quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O pau com que batem é o mesmo com que levam nos cornos

A chegada de um novo ano é o melhor pretexto para falarmos de livros e de leituras. Com a pandemia, o ano que agora acaba tornou-se o pior ano das nossas vidas; mas que ninguém espere melhor mesmo com a chegada da vacina. Não podemos dar tréguas aos políticos nem aos seus secretários.

A chegada do Ano Novo é sempre um bom pretexto para olharmos por nós abaixo e encontrarmos aquilo que ao longo do ano não vimos por causa do movimento acelerado das nossas vidas pessoais e profissionais. Na noite de Natal reparei que os meus dedos estavam feridos por causa de alguns dias na banca de ourives a brincar com as ferramentas. Mesmo a brincar o trabalho magoa o corpo e, às vezes, o espírito. Na manhã do dia 26 descobri que este ano li mais livros que nos dois últimos dois. A mudança de aldeia obrigou-me a escolher da biblioteca os meus quinhentos livros preferidos para levar para a nova casa; e isso deu-me alento para ler e reler livros que me avivaram a memória: “nem sempre se pode ver de olhos abertos”.

Ainda não foi desta que reli a Odisseia e a Eneida, mas reli, ou li pela primeira vez, vários romances de Ana Miranda, Paul Theroux, Aquilino Ribeiro, Mário de Carvalho, Baptista Bastos, Marguerite Yourcenar, Rosa Montero; Agustina Bessa Luís, e muitos poetas que estão sempre presentes nas minhas leituras diárias como Kavafis, Pierre Louis, Raul de Carvalho, Virgílio Alberto Vieira, Paul Éluard, Rui Bello e João Rui de Sousa; muitas biografias, de que destaco as sobre Picasso, e dois livros marcantes que foram “Diarios 1984-1989” de Sándor Márai, numa edição em espanhol, e “Camilo Intimo”, que me mostraram a crueldade da vida e a força da literatura. Os meus livros do ano foram as releituras da obra de George Steiner, que morreu no dia 3 de Fevereiro de 2020, e todos os livros de Claúdio Magris, que nasceu e vive em Trieste, uma das minhas cidades de eleição, também por ter sido morada de Rainer Maria Rilke.

Os livros são o melhor pretexto para falarmos da escravidão do trabalho e dos sentimentos. Há quem nasça e morra agarrado ao mesmo pau; é com ele que batem e é com ele que levam nos cornos desde que nascem até que morrem. Este ano dei por mim a fazer uma listagem de pessoas que viveram, à minha frente, situações que a mim me fariam despir a pele e oferece-la aos cães, e que, para eles, não passaram de simples episódios da vida.

Não estou a falar dos políticos, nem dos parasitas que vivem nos gabinetes dos políticos, que por cheirarem os seus peidos acham que são íntimos ou ainda mais íntimos que os respectivos cônjuges ; estou a falar dos gaudérios que vivem aqui ao nosso lado, controlando organismos públicos com as suas manhas de carneiros mal mortos; os activistas culturais que se acham no direito de viverem à custa do erário público por saberem disfarçar-se, em cima de um palco, com uma simples barba postiça; os directores e assessores de vários organismos do Estado e da municipalidade que, mal pensam em usar a boca para dizerem em público aquilo que pensam, levam nas orelhas porque foram contratados para ficarem calados e serem apenas a voz do dono: os “cães” que nunca são vacinados contra a raiva porque precisam do vírus activo para sobreviverem.

O ano de 2020 ainda não terminou mas basta estar atento a algumas alterações que aconteceram em algumas instituições da região e do país para concluirmos que o problema da pandemia provocado pelo coronavírus é uma pequena desgraça comparado com o mal do analfabetismo que nos vai levar ao descrédito e à inacção, ao desprezo e, principalmente, à insignificância. A pandemia matará ainda muitos de nós mas a ignorância de certa gente, que faz a gestão da coisa pública, fará muitas mais vítimas a curto e médio prazo, com menos dor mas de certeza com mais sofrimento. E é certo que também, a curto prazo, vamos todos ficar livres da pandemia com a vacina que já começou a ser distribuída. Para o mal da ignorância e da prepotência dos governantes e dos seus acólitos jamais os cientistas descobrirão vacinas eficazes JAE .

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Os velhos que paguem a crise ou a vida em pandemia

 Em Santarém há uma instituição que merece o nosso reconhecimento principalmente em tempo de festividade natalícia. Chama-se Fundação Luiza Andaluz e destina-se a receber/acolher meninas que vivam em situações familiares de risco como violência, abusos ou abandono.



Nos últimos dias recebi algumas mensagens de amigos a sugerirem que festeje o Natal a contribuir financeiramente para casas de acolhimento para bebés, crianças e jovens vítimas de abandono e maus tratos. Não há forma de ignorar que o Estado português não tem dinheiro nem organização suficiente para financiar as instituições que apoiam os mais desprotegidos da sociedade. Falo de crianças mas, nesta altura, o que mais me faz doer o coração são os velhos que devido à pandemia têm caído como tordos nos lares de acolhimento onde deviam ter a protecção e o seguro de vida garantido. Não é isso que acontece na maioria dos lares; e o que a pandemia veio por a nu foi a existência de centenas de casas ilegais que funcionam como lares, sem condições, à margem da lei, pondo em causa a vida humana e os direitos consagrados na Constituição da República, tão proclamados diariamente pelos políticos nas suas lutas verbais nas televisões e nos debates, onde discutem apenas o sexo dos anjos e ignoram os verdadeiros problemas do país.

A democracia em Portugal, como na maioria dos países democráticos, ficou mais frágil com a pandemia; estamos nas mãos de gente impreparada para situações de emergência social, para acudirem aqueles que não beneficiam do sistema, não têm médico de família nem tão pouco renumeração suficiente para pagarem à farmácia juntamente com a conta da água e da luz. Não devemos nem podemos ignorar o que se está a passar com a empresa intermunicipal Águas do Ribatejo. As facturas estão a sair para os consumidores com números exorbitantes, e nem os autarcas dão a cara pelo prejuízo, nem os responsáveis pelos serviços cumprem com as suas obrigações, embora sejam pagos a preço de ouro para gerirem os interesses dos munícipes em nome dos políticos que elegemos.

Volto ao início do texto. Em Santarém há uma instituição que merece o nosso reconhecimento principalmente em tempo de festividade natalícia. Chama-se Fundação Luiza Andaluz e destina-se a receber/acolher meninas até aos dezassete anos que vivam em situações familiares de risco como violência, abusos ou abandono. Para quem quiser ser solidário fica aqui o apelo para que batam à porta da instituição e não se façam rogados. Desde brinquedos até palavras de conforto e solidariedade, o que for doado com amor será recebido com o mesmo sentimento. A foto que acompanha esta crónica é de Catarina Rodrigues com duas crianças gémeas ao colo e foi publicada na edição de O MIRANTE de 7 de Abril de 2011. JAE .

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Valadas da Silva, Francisco Madelino e Luís Patrão: o PS no seu melhor

Um crime no aeroporto de Lisboa está a colocar Portugal ao nível dos países que vivem em ditadura. Oportunidade para lembrarmos também que vivemos cada vez mais ao ritmo dos interesses partidários e de grupo que se sobrepôem aos interesses do país e dos portugueses.


I

Graças ao sentido ético de um médico legista, vários polícias do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estão acusados do crime de matarem um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. A morte já aconteceu em Março, mas o assunto continua a dominar a actualidade de tal forma foram violadas as regras mais elementares de um país com uma democracia consolidada. O crime de que os polícias estão a ser acusados teve solidariedade da justiça portuguesa: a família teve que esperar 80 dias por uma resposta judicial para se constituir como assistente no processo quando o normal são mais ou menos trinta dias. Com esta demora a família pode ter perdido algumas oportunidades de ver a justiça a funcionar na morte de Ihor Homenyuk. A forma como a notícia apareceu na comunicação social indica que o cidadão ucraniano terá sido morto como se mata uma barata. Nesta altura tudo indica que ninguém escapará das suas responsabilidades e que a verdade será apurada em tribunal.

II

O Estado pode transformar-se num monstro quando os seus representantes servem os interesses pessoais, ou de grupo, em detrimento dos interesses do povo e do país. Encontrei para início desta crónica um caso de polícia, grave, que põe em causa mais do que uma instituição, a democracia de um país; oportunidade para chamar também a atenção para os funcionários/militantes dos partidos que à frente das instituições do Estado, devidamente empossados pelo chefe do Governo, não usam bastões para nos eliminarem mas é como se usassem. Quem não for do partido do Governo jamais vai conseguir ter a atenção do presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional, António Valadas da Silva; quem não for do Partido Socialista jamais vai perceber como é que um reputado economista, chamado Francisco Madelino, vai para presidente da Fundação Inatel que é uma organização destinada a organizar o turismo sénior; quem não for militante do Partido Socialista jamais vai compreender como é que Luís Patrão continua a trabalhar no Largo do Rato, em Lisboa, como secretário nacional para a administração do PS, quando todos sabemos que o partido precisa de sangue novo e de se reformar da velha gente que ia levando o país à ruína, com tanto descrédito da sua classe política.

António Valadas da Silva, Francisco Madelino e Luís Patrão são apenas três figuras do PS que retratam bem a situação a que chegamos a nível político. O trabalho deles é continuarem o que Abril nos deu; com uma diferença; eles são abrilistas como dantes se era salazarista; não largam o tacho nem que tenham que rapar o fundo; não entregam o poder nem que para isso tenham que morder um corno; embora vivamos numa República eles são os monárquicos do regime; eles e muitas centenas de outros que vivem daquilo que faz eterno Salgueiro Maia, a quem Cavaco Silva negou uma pensão “por serviços excepcionais e relevantes”, na mesma altura em que concedeu pensão a dois inspectores da extinta PIDE/DGS.

III

Há políticos a usarem bastões como polícias. Vemos isso todos os dias nas políticas dos governos dos últimos anos. Basta estarmos atentos ao que se passa com os fundos comunitários e os apoios do Estado às empresas. Nalguns casos a maioria dos fundos de apoio comunitário não são usados e o dinheiro não sai de Bruxelas. Se ouvirmos os portugueses em inquéritos, como aconteceu recentemente, a maioria não acredita na capacidade do país em aproveitar bem o dinheiro. Quem é que na oposição ao Governo de António Costa se preocupa com estas questões da injustiça e do clientelismo político? Vamos ter que nos render todos aos discursos populistas que começam a minar ainda mais a democracia e afastam os eleitores das urnas de voto? Aparentemente não temos alternativas. JAE.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A morte na A1 está sempre à espreita

Crónica sobre a circulação com chuva na A1, no troço entre Santarém e Lisboa, assinada por quem, ontem ao final da tarde, presenciou o acidente que acabou em tragédia.


