos no mar, já que tenho o privilégio de ter cama e praia todos os dias do ano, ou quase, leio e percebo cada vez mais que há coisas na vida que só entram pelos olhos dentro quando se atinge uma certa idade.

Com a autoridade de leitor que pode adiar a leitura de um livro até ao último dia de vida, só agora estou a ler Vale Abraão, um dos melhores livros de Agustina Bessa-Luís que já deu filme, realizado por Manoel de Oliveira, que é bem menos interessante que o livro, como é normalíssimo nas adaptações para cinema de grandes e bons textos literários. Estou rendido e só posso comparar a emoção da leitura ao entusiasmo que sentia ao ouvir o meu avô Manuel Emídio a contar-me as histórias do cancioneiro popular. Hoje sei que esta energia que fica da leitura de um bom livro já me serve para pouca coisa que não seja o deleite da leitura. Dantes brigava com os autores e as personagens dos livros, apontava tudo o que me interessava num caderno, depois de sublinhar os livros como ainda faço hoje de forma exagerada, ou talvez não; de verdade acho que cheguei a um estágio da vida em que me sirvo da leitura dos livros como os ricos se servem do dinheiro: basta-me acumular conhecimento, como os ricos acumulam fortuna, que o resto vai-se resolvendo com o deve e haver do dia-a-dia.

O MIRANTE publica todos os dias matéria editorial que daria pano para mangas quando escrevo para este espaço. Embora a opinião seja importante num jornal, O MIRANTE é mais um jornal de grande informação que procura na notícia, na reportagem e na entrevista cumprir a sua função de serviço público. Mas esta semana não vou deixar passar o artigo de opinião de José Furtado, nesta edição, sobre o futuro aeroporto e a desgraça que vai ser para muitos munícipes do concelho de Vila Franca de Xira, e para o próprio concelho, a quadruplicação da linha ferroviária. Só quem se fingir morto pode ficar quieto e calado ao ler o artigo de José Furtado que bate numa tecla já gasta, mas nem por isso deixa de mostrar à sociedade que a solução de Alverca não pode ser ignorada e desprezada, tendo em conta o desastre que vai ser a quadruplicação da linha e a incógnita do futuro aeroporto de Lisboa em termos de financiamento e de crescimento do fluxo turístico que, a crescer desmesuradamente como todos os agentes turísticos querem, fará Lisboa rebentar pelas costuras.

Desde que o assunto entrou na agenda que O MIRANTE dá espaço aos projectos que estiveram a ser discutidos e analisados, e até a alguns como o de Alverca que ficaram pelo caminho. Por isso mesmo, ao publicarmos o artigo desta semana, gostava de aproveitar para apelar aos autarcas em geral, e aos cidadãos organizados em particular, que não virem a cara para o lado quando é preciso arrepiar caminho. Macacos me mordam se estou só a falar para comunistas de cabeça empedernida e activistas que são contra as touradas mas não sabem nem querem saber que em Portugal há um milhão de cães na rua abandonados pelos donos. JAE.