quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Ano novo vida nova


Os peixes vivem no mar como os homens na terra; os grandes comem os pequenos. Citação de Shakespeare.

Um amigo de longa data recordou-me recentemente o privilégio de termos um amigo comum, também de longa data, que conquistou recentemente o fundo dos mares. Quem diria, Joaquim Emídio, que íamos ter um amigo comum com tanto poder sob as estrelas, desabafou, enquanto partilhávamos rente à noite os restos de um dia de trabalho de que só tinham ficado as espinhas. Recorro às notas do meu caderno para recordar este episódio. E concluo: quanto mais alto sobem os nossos amigos mais distantes deles devemos ficar para que nunca nos falte o chão nem os olhos vejam para lá do horizonte.

O lançamento de um livro de Alves Redol com a chancela de O MIRANTE proporcionou um encontro amistoso com a presidente da Câmara de Vila Franca de Xira (Maria da Luz Rosinha) no Largo do Seminário, em Santarém, ao cair da noite, quando a cidade fica mais triste que um altar de uma igreja. “Foi aqui que ouvi Sá Carneiro pela primeira vez e lembro-me de olhar para ele e ver um homem muito pequeno, com umas botas grandes demais para as suas pernas e pés. Quando começou a falar conquistou-me de tal forma que o reconheci muito maior do que era”.

“Há uma velha, sagrada, e inquebrantável tradição em Inglaterra de que os noivos devem escrever-se todos os dias, algumas linhas que sejam, devendo mesmo, na ausência absoluta de sentimentos a comunicar, copiar o jornal”. Excerto de uma carta de Eça de Queirós para a noiva Emília em 7/10/1885.

Melhor do que deixar para trás os apontamentos de um caderno diário, escrito ao longo do ano, é suar a camisola a jogar ping-pong; nadar; jogar snooker; ler um livro ou ver um filme com os filhos por perto. O Natal é só uma boa altura para os exercícios do espírito.

Se não pudesse voltar a escrever nesta coluna escolhia para me despedir dos leitores esta frase roubada ao livro “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, que reli este ano: A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem, sem honras, mortos que eles deixaram de amar. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento”.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Horas extraordinárias na saúde


“Sindicatos médicos ameaçam com greve às horas extraordinárias”. A notícia parece de outro mundo mas não é. Os médicos são a única classe profissional em Portugal que está protegida por um escudo invisível. Só é médico quem as organizações profissionais querem. E o acesso à profissão é controlado como se controlam os membros admitidos nas sociedades secretas, como é o caso da Maçonaria e da Opus Dei.
Numa época em que o mercado de trabalho está em mudança, em que nada voltará a ser como dantes, seria lógico ver o Governo português a abrir as universidades aos jovens que aspiram chegar ao curso de medicina. Bem ao contrário os médicos são uma classe profissional à parte e ameaçam parar as urgências iniciando uma greve às horas extraordinárias.
Para as horas extra, no trabalho dos médicos, servirem para convocar uma greve, que pode paralisar o sistema, imagine-se o que elas representam no horário laboral destes profissionais da saúde. E o Ministro da tutela vai continuar a assobiar para o lado no que respeita ao acesso de mais estudantes aos cursos de medicina. Pois claro! Quem manda são os interesses instalados.

Na inauguração do Hospital Privado de Santarém conversei com um médico amigo que me contou esta história extraordinária. Nos últimos dias esteve no concelho de Coruche a realizar consultas e uma das doentes desfez-se de tal forma em agradecimentos e gratidões que o meu amigo perguntou-lhe porque estava tão comovida e agradecida uma vez que a consulta até tinha corrido bem e não havia muito para agradecer. A resposta chegou de forma surpreendente: o senhor doutor foi tão bom! nem precisou de ralhar e de ofender.
É extraordinário como a crise de profissionais da saúde está a afectar a relação entre médico e paciente principalmente nas aldeias mais distantes e junto das classes mais pobres e desprotegidas. Os casos em que os médicos são agressivos para com os seus doentes, comportando-se como azémolas, são a prova de que é preciso mudar a política de saúde e acabar com a falta de profissionais neste sector, tão importante para a nossa qualidade de vida e para a economia do país.
No dia em que ouvi contar esta história passada em Coruche soube também que um médico amigo dos tempos de escola mandou estudar para uma faculdade da República Checa o seu filho que não conseguiu entrar no curso de medicina em Portugal por uma diferença de duas décimas de valor nas notas do final do ano. É gente de bem e com boa posição social e financeira. Terão um filho médico como realmente desejam. E não haverá interesses instalados que os impeçam de investirem numa profissão para o qual o filho também se sente vocacionado.
Estamos numa grande encruzilhada. Mas nada disto se justifica tendo em conta que acabamos de ter como Primeiro-ministro um engenheiro com diploma passado a um domingo; que deixou correr rios de tinta sobre a sua vida de trabalhador estudante e nunca assumiu as facilidades do sistema que ele próprio alimentou como governante.
É muita gente hipócrita para tão poucos metros quadrados de território, diria o meu avô se ainda fosse vivo e tivesse oportunidade de conhecer estes manhosos que nos governam a saúde.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Uma estrela afiada