Fui um dos condutores que no final da tarde de ontem, 5 de Dezembro, poucos quilómetros depois de entrar na A1 em direcção a Lisboa, esperou mais de duas horas para seguir caminho. Cheguei ao local do acidente poucos minutos depois do despiste. Parei ao sinal do funcionário da Brisa atrás de meia dúzia de carros que minutos antes circulavam à minha frente. Saí e fui ver o que se passava. A cerca de 50 metros vi um carro que era um amontoado de destroços e recuei. Comentei com o funcionário da Brisa o aparato do acidente que já deixava adivinhar uma tragédia. “Parece impossível, mas não é, infelizmente”, comentou, de cara fechada, enquanto continuava a espalhar os pinos para controlar melhor os automóveis que iam chegando.

Tinha trabalho no carro. Sentei-me a rever provas de um livro e vi chegar a primeira ambulância, depois a segunda, a terceira e por aí fora. Quando vi chegar os Bombeiros de Santarém voltei a sair do carro e aproximei-me. Um deles perguntou a um colega; “há alguém vivo?” Voltei para dentro do carro depois de ter espreitado mais uma vez os destroços do primeiro carro envolvido no acidente.

A chegada de mais ambulâncias obrigava alguns carros a recuarem quase para junto do meu. Durante mais de duas horas, enquanto via passar carros da polícia e ambulâncias, as luzes vermelhas ali a poucos metros anunciavam os sinais da tragédia.

Quando chegou a ordem para avançarmos, e eu fui dos primeiros, fomos mais de uma centena de metros a ouvir debaixo dos carros o barulho dos destroços dos veículos acidentados. Devagar, diziam os bombeiros para os condutores, que usavam apenas uma faixa de rodagem da A1 durante os cem metros de estrada em que tudo aconteceu.

Cheguei a casa pouco mais de meia hora depois. Comi uma sopa e fui ver a RTP 2 que transmitia um bailado. Perto da meia noite, quando ia começar um dos filmes portugueses mais premiados dos últimos anos, Zeus, ligaram-me a perguntar se podiam actualizar a notícia do acidente já que a morte que eu tinha anunciado pelo telefone, com a ajuda da informação dos bombeiros, era uma figura conhecida.

Mudei de canal e percebi que o assunto já era conhecido em todo o país.

Há poucos anos, num final de tarde de chuva como o do passado sábado, também estive envolvido num acidente do género na A1, a poucos quilómetros do local onde estava, mas fui a única vítima. O que mais recordo foi a conversa do taxista de Aveiras de Cima que me levou para casa enquanto a polícia, que passou por acaso, e sorte minha, ficou a guardar o carro enquanto não chegava o reboque: “Assim que começa a chover parecem tordos a cair”. Depois contou-me os pontos fracos da A1 onde acontecem mais acidentes.


Esta crónica serve para contar que ainda há poucos dias tentei pela enésima vez saber quantos pontos fracos tem a A1 desde Santarém até Lisboa? Quantos acidentes se dão por dia quando chove? Porque razão as autoridades não sinalizam os locais onde a circulação com chuva deve ser mais cuidadosa por causa do aquaplaning ? Por que não há campanhas nacionais de prevenção de acidentes nos dias de chuva, em que a grande maioria das estradas, incluindo a A1, é uma ratoeira para os condutores irresponsáveis, e também para os responsáveis que se deixam levar pela pressa de chegarem ao seu destino, ignorando os avisos de que com chuva a velocidade tem que ser reduzida ?


Todos os dias utilizo a A1, e todos os dias, mesmo sem chuva, lembro-me do taxista de Aveiras de Cima que me disse que há automobilistas que “caiem como tordos”. Como eu caí um dia, sem mal maior que perder o carro, mas com a sorte, que ás vezes nos protege, de não circularem carros atrás do meu, o que fez com que não tivesse causado a desgraçado à vida de outros.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O rio Tejo a Património Mundial da Humanidade

 Os rios falam; umas vezes inconformados (...) outras vezes quando se tornam lágrimas. Por isso os rios deviam ser Património Mundial da Humanidade, por razões muito mais urgentes que os monumentos de pedras seculares.

Anda por aí um burburinho, que eu aplaudo, sobre a forma de salvar o rio Tejo e a água poder servir melhor os interesses dos agricultores e das populações ribeirinhas. Gostava de ver este assunto discutido com unhas e dentes, com gente que se interessa verdadeiramente pelo ambiente e não está a pensar só no valor do rio para a economia, mas também na defesa do ambiente e na preservação da natureza.

O rio Tejo só continua igual ao rio das nossas aldeias para alguns de nós que vivem abaixo do território de Abrantes, só para citar um exemplo da agressão ao leito do rio. Quem vive para cima sabe que o Governo de José Sócrates autorizou a construção de um açude que se tornou numa verdadeira aberração, que prova o quanto a política é a arte da mentira e do engano, neste caso com custos iniciais de mais de 10 milhões de euros, para além dos prejuízos que há mais de 15 anos se vão somando e acumulando. Para nada. Para nada de importante. Aparentemente só para que Abrantes tenha o maior espelho de água urbano de Portugal. Tudo à vista dos políticos e ambientalistas que, também aparentemente, são pessoas em quem devemos continuar a confiar os destinos do país e das instituições.

Os afluentes do Tejo, desde Castelo Branco até Santarém, que são os que conheço melhor, têm uma história triste a cada ano que passa apesar das promessas políticas de defesa da qualidade da água e das suas margens. Não vou contar desgraças neste texto. Vou deixar aqui uma mensagem para todos os que gostam dos rios, e bebem água da torneira, sem se questionarem sobre o futuro do planeta.

Devíamos desafiar os autarcas a promoveram o rio Tejo a Património Mundial da Humanidade. Não estamos a falar de muralhas, nem de castelos, nem de conventos e muito menos de palácios construídos de pedras seculares e representativos de uma História com mais de 800 anos. Estamos a falar da sobrevivência das espécies e do futuro do nosso planeta que tem milhões de anos.

Já ninguém consegue recuperar os ribeiros onde as nossas mães lavavam a roupa, nem os riachos onde mergulhámos em crianças, nem os rios navegáveis que atravessavam os territórios da charneca e do bairro; mas é urgente amar os rios, criar um projecto que envolva as escolas e os professores, falarmos dos lugares onde nascem, do seu percurso, da sua flora e dos danos que sofrem da nascente até à foz. Têm que ser projectos locais para depois se tornarem nacionais.

Os rios falam; umas vezes inconformados, que é quando as águas saltam as margens e destroem tudo à sua volta, outras vezes quando se tornam lágrimas, como acontece cada vez mais com o rio Tejo e com a grande maioria dos seus afluentes. Por isso os rios deviam ser Património Mundial da Humanidade, por razões muito mais urgentes que os monumentos de pedras seculares; porque não teremos vida sem os rios; porque quase toda a água do planeta é salgada, pouca é a água doce; e porque os rios são seres fabulosos que não podemos perder por causa dos interesses dos produtores agrícolas e dos industriais que ignoram as práticas ecológicas e só pensam nos lucros imediatos dos seus negócios. JAE.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

As palavras dos outros: António Valdemar, Alberto Dines, Fernando Lemos, Ana Miranda e Baptista-Bastos

 Esta edição de O MIRANTE inclui uma entrevista que tem o meu dedo. Oportunidade para recordar que uma vida não chega para fazermos tudo o que gostamos e a profissão exige.

O MIRANTE publica nesta edição uma entrevista com o jornalista António Valdemar que tem o meu dedo. Foi fruto de um encontro para partilharmos livros e pormos a conversa em dia. Gosto da entrevista como género maior do jornalismo. Mas a vida não me deixa fazer só o que quero e, muitas vezes, só faço o que menos gosto. Quando a conversa com António Valdemar já ia adiantada, o jornalista perguntou-me: “o que você quer é uma entrevista não é?” E eu respondi com a cabeça já com a máquina fotográfica ligada, a tomar notas sempre que ouvia matéria de interesse. Por causa dessa mania de usar a caneta e o caderno enquanto converso, ouvi uma dúzia de vezes ao longo da tarde: “olhe para mim”, quando Valdemar queria dizer coisas importantes que achava que eu também tinha que ouvir com os olhos. Esta entrevista com António Valdemar fez-me voltar atrás no tempo quando falhei entrevistas com Alberto Dines, que morreu com 86 anos, e que é uma das figuras maiores do jornalismo em língua portuguesa. Tenho o mesmo sentimento em relação a Fernando Lemos, outra figura maior que desapareceu também recentemente com 93 anos, embora com esse tenha partilhado momentos que me deixaram de alma cheia. Alberto Dines deixou um legado no Brasil que não vai desaparecer tão depressa. Para além de ter sido o fundador do “Observatório de Imprensa” era um estudioso da obra de Stefan Zweig cuja casa museu ajudou a fundar, para além de ter escrito uma biografia que é uma obra monumental sobre a vida de uma personalidade fascinante da literatura mundial. O meu desencontro com ele foi só presencial; de resto fui um seguidor da sua obra e do seu exemplo como jornalista e como homem.

Fernando Lemos deixa um rasto inconfundível quando há mais de sessenta anos deixou Portugal para ir morar em São Paulo. O que começou por nos ligar foi a obra de Jorge de Sena, num congresso no Rio de Janeiro, onde fomos ambos conferencistas convidados, graças à Gilda Santos que era nossa amiga comum e uma das maiores divulgadoras da obra do autor de “Sinais de Fogo”.

Fernando Lemos tem uma obra também monumental ao nível da fotografia e das artes plásticas. Não há outro artista da sua geração, e há muitos e famosos, que tivesse deixado uma obra tão diversificada e valorosa. Como pessoa era um homem de uma afectividade e de uma bondade extraordinária.

António Valdemar é diferente destas duas figuras que me conquistaram a estima e o coração. São as tais diferenças que tornam tudo semelhante quando “há um espinho que as anima”, para citar Augusto dos Anjos em a “Última Quimera”, um dos melhores romances da escritora maior da nossa língua, chamada Ana Miranda.

António Valdemar tem uma ligação muito afectiva ao Ribatejo e a muitas personalidades ribatejanas, matéria que não entrou na conversa mas que um dia destes talvez consigamos actualizar noutro encontro.

