quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Morreu o “Quim” Machado e o povo da Chamusca voltou a chorar


Uma crónica que também é notícia sobre a vida e a morte de Joaquim Ricardo Banha Machado.

Morreu com 62 anos, na Chamusca, Joaquim Ricardo Banha Machado, farmacêutico de profissão, considerado um profissional de corpo inteiro e um homem de bom coração. 
Com a morte de Joaquim Cabeça, o médico dos pobres, na altura em que ter médico de família era um luxo (já caminhamos para lá outra vez), Joaquim Machado ocupou  o seu lugar no coração do povo da Chamusca  e, por mérito próprio, tornou-se o amigo e conselheiro de meio mundo acudindo a pobres e a ricos, a doenças e a simples conselhos, como se a sua vida estivesse predestinada a servir a vida dos outros. 
Há meses que se sabia da grave doença de que padecia. Há semanas que os ouvidos mais atentos das pessoas mais amigas temiam ouvir os sinos da igreja e o seu toque a finados. Cada vez que tocavam era quase natural perguntarem  em surdina quem tinha morrido sempre com o medo de ouvirem dizer que tinha sido o Machado da farmácia.
Desde que se soube do seu último internamento que se esperava o pior. “Ele ajudou tanta gente e agora ninguém o pode ajudar a ele”. “Está condenado, dizem os médicos”, ouvia-se por toda  a Chamusca ainda há dias na boca de pessoas que, para lhe prestarem homenagem antecipada, contavam antigas conversas, memórias de há trinta anos mas também de há poucos dias. Nalguns casos, como podemos testemunhar, a saudade já se manifestava por simples palavras roubadas a propósito do avio de uma receita ou de um sorriso maroto arrancado à custa do seu superior pessimismo sobre o estado actual do seu Sporting. 
“Pagou receitas do bolso dele a muita gente pobre; trabalhou fora de horas e só Deus sabe o que é que ele fez por tanta gente”; foi isto que ouvimos e testemunhamos ao longo dos últimos dias; mas nada disto é segredo ou conversa fiada; o Quim Machado era verdadeiramente uma alma boa e um ser humano solidário sem precisar que lhe chorassem no colo ou lhe beijassem as mãos. Fazia o que tinha a fazer por dever de ofício e porque parece que Deus tem sempre alguém na terra para ajudar naquilo que Ele não pode ajudar por ser Deus e ter muito trabalho com as divindades.
No passado domingo, por volta das 13 horas, recebemos a notícia da sua morte. Tinha acabado de fechar os olhos e o coração tinha estourado finalmente. Foi antes de almoço. Foi antes de misturarmos na boca o vinho  com o pão ainda quente do forno a lenha. Ficamos durante alguns minutos à espera de ouvir tocar os sinos. Depois esperamos uma hora; depois esquecemos o tempo e acabamos também por esquecer os sinos da igreja da Chamusca que, segundo nos contaram, tocaram às  quatro da tarde.
Eram mais ou menos 17 horas de segunda-feira quando as pessoas que enchiam a igreja matriz da Chamusca começaram a sair da missa de corpo presente pela alma do Joaquim Ricardo Banha Machado, com as olheiras bem fundas, os olhos cheios de água e os semblantes carregados até ao sobrolho. Na rua havia mais gente do que aquela que cabia na igreja. O padre, que é novo na terra, e não chegou a conhecer o Senhor Machado, lembrou os presentes que lhe chegou aos ouvidos que o defunto “era pessoa de bem de alma”, frase que repetiu no cemitério antes do corpo descer à terra para avisar que fazer o bem tem os seus segredos e que o Joaquim fez o bem a muita gente que ninguém sabe quem, nem o quê, e é nisso que está a grandeza do Homem.
Quando a urna desceu os degraus da igreja os ricos, os pobres e os remediados choravam todos as mesmas lágrimas de água e sal que se afogavam no lenço ou caíam simplesmente pela cara abaixo. O carro funerário deslizou e logo se percebeu que ia passar em frente da farmácia S. Pedro onde o Quim trabalhava. Breve paragem no local para se ouvirem outra vez os choros baixinhos dos que não têm vergonha de chorar mas têm medo de incomodar com o barulho do choro. E para trás ficava a farmácia e o lugar onde o corpo foi velado, embora por pouco tempo, e onde se deslocaram muitas pessoas idosas de bengala e de andarilho. Gente que já não pode com o corpo mas que mesmo assim quis prestar homenagem ao  amigo das horas difíceis que é quando a carne dói e a alma não aguenta.
Fez-se um cortejo como já não é hábito acontecer em funerais. O trânsito não circulou durante o trajecto do Largo da Misericórdia até à curva da rua estreita que dá acesso ao cemitério da Chamusca. Junto ao carro só se murmurava. Cá atrás tocavam telemóveis, as pessoas cumprimentavam-se, os automobilistas iam interagindo com as pessoas que conheciam, o senhor José Ferreira empurrava a bicicleta e puxava pelos sapatos como se fossem uns chinelos; o Senhor Manuel puxava pelas pernas tortas e balançava o corpo como quem faz exercício na água; muita gente de braço dado, especialmente as mulheres, mas também muitos homens sozinhos, de cabeça baixa e mãos nos bolsos a contarem até cinco. Reconhecemos gente que já não víamos há anos e que nos pareceram muito mais velhas; reconhecemos outros que vieram de longe e que pareceram mais novos. Ia no funeral gente de todos os extractos sociais; os mais humildes dão sempre mais nas vistas porque vestem o fato novo; não usam telemóvel nos funerais; espelham melhor a dor dos outros porque a sentem como desgraça própria. Beiço grande e ombros caídos nos homens mais velhos; sinal de luto mas também de resignação nos homens de meia idade; costas curvadas e corpo balançado para a frente de forma a vencer o longo caminho era como andavam os mais velhos a quem o Quim Machado certamente fará mais falta com esta despedida tão apressada para quem tinha só 62 anos e gostava tanto do seu trabalho, da família e dos amigos.
Quando o caixão desceu à terra era quase noite. Já havia no céu uma lua em quarto crescente que desenhava um rosto de criança a sorrir. A Susana, filha única do Joaquim Machado, terá ouvido certamente algumas pessoas  darem-lhe os pêsames dizendo que ela devia estar orgulhosa do pai que tinha. A mãe do Quim, debruçada sobre o caixão, parecia chorar na voz baixinha do padre que encomendava o seu filho a Deus pela última vez ao cimo da terra. Depois de se ouvirem as primeiras pazadas de terra  a caírem em cima do caixão foi-se o murmurinho que ficou de duas avé marias cantadas como num coro de igreja; e começaram a ouvir-se pessoas a tossir, gente a desmobilizar que quase não faziam peso ao chão mas geravam um som que parecia vir de um vespeiro, de uma frase de Leibniz que diz que “quando canta para si, Deus canta álgebra”.
George Steiner diz que “morrer é deixar de conversar” no seu mais recente livro editado pela Relógio D’ Água, “A poesia do Pensamento”. Há mil razões para continuarmos a procurar na literatura uma resposta para a perda. O próprio Steiner cita Holderlin neste seu livro para concluir que “ser só e sem deuses é a morte. Nem o próprio ser humano que mais amamos pode pensar connosco”.
Este texto é uma tentativa de ouvirmos ainda a voz do Joaquim Machado a dar troco ao José “Prior” e aos outros amigos com quem fazia tertúlia e comentava os últimos desaires do seu Sporting; uma tentativa de libertar o espírito da agitação e da angústia, pois, como dizia Lucrécio, “a morte não pode ser vivida”, “situa-se inofensiva fora da existência” (Steiner).