De vez em quando mudo-me duas ou três semanas para uma cidade do mundo. Deixo a terrinha e vou viver e dormir em lugares desconhecidos que me renovam e ajudam a renascer. Um dia fico por lá? É provável. Mas, até hoje, as minhas viagens foram sempre programadas incluindo as emoções do dia marcado para o regresso.
A minha vida é a minha família, a minha terra e a defesa dos meus hábitos e costumes; a minha casa comprada aos herdeiros do senhor Manuel Moedas, a casa dos meus pais, o Tejo, que é todo meu, e uma boa parte da charneca e da lezíria que ainda não está vedada à circulação dos cidadãos que gostam de andar a pé, de moto ou de bicicleta, pelos caminhos da infância, como é o meu caso. Tudo isto são razões mais do que suficientes para viajar com regresso marcado.
Na minha aldeia ainda se dorme com a porta no trinco; o padeiro deixa o pão na maçaneta da porta às seis da manhã; o vizinho toca à campainha ao fim do dia para pedir uma pitada de sal; os amigos juntam-se a um fim-de-semana para se ajudarem na horta, no quintal ou na recuperação de um telhado; o padre, o farmacêutico e o médico de família são convidados de todos os casamentos e baptizados; na maioria dos quintais ainda se criam coelhos e galinhas, e o relógio da torre da igreja marca a hora a que se deitam e levantam a maioria dos habitantes.
Mas nem tudo são rosas; e as promessas feitas ao Senhor, na noite da procissão, que junta ricos e pobres, velhos e novos, muitas vezes são compromissos com o diabo que as pessoas trazem dentro de si.
Na paz de um lugarejo, nos bairros que cheiram ao fumo das chaminés; ao fundo dos quintais onde ainda há fornos a lenha para cozer o pão e confeccionar trouxas-de-ovos, é sempre possível, como nos tempos da pedra lascada, encontrar gente ruim como cobras.
O meu avô paterno passou os últimos anos da sua vida sentado à porta de casa, ao fundo do meu quintal, com uma bengala por perto para substituir as pernas que ficaram trôpegas numa idade em que a generalidade dos homens regavam sozinhos uma seara de milho. Aprendi com ele, vendo como fumava, comia e bebia deitado na cama, que a cada minuto que passa os homens precisam de decidir o que vão fazer da vida no minuto seguinte, o que quer dizer que a vida dos homens é um problema permanente. Principalmente quando não estão a dormir e sentem um friozinho na barriga derivado da proximidade de uma lâmina ou de uma estrela afiada.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Memorial da Spalil


A mulher que ao longo da minha vida vigiou o meu sono durante menos tempo é aquela que recordo mais vezes.
Com dez anos, num início de turno nocturno, na fábrica de tomate da Spalil, caí de costas, desamparado, de uma altura de cerca de dois metros. Estava no cais a dar caixas de tomate aos homens que as despejavam na linha. Sem saber como nem porquê caí no chão como um passarinho sem asas. Como os turnos começavam à meia noite, e nessa altura não havia serviços de urgência, levaram-me em braços para um canto da fabrica, deitaram-me em cima de uma manta e puseram uma mulher a tomar conta de mim. Lembro-me que vomitei três ou quatro vezes durante a noite; que a mulher me tratou com carinho, e, como não preguei olho, tenho a memória física dela assim como de todas as conversas das pessoas que, nessa longa noite, passaram por lá para saberem como é que eu estava de saúde.
De manhã, o senhor Manuel Barriga, que ainda é vivo e vende saúde, foi comigo num carro da fábrica para Torres Novas onde consultámos um médico. Nunca soube se fiz traumatismo craniano. Lembro-me do médico ter feito algumas recomendações mas ainda hoje devem estar dentro do saco roto para onde ele as mandou. A crer na minha falta de juízo (embora nem sempre) de certo que fiz um traumatismo qualquer. Mas os tempos eram outros e quem aos dez anos não resistisse a uma queda, mesmo de costas e de dois metros de altura, não era homem nem era nada.
O “Pégancho”, que entretanto desapareceu da Chamusca, andava a tentar namorar a mulher que nessa noite me meteu a mão por baixo da cabeça para eu vomitar com mais conforto. Foi a minha visita mais regular. A “barroa”, como se chamava naquele tempo às mulheres do norte que vinham trabalhar para o Ribatejo, era uma mulher silenciosa, sofrida, ainda jovem mas com aspecto de quem já tinha nascido velha. O “Pégancho”, nessa altura já na casa dos trinta, se bem me lembro, só queria uma mulher que o ajudasse a endireitar o pé.
Lembrei-me dele e dela recentemente ao ler o Memorial do Convento de José Saramago. Se Saramago tivesse conhecido o Pégancho e a Maria, na altura em que eu os conheci, de certo que encontrava muito mais cedo a inspiração que o fez criar a Blimunda e Baltazar personagens centrais do livro Memorial do Convento.