Uma última nota para quem gosta de jornalistas e de jornais e dos segredos da profissão: Armando Baptista-Bastos foi, sem espinhas, um dos melhores jornalistas de sempre na arte da entrevista. Conheça a maioria das suas grandes entrevistas e alguns dos seus entrevistados que, ou o elogiavam ou lhe chamavam os piores nomes, sempre por causa do seu génio e da arte do seu trabalho. Esta conversa com António Valdemar não é uma peça à Baptista-Bastos nem nada que se pareça. Mas é fruto do mesmo prazer pela profissão e pelo gosto de dar a conhecer “As palavras dos outros”, um dos seus livros que reúne algumas das suas melhores entrevistas. JAE.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Raios partam aqueles que só estão bem com o mal dos outros

A história de O MIRANTE é a história de uma terra, de uma região e de um povo; com muitas e variadas leituras, com muitas e variadas cores, com grandes e extensas lacunas, omissões, erros, falhanços, mas também alegrias, missões impossíveis, lições de vida, serviço público e dever cumprido.

O MIRANTE comemorou 33 anos a 16 de Novembro; deve parecer uma eternidade para quem tem 18 anos; talvez um sopro do vento para quem já passou dos 70 ou dos 80 anos; para alguns de nós pode ser apenas um número se olharmos os anos que passam como simples elementos da nossa vida.

“Não podendo fundir totalmente a sua vida com a existência das coisas, o poeta cria um objecto em que as coisas lhe parecem transformadas em existência sua.

Não podendo fundir-se com o mar e com o vento, cria um poema onde as palavras são simultaneamente palavras, mar e vento.

A finalidade do poeta não é acrescentar objectos à natureza. O mundo não precisa nem de retratos que o repitam nem de ornamentos que o enfeitem.

O poema aparece porque é necessário à existência do poeta. É por isso que Rilke diz que o único julgamento duma obra de arte está na sua origem.

Nenhum sistema de filosofia, nenhum tratado de estética, pode ensinar a distinguir um poema verdadeiro dum falso poema. Sabemos da poesia que ela é uma necessidade mas que não é uma necessidade geral. Como necessidade, sabemos que ela é uma necessidade elementar e não uma necessidade secundária.

De facto, um homem que precisa de poesia precisa dela, não para ornamentar a sua vida, mas sim para viver. Precisa dela como precisa de comer ou de beber. Precisa dela como condição de vida, sem a qual tudo é apenas marginal e cinza morta”.

Recorro às palavras de Sophia de Mello Breyner, retiradas de um texto publicado em 1960, para marcar a crónica que coincide com a data de mais um aniversário do jornal.

Assim como um poema é noventa por cento de labor e dez por cento de inspiração, mais coisa menos coisa, uma ideia, um trabalho, ou lá o que fazemos todos os dias, o que nos liga ao mundo é sempre o selo da aliança com as coisas.

A história de O MIRANTE é a história de uma terra, de uma região e de um povo; com muitas e variadas leituras, com muitas e variadas cores, com grandes e extensas lacunas, omissões, erros, falhanços, mas também alegrias, missões impossíveis, lições de vida, serviço público e dever cumprido.

Nunca seremos mais do que aquilo que os leitores e os anunciantes quiserem que sejamos. Em 33 anos sempre acrescentamos valor ao valor; basta conferir a edição que temos na mão, uma das mais participadas de sempre a nível editorial e comercial.

Só os governos do país, e os apaniguados dos governantes que se escondem como ratos nos gabinetes de Lisboa, desconhecem que há uma força e uma urgência no interior do território que eles nunca conseguirão extinguir; nem vencer pelo boicote e pelo desprezo com que nos tratam. E é certo que um dia vão ter que ceder; é certo que um dia vão ter que ser mais justos para quem vive longe do Terreiro do Paço, da linha de Sintra, dos corredores do Poder, onde se distribuem as prebendas e quase todos são filhos de Deus; e os que não são depressa aprendem a viver debaixo das saias do Senhor.

Raios partam aqueles que só estão bem com o mal dos outros. JAE.


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Saia de casa: vá caminhar e abraçar as árvores

 Tenha casa à beira do rio, na charneca ou no bairro, saia à rua, caminhe e conviva nem que seja com os animais presos à corda à beira da estrada. Se mora na cidade bom proveito: a fauna é bem mais divertida que a dos caminhos das hortas e dos quintais da aldeia.

A pandemia obriga-nos a ter mil cuidados para não ficarmos infectados. Mas, por favor, saia de casa e vá para a rua, com máscara, dupla se achar necessária, com luvas, proteja-se de forma a que não seja contaminado. Arranje forma de não levar as mãos ao rosto; Se é pessoa de risco elevado, por causa de outras doenças, vá às compras onde houver menos barafunda. Mas saia de casa; caminhe e conviva com a vizinhança; use o telefone para triplicar as chamadas para os seus amigos e familiares. Se ainda não sabe usar o telefone para entrar nas redes sociais peça a alguém que lhe ensine: o Facebook e o Instagram são o melhor local para se divertir a ver e a ler as figuras ridículas que nos oferecem.

Comente as notícias de O MIRANTE, do Expresso, e do Público, e de outros jornais da terra quando não andar na rua a apanhar o sol de Outono ou a chuva miudinha que molha tolos; não se importe que o/a olhem de lado por andar na rua a vadiar; fechado em casa é que não; desde a antiguidade que está escrito na nossa testa que os homens são animais sociais; todos precisamos uns dos outros para alcançarmos a plenitude da vida. Está provado que as pessoas que se isolam ficam deprimidas com muita facilidade. Perdem os amigos e, sem eles, ninguém vive. A falta de contacto social cria ódio, e revolta, nas pessoas. A maioria fica agressiva, e quanto mais dura o isolamento, ou o confinamento, mais se agravam os problemas psiquiátricos devido à perda da autoestima, e à sensação de que não pertencemos a este mundo, ou que pertencemos mas somos excluídos sem dó nem piedade. Os políticos populistas ganham terreno quando acontecem desgraças como a actual pandemia. O ódio e a revolta que se instala nas pessoas isoladas, e confinadas, faz com que percam a razão e fiquem do lado dos fascistas e dos comunistas que acham que o mundo só se endireita com mais autoridade.

Ligue a televisão mas veja os programas sobre viagens e natureza; há meia dúzia de canais que passam documentários sobre ciência e vida animal, só para dar dois exemplos, que nos enchem a alma e engrandecem o espírito. Há programas que nos transportam para territórios físicos e mentais que nunca pisaremos, mas que podemos dizer que já sentimos depois de os vermos na televisão.

O livro é o melhor companheiro para nos proteger da solidão e dos desgostos da vida. Quando entramos num livro entramos na vida de outras pessoas, pisamos as fronteiras de outros países, subimos a outras latitudes; só precisamos de ligar o cérebro ao coração e não nos enganarmos na escolha do livro; assim como há filmes e programas de televisão que nos deixam os olhos em bico, também há livros que só servem para base de candeeiros ou para enfeitar uma estante. Opte pelos clássicos e assim terá a certeza de que fará sempre uma escolha acertada mesmo que o género não seja o seu preferido. Leia e saia todos os dias à rua, o tempo suficiente para se libertar da angústia, para recarregar baterias, para deixar a sua marca na conversa com o dono da padaria, ou com o dono da pastelaria, ou com quem encontrar pelo caminho e achar que merece dois dedos de conversa.

Proteja-se da Covid-19 com máscara; e proteja-se acima de tudo das pessoas que entraram em pânico por causa da doença; dos políticos e da comunicação social que lhe dão Covid-19 ao almoço e ao jantar; More à beira do rio, na charneca ou no bairro, saia de casa, caminhe e conviva nem que seja com os animais presos à corda à beira da estrada; em último caso não se esqueça que pode abraçar as árvores. Pode fazer tudo o que quiser para quebrar a rotina e não deixar que a loucura tome conta de si. Se mora na cidade bom proveito; a fauna é bem mais divertida que a dos caminhos das hortas e dos quintais da aldeia. JAE.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O mau exemplo do Instituto Politécnico de Santarém

 O IPS tem novo presidente assim como um novo líder do Conselho Geral. Mas se não houver uma revolução na gestão da instituição antes da data das próximas eleições o IPS abre falência.

O Instituto Politécnico de Santarém (IPS) tem um novo presidente do Conselho Geral (Hermínio Martinho) por desistência do anterior. Francisco Madelino terá pedido escusa por ter muito trabalho no Inatel do qual é presidente. Francisco Madelino nunca foi um bom presidente do Conselho Geral do IPS. A sua escolha foi política e é exactamente nessa área que ele é uma fraca figura. Quem conhece bem Francisco Madelino diz que ele era bom para exercer actividade política na antiga União Soviética, por ser cara de pau e ter carácter conflituoso próprio de quem acha que todos lhe devem e ninguém lhe paga. Enquanto presidente do Conselho Geral do IPS, Francisco Madelino foi um zero à esquerda. Como sempre, ser natural da região (Salvaterra de Magos) não importa quando o importante é o trabalho e o amor à causa. No Ribatejo ou na Beira Baixa, quando os políticos querem o Poder pelo Poder, é sempre no Terreiro do Paço que têm os olhos e o coração palpitante.

A nova realidade do IPS, com João Moutão a comandar a instituição, não promete nada de novo se não houver coragem para mudar a forma como a Escola funciona e está organizada. A instituição vai estar sempre nas mãos dos que, como os Madelinos, querem é tacho porque não gostam da profissão que escolheram, seja a gerir o Inatel seja num qualquer organismo do Estado que sirva de trampolim para mais altos voos.

Dou um pequeno exemplo do modelo de funcionamento do IPS que serve às mil maravilhas para percebermos como é difícil endireitar o que já nasceu torto; cada Escola tem um serviço administrativo com tudo o que isto acarreta ao nível das chefias e da importância que cada um acha que deve ter no futuro da instituição. São seis serviços administrativos, a contar com o da presidência, onde reinam não sei quantas dezenas de gestores, todos a puxarem para o lado que lhe dá mais jeito na gestão da sua quintinha.

Com a desorganização e a divisão que se instala com este modelo de gestão, os professores, que, regra geral, ganham bem e trabalham pouco, têm sido o maior foco de instabilidade da instituição. Para se perceber até que ponto os professores são capazes do melhor e do pior, na votação para a eleição do novo Conselho Geral, os três votos que faltaram de um total de 21 foram exatamente os votos dos representantes do pessoal docente. Faltou ainda o voto do representante dos alunos mas aí a burocracia da instituição é que levou a melhor.

O IPS, com o seu estatuto e com uma média de quatro mil alunos, devia ser o maior líder regional, alavanca de progresso e de desenvolvimento de parcerias que elevassem a região ao estatuto que merece. Ao contrário, é uma instituição onde há uma guerra civil permanente, onde se escondem políticos de carreira como Francisco Madelino, onde se divide para reinar, como nos países e nas instituições onde o poder se conquista nos gabinetes ou nas ruas. Não estou a exagerar; dou outro exemplo gritante; os professores de uma determinada Escola do IPS só podem dar aulas naquela Escola. Não pode haver misturas; O IPS parece mais um colete de forças que uma instituição de ensino.

