quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Viajar com José Saramago

“O esquecimento é a maior das misérias”. Acabei de folhear, na praia, três jornais do dia. No meio de centenas de palavras e dezenas de títulos retive esta citação de um jovem poeta que viveu em Paris nos últimos dois anos a fazer um doutoramento em poesia. É notícia do jornal no meio de muitos outros assuntos desinteressantes.
Acabei de viajar dez horas de avião com o Memorial do Convento debaixo do nariz. Está confirmado: Este é o melhor livro de Saramago na minha fraca opinião. Saramago já tinha escrito este livro quando convivi com ele em várias iniciativas e mantive sempre uma certa reserva em relação à força da sua prosa. Se o maior cego é aquele que não quer ver então eu sou definitivamente um dos maiores cegos do mundo.
Nem o Levantado do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis ou Todos os Nomes me abriram tanto os olhos em relação ao autor quanto As Pequenas Memórias. Mesmo assim não tive alento, na altura, para ler Memorial do Convento, e acho que me deixei cegar pela leitura dos Cadernos de Lanzarote; e sentindo-me tão próximo do escritor, por ter o privilégio de eventualmente ter dormido a sesta na infância debaixo dos mesmos salgueiros da maracha do Tejo, terei sido tão arrogante com ele em pensamento como foram os Souzas Laras.
Na impossibilidade de escrever na minha pele os sentimentos de gratidão para com este livro e seu autor, gastei a carga de uma caneta a assinalar as páginas do livro. Estou a tomar notas para esta crónica, com o livro entre pernas, no meio de um mar de gente numa das praias mais concorridas do mundo, e não me sai da cabeça o episódio de uma noite de convívio na esplanada das piscinas de Golegã, em que Saramago, com seu rosto austero e voz autoritária, mandou calar um conterrâneo que só fazia perguntas estúpidas e estragava aquelas duas horas de regresso às origens. Nessa altura, percebo agora, já o escritor tinha criado estas duas personagens extraordinárias, (Blimunda e Baltazar) que estão para este livro como o coco gelado que bebo agora está para a minha sede debaixo de uma temperatura de 30cº.
Não sei nada de arqueologia mas sinto a alegria de um arqueólogo que de descoberta em descoberta vai confirmando que não há segredos debaixo da terra que possam fugir ao conhecimento do homem.
Este encontro tardio com as personagens de Memorial do Convento, e com a arte maior de José Saramago, é também uma afirmação da minha pobreza como leitor sabendo, no entanto, que sou dono de muitas outras misérias.
Enquanto bebo a água de coco, olho por cima dos óculos as bundas das mulheres que passam à minha frente; entre um mergulho no mar e a actualização dos meus sonhos para mais logo à noite, deixo-me ir com as gaivotas e com o fumo do meu cachimbo.
No Memorial do Convento está escrito que “um homem precisa de fazer a sua provisão de sonhos. Se é mais rico ou mais pobre não é coisa que se pergunte pois todo o homem sabe o que tem mas não sabe o que isso vale”.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O medo de viver

Há meia dúzia de semanas, no caminho de casa para o trabalho, vi um objecto estranho no meio da estrada que me despertou a atenção. Parei o carro e fui ver. Olhei à minha volta e não vi pessoas, nem valados, nem árvores ou arbustos onde alguém pudesse estar escondido a vigiar-me. Aproximei-me do objecto e apanhei do chão uma arma de caça, aberta, com dois cartuxos vermelhos à vista. Demorei alguns segundos a tomar uma decisão. Levo ou deixo ficar. Optei por meter a arma na caixa do carro e segui caminho. Cheguei ao meu posto de trabalho e envolvi-me em tantos assuntos que esqueci a arma. A meio da tarde fez-se luz. Partilhei o achado com um colega de trabalho que é caçador. Ouvi o que mais temia. Cuidado com armas de caça Joaquim Emídio. Pode ser uma armadilha. O melhor é desfazer-se dela e esquecer o assunto. Ouvi e sosseguei. Ainda faltavam algumas horas para o fim do dia.