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Um livro que conta a história de um rio*

Quase toda a gente tem a mania de dizer que vivemos num mundo global; que viver em Tóquio ou Londres é como viver em Mação ou Abrantes. Os extremos tocam-se. Pode ser assim na teoria; na prática é diferente. Ninguém é de lugar nenhum do mundo se um dia não for da sua própria terra; cidadão da Ortiga ou de qualquer outra cidade ou aldeia do mundo.
João Filipe, o neto do “Ti Zé Povinho”, não quis deixar morrer as memórias que formaram o Homem e o cidadão. E, aproveitando a paciência, a arte de escrever e de contar que Deus lhe deu, exercendo uma actividade cultural no verdadeiro sentido da palavra, que é transmitir conhecimentos dos valores e dos comportamentos que se aprendem de geração em geração, prestou uma singular homenagem ao povo de Ortiga escrevendo um livro que é uma homenagem ao seu povo e à sua História, sendo ao mesmo tempo uma homenagem ao rio da nossa infância que é sinónimo de lazer, trabalho e prosperidade.
Ser ortiguense, para alguns, é muito mais importante que ser lisboeta, parisiense ou londrino. Sabem isso os que nasceram numa terra e têm orgulho, não só do lugar onde nasceram como do lugar onde nasceram os seus avós e os seus pais que testemunham esse amor à terra e às tradições e os valores culturais que, esses sim, são tão importantes localmente que ganham o estatuto de património na Ortiga ou em Lisboa.
Ao lermos o livro de João de Matos Filipe podemos recuar a 1583 e ficamos a saber pela pena do autor sobre a história da fundação da aldeia da Ortiga mas também sobre a história do Caneiro de Abrantes que não deixa de ser significativa para compreendermos os homens de hoje tão entretidos com a política do betão e dos interesses milionários das companhias aéreas.
Ao ler a carta de João Antonelli ao Rei Filipe II, para que o Caneiro de Abrantes deixasse de ser um empecilho ao desenvolvimento do Rio, recuei três dezenas de anos e lembrei-me das promessas mais recentes dos nossos políticos que organizam “casamentos e baptizados” em nome da regularização do leito do rio e, que eu saiba, tudo não passa de politiquice na sua mais amanhada forma de se evidenciar.
Este livro pode ser lido pelos ortiguenses que, por ele, podem encher o peito de orgulho mas também pode ser lido pela generalidade dos portugueses que se interessam pelos problemas do país e, especialmente, pela sua história de ontem e de hoje.
O Caneiro de Abrantes faz-me lembrar, salvo as devidas distâncias e o contexto, a política de extracção de areia que está implementada no leito do rio Tejo e a forma como as autoridades vigiam as marachas e os usurpadores do espaço tão importante para manter a segurança de pessoas e bens. E ao tomar consciência da realidade do rio de há 500 anos, lendo o livro de João de Matos Filipe, não pude deixar de sorrir com a leviandade com que hoje aceitamos a forma como o rio é cuidado e preservado; como muitos de nós vão fazer vida para Lisboa e quando regressam às suas terras, seja na Ortiga ou na Chamusca, não sabem fazer mais nada do que chegar ali abaixo e “mijarem para o Tejo para ver se ele cresce”.
JAE

Texto lido na apresentação do livro de João Filipe na Ortiga.

Comentário à noticía: http://semanal.omirante.pt/index.asp?idEdicao=581&id=88386&idSeccao=9906&Action=noticia