Ouvi muitas vezes o Professor Joaquim Veríssimo Serrão falar do seu sonho de ver o IPS transformado em universidade. É um sonho cada vez mais adiado. Mas não deixo de recordar o homem que esteve por trás da fundação desta escola de Homens que nunca mais teve uma direcção que honrasse o seu nome e o seu trabalho a um nível digno de figurar nos anais da instituição.

João Moutão tem idade e estatuto para fazer uma revolução no IPS. Se não for um guerreiro vai acabar a sua presidência antes das próximas eleições porque o tempo não está para lutas inglórias como as dos seus antecessores. JAE.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A guerra contra o Diabo e um apelo às armas

 Os patrões da comunicação social desinteressaram-se da única associação (API) que tinha voz para reivindicar junto do Governo. Por ser uma associação amordaçada e confinada, a imprensa regional e local não tem interlocutores junto dos poderes de Lisboa.

Conheço um músico de orquestra que depois de cada trabalho enfia o instrumento na mala até chegar a hora da actuação seguinte. É assim há muitos anos. É músico profissional como muitos são talhantes, caixas de supermercado, cantoneiros, etc, etc, por que não conseguiram ainda melhor profissão para ganharem a vida. É um músico profissional que já sabe a música de cor, não tem respeito pelo maestro nem toca em orquestras que lhe exijam muito. O exemplo serve para comparar com aqueles profissionais do jornalismo que acham que a profissão resolve-se diariamente com umas notas sobre a pandemia, uma entrevista com um político ou um dirigente desportivo e dois ou três textos roubadas da reunião de câmara dos assuntos de antes da ordem do dia. Não estou a atirar pedras a ninguém, mas a fazer um exercício que só me contempla a mim, que ainda sou jornalista de tarimba, quase 33 anos depois de ter fundado este jornal.

Esta semana tomei a decisão de pedir a demissão da Associação Portuguesa de Imprensa (API) de que somos sócios desde a fundação do jornal. Aprendi muito com o associativismo; com os jornalistas e os patrões dos jornais que noutros tempos davam o coiro e o cabelo na defesa dos seus interesses. Era nesses encontros que os políticos do Governo gostavam de se mostrar; era nessas arenas que percebiamos quem estava no negócio para fazer jornalismo e quem estava no jornalismo para valorizar os negócios.

Ver como o mundo mudou nos últimos 30 anos na área da comunicação social é um exercício mais fácil para quem entrou no jornalismo por dever de cidadania e não por opção profissional. Por isso, esta semana pedi a demissão da única associação que conheço que representa os jornais nacionais e regionais. Estive sempre na primeira linha do combate associativo; e devo ter sido daqueles que mais luta deu às direcções da associação sempre numa postura de combate pelo colectivo. Desisti. A API, antiga AIND, continua a ser gerida por gente que respeito como pessoas mas que, como dirigentes, não valem um chavo.

33 anos depois de fundar O MIRANTE ainda vivo a ensacar jornais, a angariar assinantes, a dirigir jornalistas, a zangar-me todas as semanas com os distribuidores dos jornais, enquanto a grande maioria dos dirigentes baixaram os braços, vivem alegremente do sistema ou sobrevivem do negócio que se tornou ser dirigente associativo. A coisa é complicada demais para explicar numa crónica. Fica aqui a nota para que os leitores de O MIRANTE saibam que somos líderes de mercado, mas não dormimos na forma.

Não é a pandemia que está a acabar com a imprensa local e regional; é a falta de liderança empresarial e a incapacidade para reivindicar junto do Governo medidas de apoio para a comunicação social que trabalha e representa 90% do território que sofre os problemas que todos bem conhecemos. Agora que o associativismo devia ser um apelo às armas, para citar a ministra da Justiça, a propósito do combate contra a fraude e a corrupção, a associação que representa os jornais (API) está amordaçada e confinada; não há reuniões, nem estratégias conjuntas, nem planos de acção que ajudem o sector a sair da crise ou a minorar os seus efeitos. Que fiquem com Deus; nós vamos continuar a guerra contra o Diabo. JAE.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

A biblia e a palavra de Deus contra as mulheres

 Uma releitura do Eclesiastes, uma citação de mais um artigo do advogado João Correia e uma lembrança de Juliette Gréco a musa da canção francesa.


No tempo em que o leito do Tejo na Chamusca e em Santarém era caudaloso, e muita gente ainda vivia da pesca, li uma entrevista de um escritor que me fascinava, truculento, brigão, mestre da língua portuguesa, polemista, que confessava ter sempre a Bíblia na mesa de cabeceira; e quando viajava levava-a sempre consigo. Fiquei pasmado. Eu imaginava o porquê, mas tive que ir à procura. Para mim a Bíblia sempre foram os Provérbios, os Salmos e o Cântico dos Cânticos. O resto era enfadonho. E o apelo dos grandes clássicos, dos livros cujas matérias mais me interessam, sempre suplantaram o interesse maior pela leitura integral do livro dos livros.

Recentemente, graças a Fátima Salgado, voltei ao tema com a descoberta do Eclesiastes, vigésimo primeiro livro da Bíblia, da autoria de Kohelet. A leitura de alguns trechos são familiares; fiquei a saber que é um dos escritos bíblicos que mais influenciaram a literatura ocidental.

Antes de Baptista Bastos e José Saramago, só para citar dois autores que usaram a influência dos textos bíblicos nas suas obras, William Shakespeare cansou-se de usar a expressão “não há nada de novo debaixo do sol”, Leo Tolstoy rendeu-se ao Eclesiastes e diz que foi o livro que mudou a sua vida. Machado de Assis, talvez o maior escritor de sempre em língua portuguesa, tem influências do Eclesiastes em toda a sua obra, que também considerava o seu livro de cabeceira. No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, que reli recentemente, o escritor traça a epopeia da irremediável tolice humana, a sátira da nossa incurável ilusão, feita por um defunto desenganado da vida. “A vida é boa mas com a condição de não a tomarmos muito a sério”, “uma certeira repetição do velho tema da vaidade de tudo, e do engano da vida”, a que o Eclesiastes deu a consagração secular.

O meu orgulho, que ainda dura, de ter lido a Odisseia e a Ilíada aos 30 anos, sofreu um revés agora que percebi que por causa de não gostar de hábitos, assim como não gosto de fardas, só agora aprendi que “é melhor escorregar no chão do que no falar”. Mas não acabo sem um aviso à navegação; a Bíblia é o livro mais perigoso para a emancipação das mulheres e a sua luta contra a discriminação e a violência que, para muitos homens, está institucionalizada pela palavra de Deus: “É melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher; a mulher causa vergonha e chega a expor insulto”. Mesmo com muitos ultrajes, impropérios e violência contra as mulheres, como aliás é norma em quase todo o texto bíblico, a leitura do livro de Kohelet foi uma das boas redescobertas destes últimos tempos de leitura.



Hoje, a Ordem dos Advogados deixou de ser uma realidade judiciária e forense e, provavelmente, nunca mais atingirá o prestígio que a levava a ombrear com as demais corporações, a ser respeitada e ouvida pelo poder político.

Tudo isto, antes e depois de 25 de Abril. Tenho muita mágoa. Tenho esperança numa jovem advocacia que retome a dignidade e o prestígio da advocacia portuguesa. (João Correia, jornal Público 17/09/2020).

Não sei se Juliette Gréco visitou a lezíria ou a charneca ribatejana. Nunca a encontrei em Santarém, nem sequer em Lisboa onde actuou a última vez em 2008, já com 81 anos. Eu é que, num dia já distante, fui de Marselha até Saint-Tropez, onde ela vivia, e tenho quase a certeza que vi a dama de negro da canção francesa numa esplanada da cidade. A imagem que tenho dela é de braço dado com Miles Davis, na noite de Paris, mas nesse dia em que a vi estava de cigarro na boca, túnica negra e óculos escuros, olhando os sapatos de salto alto que as mulheres deixavam abandonados no passeio marítimo, quando aceitavam entrar nos iates de luxo para beberem champanhe e, quem sabe, incendiarem o coração na presença dos playboys que as aguardavam. Juliette Gréco morreu no dia 23 setembro, com 93 anos, e embora famosa sempre dizia que a sua vida andante tinha pelo meio muito caminho de cabras. JAE.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um grito de alerta mas também um SOS: os CTT e o serviço público

 Este texto é um aviso à navegação e também aos navegantes; os CTT vão ajudando a matar a verdadeira imprensa de proximidade e o Governo é conivente porque a exemplo do que faz com o património edificado, a paisagem, a floresta e as nascentes dos rios, deixa tudo por conta dos interesses que manobram nos gabinetes onde trabalham os que não mudam as vírgulas nos textos das leis, mas boicotam as agendas, fazem loby por quem lhes está mais próximo e, se for preciso, ainda inventam ovnis para fazerem desaparecer o trabalho de gente de bem que, entretanto, deixou o lugar por causa do emblema do partido que representava e que perdeu as eleições.

A entrega de um jornal na caixa do correio da nossa casa devia ter a prioridade que tem a chegada das notícias aos centros que investigam tsunamis. Um jornal, mesmo local e com uma dúzia de páginas, é um dos melhores exemplos do exercício de uma democracia: são os cidadãos a exercerem o direito à crítica, o direito ao exercício da cidadania, a fazerem contrapoder ou a legitimarem o poder, o que é tão certo num caso como noutro.

Os CTT são o parceiro mais importante dos jornais locais e regionais. Por isso o Estado pagou o envio dos jornais via CTT a 100% durante muitos anos. Era uma forma de ajudar a acabar com a iliteracia e fomentar a leitura onde não chegavam as notícias dos jornais nacionais. Há casos que se contam, ainda hoje, de pessoas que viam o jornal e sabiam das notícias da sua terra só pelas fotos, uma vez que não sabiam ler; as fotos chegavam para as motivarem a assinarem o jornal da sua terra; as fotos mais importantes eram as da necrologia.

O PS, e Arons de Carvalho, num conluio estranho com a Associação Portuguesa de Imprensa, transformou o investimento do Estado no Porte Pago em menos de metade do apoio. E impôs regras que não lembravam ao diabo, como preços mínimos de assinatura. Coisa ao jeito daquilo que se fazia na antiga União Soviétiva, e ainda se faz hoje em alguns desses países da cortina de ferro.

Como os preços do serviço dos CTT sempre foram negociados à margem dos empresários do sector, por serem apoiados pelo Estado, os preços do envio de um jornal em Portugal são dos mais caros da Europa. Enviar um jornal é mais caro que enviar uma simples carta. A diferença é que as empresas editoras enviam milhares por dia, ou por semana, e têm que ensacar, etiquecar e distribuir por giros o seu produto, um trabalho bem diferente de enfiar uma carta na caixa do correio uma vez, ou meia dúzia de vezes, por ano.