Quando voltei ao carro para fazer o caminho de regresso a casa já tinha tomado uma decisão. Vou deixá-la algures no mesmo lugar onde a encontrei. Enquanto fazia o caminho mudei de ideias. Vou ao posto da GNR mais próximo e entrego a arma. Quem a perdeu vai ouvir das boas e aprender a lição. Não se perde assim uma arma como quem perde o juízo, pensei. Afastei as más lembranças que tenho de caçadores que atiram a tudo o que mexe à sua volta, sem respeito pelos animais e pelas pessoas que circulam nas propriedades, e resolvi parar o carro apenas quando chegasse ao destino.
Entrei no posto e dirigi-me ao agente de serviço. Contei o que se tinha passado e pedi-lhe para ser ele a vir buscar a arma ao porta bagagens. Depois de uma identificação que demorou cinco minutos em mais cinco cheguei a casa.
No dia seguinte recebi um recado a meio da tarde. Tinha ligado um senhor que se identificou como o dono da caçadeira. E agradeceu tanto ao telefone que se largou a chorar. Contou que não tinha dormido nada na noite anterior e que só imaginava a arma nas mãos de alguém que assaltasse ou matasse. Voltou a ligar no dia seguinte e falou comigo. A conversa repetiu-se. Ouvi contar o seu drama com atenção. Comovi-me ao ouvi-lo dizer que era um caçador apaixonado, que fazia da caça um desporto. Por fim lá contou como perdeu a arma e até quase que acertou no metro da estrada onde eu a encontrei.
Convidou-me para almoçar com amigos caçadores. Disse-me que queria dar-me a conhecer para falar da minha atitude. Não sei nada sobre caça, nem sobre épocas de caça, e só me lembro de matar pardais à pedrada quando era criança. Mas imagino que o convite deve estar a chegar. Precisava de contar esta história para desabafar. A arma só não está no fundo do Tejo porque ao longo dos anos tenho vindo a perder o medo de viver. Não sei se é bom se é mau. Mas esta é a verdade. Nem o agente da GNR me assustou quando disse que a arma podia ter sido usada num assalto que, agora, era uma questão de eu esperar para saber. O resto que ouvi não conto porque já seria conversa a mais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Nascer no Ribatejo

As cheias do Tejo estão aí outra vez para nos moerem o juízo e para prejudicarem a vida daqueles que vivem da terra e precisam de preparar as terras para as próximas sementeiras. Por outro lado esta água é uma bênção; alimenta os aquíferos, limpa os valados e as marachas, aduba a terra como nenhum outro fertilizante comprado nas lojas da especialidade.
De verão quando vou ao Tejo mergulhar, ou de inverno quando me aproximo para ouvir o canto das águas a dialogarem com as margens, o rio é sempre o lugar que me identifica ao longo de todos os anos de vida.
Desde que me conheço como gente que me identifico pelo nome e pelo lugar onde nasci, que fica entre a charneca e a lezíria, com o Tejo pelo meio e um aglomerado de casas a colorirem a paisagem.
Quem nunca viu tirar a cortiça de um sobreiro, ou nunca observou um grupo de homens ou mulheres a podarem uma vinha, não pode olhar para a rolha de uma garrafa ou provar do seu vinho como olham, e provam, aqueles que tiveram a sorte de nascer no Ribatejo.
Há quem diga que o pastor é eterno porque tem o espírito preso à terra e tudo o que aprende é renunciando. Por estas alturas das cheias do Tejo, com a memória ainda fresca dos mergulhos no rio durante o verão, sinto a magnificência de quem renuncia de uma forma continua e inexorável. E faço-me ladrão de sentimentos para me sentir também magnifico a oferecer a mim próprio a derrota do espírito.
Há meses ofereci a um jovem escritor “Cartas a um jovem poeta” de Rilke. Algum tempo depois um outro jovem escritor aconselhou-me a leitura do livro. Sinto-me a ir com as cheias pelo rio abaixo e também me sinto a viver a alegria de construir jangadas como nos tempos da infância. Nunca soube usar tinta e pincel para retratar o meu mundo imaginário numa tela. Sempre senti, no entanto, em todas as idades, que tinha uma trincha nas pestanas para traçar riscos ilimitados nos meus horizontes.
