quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Generosidades

Não confio em pessoas generosas, nem em gente com muitos atributos; nem em pessoas que falam muito do que fazem, do que valem e do que têm. Desconfio dos admiráveis contos de fadas com que me enchem os ouvidos.
Acabei o ano a reconhecer que a escrita é um ofício dos diabos; que vale mais morrer de fome que escrever por obrigação. Mas cá estou no meu posto a escrever os meus textos e a editar os textos dos outros como sempre fiz.
Para não variar comecei o ano a escrever. Três cartas para outros  tantos amigos com quem estava em falta. A um deles chamei “inteligente” numa das minhas crónicas mais recentes. Só mais tarde, ao reler-me, percebi que não se diz de um homem de oitenta anos cheios de energia e vida vivida que ele é inteligente. Era sábio que eu queria dizer/escrever. Mas as palavras são traiçoeiras. Claro que não recebi recados. Os sábios não falam; ouvem e ajuízam. Tenho algum receio de ter ficado mal na fotografia. Mas agora que o mal está feito, e a escrita pode matar, segundo aprendi nos livros, olho os papéis que restam em cima da minha secretária do ano velho e encontro uma carta que me pode ajudar a salvar da morte certa.
Na altura não contei mas o amigo a quem chamei inteligente facultou-me uma carta que recebeu da Universidade Nova de Lisboa, do Departamento de Anatomia, a informar o seguinte: Temos a honra de acusar que recebemos a sua carta com declaração de doação de cadáver, devidamente assinada, e que ficará arquivada neste Departamento ( : ). Aproveito para expressar os nossos sentimentos mais sinceros de respeito e agradecimento pelo gesto altruísta de Vª. Exª. E lá vem a assinatura do director do Departamento de Anatomia da Universidade, que tem sempre falta de cadáveres humanos para os estudantes de medicina e os médicos estudarem as novas e velhas doenças.
Na altura sentia que estava também disposto a este gesto de generosidade. A verdade é que o tempo passou e faltou-me coragem para escrever a carta a oferecer o meu futuro cadáver. Pergunto-me se sou generoso, e acho que não, que não sou assim tanto como pensava. Mas se ando a pedir para ser cremado depois de morto que diferença faz oferecer o corpo para estudo como fez este meu amigo ? Passaram quatro dias depois do Ano Novo e do reencontro com a carta que devia servir-me de lembrança para o tal acto de generosidade. Desta é que vai, penso. Será esta semana que vou escrever a carta de doação, falo alto.
Passei do ano velho para o ano novo a magicar na possibilidade de acabar os meus dias num país tropical, vivendo numa cabana à beira da praia, fazendo vida de surfista como alguns amigos que conheço que nunca fizeram a ponta de um corno nesta vida. Se vou viver para um país quente não estou cá para que se possa cumprir o meu desejo de servir, depois de morto, para matéria de estudo. Mas isto faz-se? Isto são lá coisas que se pensem? E é legítimo falar disto numa crónica mostrando com todas as letras que sou muito menos generoso do que faço parecer? Parece que sim. Devia ter mandado a crónica para os anjinhos na noite em que a escrevi. Passados três dias ainda resistia no computador. E há hora do fecho da edição não havia mais nada escrito para preencher este espaço. E é assim que se conhecem os fracos; os que acham que as palavras matam mas passam a vida a sobreviver das palavras.

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