Antes dos milhares de jornais chegarem aos CTT há um trabalho de angariação e de fidelização dos assinantes por parte das empresas de comunicação social. O que os CTT gerem é uma carteira de clientes/leitores/assinantes das empresas de comunicação social, que têm que receber a tempo e horas o produto que esteve na origem do contrato feito entre as duas partes. E é isso que os CTT não fazem com a qualidade que se exige num serviço pago a peso de ouro, pelas razões que já referi.

Portugal é um país pequeno e desertificado; na grande maioria das vilas e aldeias do país não há postos de venda suficientes para que a população tenha acesso à informação como em Lisboa ou nas grandes áreas urbanas, onde se tropeça a cada 100 metros com uma montra de jornais. Ou tropeçava. Daí a importância do Serviço Postal Universal.

O que tem vindo a acontecer nos últimos anos, e não só agora com a pandemia, é um desinvestimento pornográfico na mão de obra que leva a Carta a Garcia. Os Correios fecharam as estações locais, mas também diminuíram substancialmente o número de carteiros. Desde a privatização ficou em causa o cumprimento do serviço público.

Um jornal com três dias de atraso, em relação à data em que chega à banca, perde uma boa parte do interesse para o assinante. Não há sobrevivência possível para os jornais se os CTT não melhorarem o serviço no interior do país.

Nos últimos dez anos fecharam mais de quatro centenas de jornais, alguns de pequenas tiragens, mas muito importantes para as comunidades locais. Outros baixaram as tiragens tornando-se insignificantes. É um tsunami para as empresas editoras mas, para os CTT, que vivem de outros negócios mais chorudos, não se passa nada.

Os jornais de Lisboa são o farol que orienta os barcos no mar quando se aproximam da costa; os jornais locais e regionais, como O MIRANTE, são os barcos em alto mar. Basta comparar o trabalho e perceber quantos jornalistas dos principais órgãos de comunicação social sabem o que se passa fora de Lisboa e dos centros do poder.

Por último: O Governo só pode ajudar a comunicação social se perceber que os jornais locais e regionais são um dos braços armados da democracia; Não precisa de os financiar como financia a RTP e a Agência LUSA que, muitas vezes, mandam bugiar o serviço público quando o trabalho é muito longe do Terreiro do Paço ou da Assembleia da República, onde se movimenta a grande parte dos jornalistas que escreve para as aberturas dos telejornais das televisões ou para as manchetes dos seus jornais. Bastava que governasse bem o dinheiro do Orçamento de Estado e não privatizasse serviços que nos deixam nas mãos dos que anunciam os nossos funerais antes de morrermos. JAE.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Confinado em Lisboa mas sempre a vêr o Ribatejo do cimo de um Mirante

A livraria é a minha melhor praia de verão ou de inverno. Crónica de uma tarde na Gulbenkian, onde bebo café ao lado de alguns dos meus escritores preferidos, mas onde também já fui assaltado numa cena digna de filme.

A Fundação Gulbenkian, em Lisboa, tem o jardim mais bonito do mundo para compensar um provinciano desterrado do ambiente do campo e da charneca. Há mais de quatro décadas que frequento aquele espaço, e vejo-o sempre com novos olhos e sentimentos. Um dia destes passei a manhã na livraria, para onde consegui entrar fugindo a algumas condicionantes pelo facto de andarem em filmagens nos jardins. Dentro da livraria, uma hora depois de ter folheado meia dúzia de livros( a minha melhor praia de verão e de inverno é o ambiente de uma livraria), comecei a ver do lado de lá do vidro as cenas para a série “Crónica dos Bons Malandros”, mais uma adaptaçao do livro com o mesmo título de Mário Zambujal, que a RTP está a produzir. Fiquei ali mais uma hora a ver uma dúzia de actores a repetirem uma cena, um deles empurrando uma cadeira de rodas e os outros todos em rebanho. A cena parecia a coisa mais banal do mundo, não tinha falas, e o realizador mandou repetir uma dúzia de vezes. Ninguém imagina o peso daqueles microfones no ar a acompanharem as cenas e a cara de enfado dos artistas e dos técnicos depois de cada repetição.

Quando resolvi voltar aos livros, sem outras distrações, comecei a ouvir a voz do Mário Zambujal. Espreitei até o encontrar fora da livraria, mas dentro do edifício, a conversar com uma jornalista. Posicionei-me de forma a ficar a ouvir a conversa do jornalista e escritor que está com 84 anos mas mantém uma clareza de espírito e uma qualidade na escrita que faz inveja aos santos.

Embora não tenha frequentado, como jornalista, as redacções onde trabalharam os grandes jornalistas do tempo em que comecei a escrever, convivi e fui amigo de muitos que me proporcionaram o contacto directo com a realidade. Cito dois que já morreram; Luís de Miranda Rocha, no Diário de Lisboa, e Baptista Bastos, que trabalhou no Diário Popular e, mais tarde, ajudou a fundar O Ponto, um jornal de vida curta mas que muito me inspirou. Duas figuras distintas mas igualmente homens de talento, que se entregaram ao trabalho de alma e coração, a quem ouvi contar muitas vezes alguns segredos da profissão de jornalista/escritor de quando eu nascia para a vida.

Do quanto consegui ouvir, fiquei a saber que Mário Zambujal precisou de reescrever algumas crónicas para que algumas personagens tenham história que caiba no filme, para mais ou para menos, conforme os casos, já que “os malandros hoje são muito mais sofisticados”, e “aquelas histórias tiveram o seu tempo”, segundo palavras do autor. Mas o que retenho acima de tudo foi a forma como ele contou o ambiente nas redacções dos jornais nos anos 70: “Havia sempre uma nuvem de fumo nas salas, um vozear constante entre camaradas a trocarem informação e a fazerem perguntas, que os motores de busca hoje resolvem em segundos, e aquele batuque das máquinas de escrever, que ainda hoje parece que ouço, um batuque constante, que parecia uma música de orquestra”.

Não tenho a certeza que este episódio de um sábado à tarde na livraria da Gulbenkian sirva os leitores desta coluna. Por isso acrescento duas notas que podem ajudar a minorar o textinho de uma semana de muito trabalho com os dentes cerrados e pouca inspiração. Já fui assaltado, com uma faca de cozinha a centímetros do meu nariz, nos jardins da Gulbenkian, mas só conto a história completa do assalto a um realizador de cinema.

A Fundação tem uma biblioteca onde se passa uma manhã, ou uma tarde, sem darmos conta do tempo; e mesmo ao lado tem um café com esplanada para o jardim, onde é possível encontrarmos o nosso escritor de eleição a beber um café ao lado da nossa mesa; sempre a dois passos da água do lago, dos patos e dos peixes, e também com um barulho de fundo dos carros da Avenida de Berna, e agora também das obras na Praça de Espanha. Sonho todas as noites com viagens a Estocolmo, Budapeste, Copenhaga, Berlim, etc, etc, mas, de verdade, se conseguir esquecer-me do trabalho que tenho á minha espera em Santarém ou na Chamusca, ligar o telemóvel em modo de silêncio, mesmo com os pés no chão, e confinado em Lisboa, viajo mais do que alguma vez pensei ser possível. JAE.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Os empresários já não são um exemplo como eram dantes

Faltam mais empresários preocupados com o associativismo, que se substituam aos políticos na organização da sociedade. Quatro décadas depois da revolução vivemos os maiores escândalos financeiros cujos rostos são em grande maioria os dos dirigentes do pós 25 de Abril.


Nas últimas décadas desapareceu em Portugal, definitivamente, uma elite empresarial que faz falta ao país e ao futuro do país. Portugal perdeu empresários que noutros tempos pensavam o país e substituíam-se à classe política na organização da sociedade, naquilo que sempre souberam fazer melhor que é participar na vida colectiva das populações de proximidade.

As empresas eram escolas de engenharia, de gestão, etc, etc, muito melhores que universidades; eram os empresários ligados a vários grupos, e a vários ramos da economia, das mais variadas classes, que criavam modelos de gestão que tinham impacto na vida do país e na qualidade de vida dos trabalhadores e das suas famílias.

O 25 de Abril de 1974 em Portugal, e o ano de 1975 em Espanha, só para dar dois exemplos, trouxeram-nos liberdade e democracia, certamente as conquistas mais importantes do mundo dos últimos cem anos. Ao contrário do que seria de esperar, perdemos os grandes líderes do passado e herdamos alguns dos maiores falsários da história da humanidade que fazem lembrar os grandes facínoras dos tempos das barbáries. Não é por acaso que, só para falarmos de Portugal, temos o caso Marquês e o caso BES, que envolvem uma parte muito significativa de dirigentes políticos e empresariais do pós 25 de Abril.

A maioria dos grandes empresários de hoje já não é um exemplo para ninguém como foi Alfredo da Silva há 150 anos. Hoje os empresários de referência da região ribatejana, por exemplo, têm carros de marca escondidos nas garagens das vivendas, ganham milhões todos os anos, fazem obras nas suas mansões à custa dos apoios do Estado para o turismo, entre outras manhas, mas culturalmente e no exercício da cidadania são uns analfabetos, que correm todos os dias de Lisboa para Madrid, de Madrid para Berlim, solitários como lobos na serra, fugindo aos seus deveres sociais, como os animais em extinção fogem dos caçadores furtivos, vivendo e isolando-se para não morrerem apoplécticos nos resorts ou nas suas mansões com muros altos e longe dos lugares mais povoados.

Sou desde sempre um aliado dos empresários e também um deles; admito com orgulho que foi com os pequenos empresários que aprendi quase tudo o que sei de melhor. Tive esse privilégio de conviver com pequenos empresários que me fizeram perceber o valor da palavra dada e o mérito da honradez. Não posso negar, no entanto, que sou testemunha de um tempo em que muitos empresários se divorciam do seu estatuto de cidadãos e de agentes de transformação sócio-económicae cultural. As associações são um espelho desse divórcio. A falta de dimensão humana e cultural de muitos empresários, que só pensam no lucro e no estatuto; a falta de líderes com credibilidade, que saibam liderar homens e não só estruturas produtivas, é um dos problemas dos nossos tempos que não vamos conseguir resolver sem outra revolução de mentalidades.

O que muitos dos nossos empresários têm a mais nas contas bancárias e nos investimentos em carros de marca e imobiliário, têm a menos em ousadia, frontalidade, coragem e solidariedade. Só dão para a sopa dos pobres porque é barato e não causa chatice. Quando lhes cheira a trabalho colectivo, a política de proximidade, fogem de circulação como se vivessem, não no Entroncamento, em Abrantes ou Benavente, mas num palacete de Sintra.