Há hora a que me lêem, se forem horas de trabalho, há milhões de burocratas, políticos, lobistas, gente macabra que vigia os nossos passos e as nossas carteiras, a rirem-se da poesia das nossas palavras. Nós, os sonhadores, sabemos que por cada descoberta da cura de uma doença há outras tantas que vão aparecendo das quais ninguém fala para nos ajudarem a aguentar o caminho até à recta final.
Os dois livros destas últimas duas semanas são o relato de duas viagens à Grécia contadas com as emoções de quem visita os deuses nos altares: O Colosso de Maroussi de Henri Miller e Um Adeus aos Deuses de Ruben A. Há muito tempo que não era tão feliz a descobrir que “a rendição para ser perfeita tem que ser absoluta”.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Generosidades

Não confio em pessoas generosas, nem em gente com muitos atributos; nem em pessoas que falam muito do que fazem, do que valem e do que têm. Desconfio dos admiráveis contos de fadas com que me enchem os ouvidos.
Acabei o ano a reconhecer que a escrita é um ofício dos diabos; que vale mais morrer de fome que escrever por obrigação. Mas cá estou no meu posto a escrever os meus textos e a editar os textos dos outros como sempre fiz.
Para não variar comecei o ano a escrever. Três cartas para outros  tantos amigos com quem estava em falta. A um deles chamei “inteligente” numa das minhas crónicas mais recentes. Só mais tarde, ao reler-me, percebi que não se diz de um homem de oitenta anos cheios de energia e vida vivida que ele é inteligente. Era sábio que eu queria dizer/escrever. Mas as palavras são traiçoeiras. Claro que não recebi recados. Os sábios não falam; ouvem e ajuízam. Tenho algum receio de ter ficado mal na fotografia. Mas agora que o mal está feito, e a escrita pode matar, segundo aprendi nos livros, olho os papéis que restam em cima da minha secretária do ano velho e encontro uma carta que me pode ajudar a salvar da morte certa.
Na altura não contei mas o amigo a quem chamei inteligente facultou-me uma carta que recebeu da Universidade Nova de Lisboa, do Departamento de Anatomia, a informar o seguinte: Temos a honra de acusar que recebemos a sua carta com declaração de doação de cadáver, devidamente assinada, e que ficará arquivada neste Departamento ( : ). Aproveito para expressar os nossos sentimentos mais sinceros de respeito e agradecimento pelo gesto altruísta de Vª. Exª. E lá vem a assinatura do director do Departamento de Anatomia da Universidade, que tem sempre falta de cadáveres humanos para os estudantes de medicina e os médicos estudarem as novas e velhas doenças.
Na altura sentia que estava também disposto a este gesto de generosidade. A verdade é que o tempo passou e faltou-me coragem para escrever a carta a oferecer o meu futuro cadáver. Pergunto-me se sou generoso, e acho que não, que não sou assim tanto como pensava. Mas se ando a pedir para ser cremado depois de morto que diferença faz oferecer o corpo para estudo como fez este meu amigo ? Passaram quatro dias depois do Ano Novo e do reencontro com a carta que devia servir-me de lembrança para o tal acto de generosidade. Desta é que vai, penso. Será esta semana que vou escrever a carta de doação, falo alto.
Passei do ano velho para o ano novo a magicar na possibilidade de acabar os meus dias num país tropical, vivendo numa cabana à beira da praia, fazendo vida de surfista como alguns amigos que conheço que nunca fizeram a ponta de um corno nesta vida. Se vou viver para um país quente não estou cá para que se possa cumprir o meu desejo de servir, depois de morto, para matéria de estudo. Mas isto faz-se? Isto são lá coisas que se pensem? E é legítimo falar disto numa crónica mostrando com todas as letras que sou muito menos generoso do que faço parecer? Parece que sim. Devia ter mandado a crónica para os anjinhos na noite em que a escrevi. Passados três dias ainda resistia no computador. E há hora do fecho da edição não havia mais nada escrito para preencher este espaço. E é assim que se conhecem os fracos; os que acham que as palavras matam mas passam a vida a sobreviver das palavras.