Não é por vivermos em tempo de pandemia que vamos aliviar o valor das palavras que precisam ser escritas, e repetidas, se for caso disso. A pandemia devia ser uma oportunidade para nos questionarmos sobre o nosso papel em sociedade. Se a pandemia durar uma década, alguns de nós, que tiveram sorte no negócio ou no emprego que escolheram, vão morrer pelo caminho mais ricos do que estão agora. A grande questão é esta: de que lhes serviu terem enriquecido num tempo em que não puderam viajar, conviver, viver em família e em paz espiritual com os amigos e os familiares? JAE.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Os CTT são uma empresa que nos envergonha

A administração dos CTT não tem rosto na relação com os seus clientes. Mais grave ainda: a administração dos CTT não tem estruturas intermédias que falem com os clientes, que dêem justificações formais sobre o mau serviço que prestam, que eventualmente se disponham a devolver o dinheiro pelo serviço que cobraram e que não foi realizado, entre tantos casos que são de bradar aos céus para quem não tem outro remédio senão trabalhar com os CTT. 

O MIRANTE é um dos grandes clientes dos Correios. Desde a privatização que nos queixamos dos serviços. A nossa política de empresa, a exemplo da maioria da imprensa em Portugal, foi sempre seguida confiando no bom trabalho dos Correios para a fidelização dos assinantes. Quando os CTT eram empresa pública tínhamos sempre alguém do outro lado a dar a cara e a tentar remediar as situações mais complicadas. Desde que a empresa foi privatizada a relação é... tu precisas, então põe-te no teu lugar: paga e não bufes. Quem achar a linguagem demasiado chula não entende o que é editar um jornal para ser distribuído pelos CTT e, três dias depois, saber que o jornal ainda não chegou a casa dos assinantes quando há tão poucos anos chegava no dia a seguir.  

Só a cobrar a nova administração é severa. Um dia de atraso no pagamento da factura e carta na hora a informar que o contrato pode ser suspenso e que vão ser lançados os juros do atraso de um dia. 

O leitor está admirado com este tratamento de uma grande empresa na relação com os seus clientes? É bem pior do que aqui vai descrito. O Governo e os autarcas de todo o país sabem desta pouca vergonha. Mas veremos se o Governo de António Costa tem coragem de actuar em função dos números vergonhosos que a Anacom acaba de divulgar sobre a qualidade do trabalho dos CTT.

Comentário à notícia: https://omirante.pt/sociedade/2020-09-12-CTT-falham-servico-publico-de-qualidade-ha-4-anos-seguidos

Santarém é uma terra com pouca memória

Os 500 anos de Pedro Álvares Cabral são pretexto para recordarmos a fundação da Casa do Brasil em Santarém  e as guerras intestinas que os socialistas travaram na cidade que a fez ficar parada no tempo.   


O melhor presidente da câmara de Santarém a seguir ao 25 de Abril foi José Miguel Noras. Se não foi, o homem fez tudo para ser. Uma das suas iniciativas mais meritórias foi a fundação da Casa do Brasil em Santarém, que teve honras de visita do chefe de Estado brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Só quem não percebe nada de política, e anda nisto para tratar dos seus interesses pessoais em primeiro lugar, é que passa ao lado destes assuntos sérios que fazem a diferença entre cidades prósperas e cidades moribundas. O trabalho de José Miguel Noras com a fundação da Casa do Brasil esfumou-se assim que Rui Barreiro assaltou o poder em Santarém. O espaço foi transformado no gabinete da vereadora Idália Moniz e, adeus Casa do Brasil. Estamos a falar de políticos do mesmo partido (PS) mas, nesta altura, a briga foi tão grande que José Miguel Noras só não recebeu ordem de prisão de Rui Barreiro porque o senhor era político e não chefe da polícia. Rui Barreiro só não desviou o curso do rio Tejo ali junto à Ribeira de Santarém, onde José Miguel Noras foi lavar a cara quando era criança, porque a obra era para um século e Barreiro, na altura, já sabia que não vivia tanto tempo para ver. Um dia alguém vai ter que contar estas histórias, algumas delas documentadas em crónicas de jornal, outras ainda na memória de todos os escalabitanos, ou de alguns, porque Santarém é definitivamente uma terra com memória muito, muito curta.

Indo ao que interessa: ainda em 2019 alertei os responsáveis políticos de Santarém para a data dos 500 anos da morte de Pedro Álvares Cabral. Pus-me várias vezes a jeito durante 2020 para dar corpo a uma iniciativa editorial que fizesse jus ao descobridor do Brasil e dos quatro cantos do mundo. Falei com quem de direito mas, como sempre, em Santarém manda quem pode e obedece quem quer.

Enquanto a maioria das cidades do mundo retoma a normalidade, Santarém tem o pessoal na toca, a começar nos homens que mandam nos assuntos da cultura. É uma tristeza franciscana, porque é a continuação da política de terra queimada que vem do tempo do senhor Rui Barreiro. Ele acabou com a Casa do Brasil mais a sua vereadora Idália Moniz, e agora podem passar mais 500 anos que o trabalho de José Miguel Noras nunca mais vai ter visibilidade ou cumprir o seu desígnio. É assim que se trabalha em Santarém quando se trata dos interesses dos cidadãos e das comunidades e do seu património físico e espiritual. Tiveste a ousadia de pôr em prática uma boa ideia que pode dar muitos frutos e queres ficar na História à minha custa se eu der andamento ao teu trabalho? Então já vais ver como elas te mordem; toma lá uma vereadora espertalhona, cega de ambições, a precisar de protagonismo, e vai lá montar a tenda na Casa do Brasil que um dia ainda chegas a banqueira. E não é que chegou mesmo?

É assim a vida. Um dia destes Idália Moniz ainda convida Rui Barreiro para assessor do Banco Montepio e as contas ficam saldadas. Entretanto Pedro Álvares Cabral fará mais um ano de morto, e a Igreja da Graça continuará a ser lugar de culto, mas só para uma minoria, à memória de um dos mais valorosos portugueses de todos os tempos. JAE.


Comentário à notícia: https://omirante.pt/cultura-e-lazer/2020-09-14-Nao-sabia-que-Santarem-tambem-tinha-uma-Casa-do-Brasil

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Os papéis de fumar do Vergílio Alberto Vieira

Enquanto enrolava um cigarro lembrei-me dos “Papéis de fumar” de Vergílio Alberto Vieira, um grande poeta que, como todos os grandes escritores, escreve todos os dias para “não falhar ser”. 

O mercado do tabaco deixou de comercializar cigarros com filtro de mentol. Confesso que sou consumidor de dois cigarros por dia, certos dias, quando, depois do jantar, tento manter-me inspirado para adiantar trabalho para o dia seguinte. É um prazer que sei pouco recomendável mas garanto que me sabe pela vida. Com o fim do tabaco de mentol comecei a comprar filtros de mentol e a fazer o cigarro à unha. De um dia para o outro recuperei a memória do meu avô paterno a quem vi enrolar milhares de cigarros durante toda a minha infância e adolescência. O meu avô morava numa casa no fundo do meu quintal, e foi o homem que, à chaminé, me iniciou no mundo mágico da literatura, contando dezenas de vezes, sempre de forma diferente, a história do Touro Azul e do Menino da Mata e do seu cão piloto, entre outros contos infantis.

Um dia destes, enquanto fumava um cigarro mal enrolado, lembrei-me dos “Papéis de fumar”, uma antologia da poesia do meu amigo Vergílio Alberto Vieira, com quem almocei recentemente em Esposende para pormos a conversa em dia. Tenho mais de três dezenas de livros do Vergílio Alberto Vieira, todos com as dedicatórias que honram a nossa amizade, que não é muito antiga mas cimenta-se em anos de convívio, frequentando os mesmos lugares de tertúlia literária embora cada um no seu lugar.

Vergílio Alberto Vieira é um perfeccionista da palavra; um poeta culto, de culto também com os seus 70 anos, que escreve para ser lido sem a preocupação de ser compreendido por todos os seus leitores. A sua poesia atravessa o último meio século, desde “A margem do silêncio” de 1971, até “Todo o trabalho toda a pena”, que é a nova reunião da sua poesia, livro editado em 2016 pela “Crescente Branco”. É um autor que ao longo de meio século experimentou, sempre com êxito, a escrita diarística, teatro, romance,  poesia, literatura infantil, para além de ter escrito durante muitos anos crítica literária em vários jornais e revistas de referência. Os “Papéis de fumar”, que não tenho na minha biblioteca, e de que me lembrei agora a fumar um cigarro mal enrolado, são a prova da minha dedicação como leitor e amigo de confidências, que não excluem a má língua, e se fixam em memórias de experiências vividas em Terras do Demo, Amares, São Miguel de Ceide, Melo, São Martinho da Anta, Lisboa, Braga e Coimbra, entre tantos outros lugares, chão de poetas e romancistas cujas leituras marcaram e marcam a viagem da nossa vida que, no caso do Vergílio Alberto Vieira vai sempre desaguar na foz do Rio Cávado e, no meu caso, numa ribeira que nasce na charneca e vai desaguar no Tejo, na Chamusca, noutros tempos bem distantes o meu mar da Figueira da Foz.

O último livro de Vergílio Alberto Vieira é um diário; “Minha ex-mulher a solidão”, Editora Crescente Branco, 2020, de onde copiei este poema que é um dos mais belos que já li em língua portuguesa:

AS MÃES;
De as não terem já só os filhos sabem
Que céus invocam, quando a noite cai;
Na terra estreita em silêncio cabem
Perdida ‘strelas de que a luz se esvai.

P’lo olhar ausente a que infinitas abrem
Passagem a caminhos de quem vai
Hão-de voltar que, das mães, o maior bem
Foi ser homem da casa sem ser pai.


Se nada teve o que não teve amor,
E o amor foi tudo o que do mundo quis
Quem do mundo só teve desamor,
Que jamais seja arrancada pela raiz
 A árvore, que nasceu para ser dor.
E, nem abatida, deixou de ser feliz.

JAE.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A pandemia, a justiça e o novo filme de Carlos Reygadas

O advogado João Correia anda a publicar textos sobre justiça que são de leitura obrigatória. Oportunidade para recordarmos  “O Processo”, de Orlando Raimundo, e o último filme do realizador mexicano Carlos Reygadas. 


O estado de pandemia em que vivemos também serve para percebermos que o mundo pode voltar ao tempo da pedra lascada em poucos anos se começar a faltar em casa o essencial para nos alimentarmos em família.

No meu bairro, que tem mais população que todas as cidades maiores do Ribatejo, trato por vizinho o sapateiro que tem loja e oficina a 10 minutos a pé de minha casa. Fui lá com umas sandálias para consertar e uma mala com o fecho meio arrombado. Coisa para uma agulha e dois centímetros de linha. “São 20 euros vizinho. Se pagar já, daqui a duas horas pode vir buscar. Tenho muito trabalho mas dou prioridade a quem paga à cabeça”. E assim foi. Sem factura, e sem remorsos, porque os mais ricos têm as empresas nos paraísos fiscais e quando querem lavar dinheiro são mais habilidosos que os traficantes de droga.


Em tempo de Feira do Livro, em Lisboa e no Porto, tiro o chapéu a um filme que ainda está nas salas de cinema: “O nosso tempo”, de Carlos Reygadas; são três horas de rendição absoluta pelo cinema de autor. O filme é quase todo rodado num rancho onde se criam touros bravos, que são parte importante para compreendermos a magnitude da trama do filme. 

Por ter mamado nos últimos meses muitos filmes sem qualidade nos canais tradicionais rendi-me à Netflix, embora saiba que há outros bons canais de filmes por assinatura. Nos últimos dias vi dois documentários; um sobre a vida da directora da Vogue italiana, Franca Sozzani, e outro sobre Cuba, que visitei durante quase um mês há 20 anos, do americano Jon Alpert, que me deixaram sem palavras e sem sono. O cinema documental é o meu género preferido; faço jus também à literatura autobiográfica que prefiro a todos os outros géneros, incluindo agora também a poesia.


Quem anda distraído sobre o exercício da Justiça em tempo de pandemia devia estar atento aos textos de opinião que o advogado João Correia escreve no jornal Público. É um sério aviso à navegação. Alguns jornalistas de O MIRANTE sentiram na pele durante sete anos, pelo menos, todos os problemas que ele aflora sobre a Justiça, que “não é a manifestação da vontade dos titulares do direito de decidir”, mas sim “o resultado da actividade de uma comunidade de trabalho reunida em tribunal para obter uma decisão justa e em prazo razoável”. Os jornalistas de O MIRANTE foram vítimas durante sete anos de um advogado da nossa praça, Oliveira Domingos, que respondeu a uma notícia que dava conta do seu pedido de quase meio milhão de euros de indemnização à Câmara de Santarém, com providências cautelares que nos proibiram de escrever sobre ele durante todo o tempo que decorreu o processo, que só acabou no Supremo com a nossa absolvição. Oliveira Domingos gastou uma pipa de massa nos tribunais a acusar os jornalistas de O MIRANTE; mas para quem, aparentemente, ganhou dinheiro fácil da Câmara de Santarém, o que teve de pagar foram trocos. O jornalista Orlando Raimundo conta todo o esquema kafkiano num livro com o título “O Processo”, editado em Setembro de 2018, que pode ser adquirido em qualquer livraria por quem se interessa por estes assuntos. JAE.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

A pandemia ajuda a matar a democracia (2)

A democracia como a conhecemos antes da pandemia também está em confinamento. Vamos empobrecer pessoalmente mas, mais grave do que isso, vamos ver empobrecer lentamente as nossas instituições porque vai haver menos cidadania activa e, logo, menos vigilância sobre os oportunistas, os sendeiros, os sabujos que não vão perder a oportunidade de mostrar a sua natureza.  


Recupero o título de uma crónica de Junho para voltar ao tema da pandemia e do que vivemos hoje graças a um vírus que voltou a fazer do planeta Terra uma casca de noz e do povo, ricos e pobres, um rebanho de ovelhas tresmalhadas. A velha máxima de que em tempos de crise só devemos começar a comprar propriedades quando o sangue correr nas ruas aplica-se igualmente, em termos de crueldade, ao que hoje se passa com a grande maioria dos cidadãos que precisam da administração pública para renovarem o livrete de um carro ou simplesmente para tratarem de um documento que lhes faz tanta falta como o pão para a boca.
Na grande maioria dos casos a administração pública não funciona, está em teletrabalho, só alguns advogados conseguem abrir portas e têm acesso aos serviços; numa palavra: a democracia para alguns cidadãos está em período de confinamento.
Quanto mais afundarmos na crise mais os bancos tomam conta da nossa economia; quanto mais precisarmos de financiamento para mantermos as nossas empresas, ou as nossas responsabilidades com a compra da casa ou do carro, ou da prestação do lar para os nossos familiares, mais ficamos nas mãos dos agiotas e menos tempo dedicamos a exercer a cidadania. É nestas alturas que o “é fartar vilanagem” ganha dimensão; por cada cem cidadãos apanhados pelos efeitos da pandemia haverá meia dúzia deles que espreitam a oportunidade de os sugarem até ao tutano, ao serviço dos bancos mas também ao serviço do Estado, atrás de um balcão de penhores mas também pela calada da noite.
No início da pandemia muito se escreveu e falou sobre o regresso ao campo e à agricultura familiar. Pura ilusão. Ao “nada será como dantes” vai vencer outra vez o “tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. O interior vai continuar a despovoar-se, o casario vai continuar a desvalorizar-se, o património vai valer cada vez menos e deixar mais pobres quem apostou em recuperar as suas casas, em manter as suas propriedades, em investir o seu pé-de-meia na economia local. “O capitalismo que mata”, nas palavras do Papa Francisco, está cada vez mais inteligente e protegido. Os escândalos financeiros à volta das instituições bancárias, as facilidades concedidas às empresas que se servem dos paraísos fiscais, empobrecem cada vez mais o Estado e obrigam ao aumento de impostos sobre os cidadãos indefesos que trabalham no duro para não morrerem na praia.
Vamos empobrecer pessoalmente mas, mais grave do que isso, vamos ver empobrecer lentamente as nossas instituições porque vai haver menos cidadania activa e, logo, menos vigilância sobre os oportunistas, os sendeiros, os sabujos que não vão perder a oportunidade de mostrar a sua natureza.
Para animar o circo em que se transformou a sociedade capitalista, o Benfica e a Cristina Ferreira enchem os noticiários por causa das transferências milionárias. A luta pelas vitórias nos relvados, e pelas audiências nas televisões, faz esquecer o que nos espera com a evolução do escândalo do BES, o financiamento da TAP, a discussão à volta do contrato dos CTT para o serviço postal universal que termina em Dezembro de 2020, a aposta cada vez mais duvidosa no novo aeroporto no Montijo, a regularização do rio Tejo, o ataque às culturas intensivas, a falta de água nas torneiras e as políticas agrícolas e florestais que deviam ser um desígnio nacional. JAE.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

A importância de se chamar Joaquim Veríssimo Serrão

Joaquim Veríssimo Serrão deu nome a um Centro de Investigação em Santarém que é uma fachada para a promoção de muita gente, entre elas a do seu presidente. Martinho Vicente Rodrigues aproveitou-se da instituição para publicar a sua História de Santarém e ignorou a de Joaquim Veríssimo Serrão que está esgotada e pede reedição há dezenas de anos.


Agustina Bessa-Luís, que morreu com 96 anos no dia 3 de Junho de 2019, esteve cerca de uma década a sofrer o resultado de um AVC que a retirou para sempre da vida pública. Quando morreu a família já tinha conseguido a publicação e republicação da maioria dos seus livros, e muitos outros inéditos tinham sido publicados, nomeadamente “Ensaios e Artigos (1951-2007)”, em três volumes, reunindo mais de mil artigos publicados na imprensa.
Joaquim Veríssimo Serrão, 95 anos, está a viver uma situação muito parecida com a que viveu Agustina. Internado há uma década num lar, em Santarém, os seus problemas de saúde afastaram-no para sempre da vida pública. E o que é que aconteceu à sua obra? Nada. Quase nada comparado com aquilo que era suposto ter acontecido para quem escreveu 18 volumes da História de Portugal, é autor de um dos livros mais importantes para compreender o antes e depois do 25 de Abril de 1974 (Confidências no Exílio), e autor de milhares de outras comunicações, artigos, livros, entre centenas ou milhares de cartas que marcam a História de Portugal dos últimos 70 anos.
O nome e a obra de Joaquim Veríssimo Serrão deram origem a um Centro de Investigação em Santarém que reúne a maior parte do espólio do historiador escalabitano. É de lá que todos esperam que comece a sair a republicação de alguns dos seus livros, o estudo da sua obra, a reunião da sua correspondência, enfim, aquilo que ele merece dos seus pares ou de quem ficou responsável pela sua obra, nomeadamente aquela que nunca viu a luz do dia, e é tão importante para compreendermos o tempo em que vivemos. Volto às “Confidências no Exílio” só para dizer que o livro foi censurado na altura e muitas das cartas, talvez as mais importantes, ficaram de fora por razões que têm a ver com o tempo político que se vivia no ano de 1985.
O que me leva a escrever esta crónica é a existência de um livro, Santarém-História e Arte, da autoria de Joaquim Veríssimo Serrão, editado em 1959, reeditado mais duas vezes mas esgotado há muitos anos para lamento dos seus leitores, e até lamento público de alguns dos seus familiares. A história não acaba aqui. O presidente da Fundação Joaquim Veríssimo Serrão é o professor de História, entretanto reformado, Martinho Vicente Rodrigues, que também se dedica a escrever livros. Foi o que acabou de fazer editando a História de Santarém, um tijolo com uma lombada de seis centímetros, edição de luxo, em capa dura, remetendo para o lixo a História de Santarém, de Portugal e da bibliografia escalabitana, o livrinho de Joaquim Veríssimo Serrão, impresso nos tempos de antanho em papel de embrulhar sardinhas.
É importante que se esclareça que o calhamaço foi construído à conta de uma arte antiga de satisfazer leitores que procuram livros nas estantes pelo volume da lombada; o livro foi composto num corpo de letra grandinho, com espaçamentos entre parágrafos que só se usam em livros infantis, profusamente ilustrado, coisa nunca vista em Portugal, nem no mundo, o que faz dele um tijolo digno de admiração para bibliófilos liliputianos.
A história que estou a contar é triste e deixa-me triste. Não sei se para Agustina Bessa-Luís, ou para Joaquim Veríssimo Serrão, interessa o amor e o desvelo da família, e dos leitores, depois da vida passada, ou do melhor da vida já ter acabado.
Eu é que não durmo descansado desde que iniciei a escrita deste texto e o deixei a marinar durante semanas. Mesmo assim ainda não tive tempo de ler a História de Santarém do presidente do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão, livro editado e pago pela instituição de que é presidente, certamente com o conhecimento dos seus pares, que sabem tão bem como eu o quanto o velho Joaquim gostava que o seu livro, Santarém-História e Arte, fosse reeditado mais uma vez e pudesse ser conhecido pelas novas gerações.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Os sonhos pesados de António Rodrigues com Pedro Ferreira

Pedro Ferreira andou cerca de vinte anos a lavar com água das malvas o fiofá, o olho cego, o fuleco de António Rodrigues; nos últimos anos é o inimigo público do seu ex-camarada que o quer apear do lugar e que, pela calada, lhe faz a vida negra. 


Torres Novas tem um novo movimento político dirigido por António Rodrigues que, nos últimos anos, tem feito um chinfrim dentro do aparelho do PS para voltar a ser candidato à câmara. Como no aparelho do partido ninguém o leva a sério, António Rodrigues resolveu criar um movimento político em desespero de causa.
Para que os leitores percebam melhor o que vai na cabeça deste ex-autarca, a presença de O MIRANTE na conferência foi motivo para reclamar com o jornalista, apontando o dedo, dizendo que ninguém nos tinha chamado. Um rotundo convite a que fossemos à nossa vida e deixássemos os assuntos de Torres Novas nas mãos dele e da meia dúzia de amigos que, com ele, prometem acabar de vez com os mouros em território torrejano.
Conheço António Rodrigues há mais de 30 anos. Assisti a muitas iniciativas onde o antigo autarca era um cidadão no papel de ilustre presidente de câmara, para logo a seguir se comportar como um tontinho a dizer e a fazer disparates que faziam corar de vergonha.
António Rodrigues é um homem habituado às facilidades do sistema, e trata por tu muitos ex-governantes, e gente ligada a interesses económicos. Não é por lhe terem respeito que ele é tu cá tu lá com certa gente; é por não ter vergonha de exibir o ruído da sua voz e da sua presença, não ter consciência do quanto é ridículo em algumas das suas atitudes, quando usa com ligeireza linguagem chula ou a sua língua de trapos para classificar os seus inimigos políticos; quando, com as suas artes e manhas, se comporta como um artista de novela que tem que ganhar a vida representando. António Rodrigues é verdadeiramente um político sem vergonha, que ora arrota postas de pescada como daí a pouco está a pedir batatinhas aos amigos influentes.
De António Rodrigues podemos esperar tudo: as maiores baboseiras sobre um cidadão exemplar, as maiores foleirices sobre um adversário político, as maiores parolices sobre assuntos que exigem respeito e sentido de Estado. Agora que apresentou um movimento político, é mais que certo que vai ser candidato. Para perder as eleições, como aconteceu noutros tempos a Joaquim Sousa Gomes, em Almeirim, a José Cunha, no Entroncamento, a Pedro  Marques, em Tomar, tudo em épocas diferentes mas pelas mesmas razões que fazem com que António Rodrigues não durma com o peso dos sonhos de voltar a querer ser presidente da Câmara de Torres Novas.
António Rodrigues sempre sonhou ser o Xanana Gusmão de Portugal, depois de perceber que não podia ser o novo D. Sancho I. Vai acabar a sua vida política a chorar baba e ranho pelo lugar de Pedro Ferreira, que ainda por cima é um homem sem vaidades, sem ressentimentos, um autarca que jamais pôs à frente dos interesses do seu concelho os seus interesses pessoais.
Não acabo sem lembrar que Pedro Ferreira andou cerca de vinte anos a lavar com água das malvas o peidador, o fiofá, o olho cego, o fuleco de António Rodrigues, ora como vereador, ora como vice-presidente da câmara. Cada um de nós que imagine até onde é possível fantasiar o que é que Pedro Ferreira viveu durante vinte anos, diariamente, aturando um camarada que desde o início de 2017 anda a fazer dele inimigo público. Pedro Ferreira pode não ser o melhor político do mundo mas é, certamente, um político de confiança, um homem honesto, uma personalidade que merece o respeito dos torrejanos. Não por acaso ganhou as últimas eleições com maioria absoluta. Não por acaso conseguiu suportar 20 anos de trabalho sob as ordens de Rodrigues, e agora faz-lhe frente, obrigando o seu ex-camarada a mostrar o quanto o Poder, para ele, tem pózinhos de perlimpimpim. JAE .

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A pandemia ajuda a matar a democracia

A pandemia fragiliza as famílias, os líderes e acima de tudo os cidadãos mais idosos. O vírus faz cobarde o mais destemido dos nossos amigos.


Stefan Zweig conta na sua autobiografia “O mundo de ontem” que se lembra de ver Adolf Hitler a dirigir comícios nos largos da cidade de Viena para meia dúzia de apoiantes. Depois foi crescendo em discurso, e em apoiantes, até se tornar o maior criminoso da História da Humanidade. É verdade que passaram cem anos e a civilização evoluiu mais nas últimas dezenas de anos do que em muitos séculos. Mas a modernidade, que em alguns casos equivale à descoberta da roda e do fogo, não nos deve impedir de olharmos para o passado como lição, quanto mais não seja para não baixarmos as guardas: nós, que exercemos profissões em que o trabalho tem muito de cidadania, e aqueles que, noutras frentes, têm tantas ou mais responsabilidades do que nós no exercício do poder e na defesa da democracia.
A pandemia fragiliza as famílias, os líderes e acima de tudo os cidadãos mais idosos que dependem de uma instituição de acolhimento. Não são só os velhos que estão nas mãos de gente sem escrúpulos que gere lares ilegais, com o Estado a demitir-se das suas responsabilidades. Portugal ganhou nos últimos anos na educação, principalmente no ensino pré-escolar e universitário, o mesmo, ou ainda mais, do que perdeu para o apoio à terceira idade.  Está à vista de todos. Bastou um vírus que, em teoria, só é mortal para quem tem graves problemas de saúde, para cairmos todos por terra e vivermos com o sentimento de que vamos morrer que nem tordos, se não for às mãos do Diabo será aos pés dos homens dos impostos, ou dos bancos, ou dos DDT (donos disto tudo), só para lembrar alguns dos tentáculos que nos cercam.
O que se passa na pequena aldeia do Arripiado, Chamusca, é pior que a Covid-19 e não vemos ninguém na defesa daquela gente. A justiça deu um sinal mas todos sabemos que os monstros mexem-se devagar. Os políticos estão cagados de medo e não têm dinheiro para contratarem segurança privada que substitua a GNR. Má sorte ter nascido no Arripiado e ter como presidente da Câmara da Chamusca um tipo tosco e analfabeto.
Toda a sociedade está refém de um vírus que fecha portas e janelas e até faz cobarde o mais destemido dos nossos amigos. Mais do que enfraquecer a democracia, o vírus enfraquece as relações, põe a nu as nossas mais pobres ambições, mostra que somos muito menos resistentes numa relação de amizade, ou familiar, do que na luta contra a doença ou no medo da doença.
Não me revejo nos políticos que participam em programas de humor na televisão com o fato de fim-de-semana, nos poderosos que se juntam para festejar calendários de jogos de futebol; nos iluminados que vão para as avenidas empunhar bandeiras políticas e comemorar dias especiais; acho que o vírus já matou e vai continuar a matar de medo muita gente que achava que fazia parte das estatísticas que apontam para uma esperança de vida acima dos 80 anos. A culpa será menos do vírus e mais daqueles que nos metem medo com o vírus, que nos confinam em Abrantes pelas mesmas razões que nos mandam para casa em Odivelas ou na Amadora, por aqueles que agora mesmo estão a decidir nos gabinetes de Lisboa quais as empresas que vão morrer e os empresários que vão continuar a dominar o sistema.
O autor de que falo no início deste texto viveu as duas guerras mundiais a fugir da Áustria para Inglaterra e, mais tarde, para o Brasil.  Foi amigo de Rilke, Freud, Joyce, Mann e tantos outros artistas e humanistas da época. Dizia ele que fugia de um mundo cruel e louco para poder sobreviver, embora depois sucumbisse às feridas do seu tempo.
Para quem sente que a leitura é um remédio milagroso contra todas as doenças, que entretanto reapareceram com a chegada do coronavírus, recomendo a leitura da sua autobiografia; poucas vezes na vida compreendi, durante a leitura deste livro, o mundo em que não vivi. JAE.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Um país de Sargentos e de 10 milhões de carecas

A greve dos CTT seria caso de polícia se vivêssemos num país de gente responsável e solidária. Ao contrário: vivemos num regime político em que, tal como na tropa, quem manda são os sargentos. 


A greve dos Correios, que aconteceu recentemente, é um bom exemplo do país em que vivemos e do mau governo da Nação. Os sindicatos, que agora já não estão pressionados pelo PCP, porque a gerigonça acabou, convocaram uma greve pornográfica para uma sexta-feira a seguir a dois dias feriados. Mas, antes dos dias feriados, portanto, antes do inicio de umas férias a meio do mês, alguns concelhos já não tiveram distribuição de correio, como aconteceu na cidade de Santarém, só para dar um exemplo.
A greve, imagine-se, é por causa do pagamento do subsídio de refeições em cartão. Podia ser pelo aumento dos vencimentos, pela política empresarial suicida da administração dos CTT, pela irresponsabilidade dos gestores que mandaram às urtigas o serviço público postal para ganharem dinheiro como banqueiros. Mas não foi por nada disto; o pretexto foi a ninharia, ou seja, o grande objectivo foi prejudicar os cidadãos e as empresas que precisam de um serviço postal de qualidade. A greve é um direito constitucional, mas assim, com pretextos como este, num calendário como o escolhido, faz lembrar um país em auto-gestão. É certo que nunca mais voltaremos a ter um serviço postal como tínhamos antes da privatização dos Correios. E isso é culpa do Governo do PS e do PSD que, sendo partidos de regime, não sabem reconhecer o que são empresas de bandeira, como deveria ser o caso dos CTT, uma empresa lucrativa até cair nas mãos dos privados, que se aproveitam do Estado para fugirem às suas responsabilidades, perante 10 milhões de pessoas carecas de saberem que isto não vai lá com paninhos quentes e abracinhos de Marcelo Rebelo de Sousa.
Não sei se a classe política, de onde começam a emergir novos líderes, como é o caso de André Ventura, não merece o país que temos. Desde Cavaco Silva a António Guterres, dois dos mais conhecidos governantes do regime democrático que sucedeu a Salazar e Marcelo Caetano, nenhum deles teve coragem e inteligência política para fazer a reforma do Estado.

Quem trabalha, e tem que lidar com a administração pública, sabe que, a exemplo do que se passa nas instituições militares, quem manda nos gabinetes dos ministros e na administração central são os sargentos, ou seja, aqueles que controlam a máquina, que defendem com unhas e dentes as suas corporações, que não cedem um milímetro quanto aos seus privilégios e dos seus camaradas de partido. Na maior parte dos casos, os governantes e os seus homens de mão nos organismos do Estado são peças que qualquer sargento ao serviço de interesses corporativos facilmente avaria ou põe na oficina para revisão prolongada. Eles mandam no dinheiro, mas também nas prioridades; são eles que escolhem quem tem acesso ao dinheiro mas também à honra de ser tratado de igual para igual. Na maioria dos casos passamos o nosso tempo de vida na parada do quartel, ao sol e à chuva, como recrutas, à espera da hora do barbeiro, do acesso às camaratas e na esperança de que o dia seguinte não seja de chuva. JAE.