quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Em defesa da Casa Memória de Camões em Constância


Em defesa da Casa de Camões, do trabalho ímpar de Manuela de Azevedo, e da inutilidade de certa gente que faz a gestão dos cargos e dos dinheiros públicos sem critérios e sem honra. E uma visita a José Saramago que depois do episódio do DN fez justiça à sua antiga companheira de redacção no Diário de Notícias.


A Casa Memória de Camões, em Constância, começou a ser notícia em O MIRANTE nos tempos mais recentes com a divulgação de uma comunicação que o actual director, António Matias Coelho, fez numa altura em que o espaço serviu para uma reunião do conselho geral da Nersant e para uma exposição documental da história da Fábrica do Caima. Daí para cá voltámos a falar com o responsável pela Casa Memória e a dar-lhe voz já que o espaço foi esquecido pelos poderes políticos e públicos.
Luís Vaz de Camões é a maior figura da cultura portuguesa, dá nome ao Dia de Portugal e não tem qualquer casa museu no território onde nasceu e foi enterrado em vala comum. Há meses andei por Florença e fui visitar a casa de Dante que é só um repositório de recordações da época em que viveu, mais umas esculturas de artistas dos nossos tempos e pouco mais. A casa foi adaptada para museu e fica situada na zona medieval da cidade. Reza a história que parte do edifício pertenceu à família do poeta que nasceu em 1265 e é considerado o pai da língua italiana.
Depois da visita, que me deu apenas o prazer da viagem no tempo, perguntei-me: se Lisboa despreza a memória de Camões por que é que o Estado português não apoia a Casa de Camões em Constância, onde já foi gasto muito dinheiro e o poeta viveu desterrado e escreveu alguma da sua lírica mais bela e memorável?
Quero crer que as razões não são problema do Estado português mas do estado em que vivemos. Os políticos de Constância e o conjunto dos autarcas da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo agradecem e são reconhecidos por aquilo que lhes cai no colo mas não têm colo suficiente para lutar por um projecto desta envergadura. Talvez tenham razão. Camões ainda hoje é difícil de ler e a sua história de vida é coisa que nem lembra ao diabo quanto mais a gente santa como aquela que os políticos contrataram para lhes tratar da papelada no Terreiro do Paço como é o caso do ex-presidente de Vila Nova da Barquinha, o burocrata Miguel Pombeiro.
Sei que é fácil criticar e mais fácil ainda dizer mal. Mas também é difícil ficar calado perante tamanha indiferença do poder político a um trabalho que demorou metade da vida de Manuela Azevedo que ao longo de dezenas de anos conseguiu a proeza de angariar financiamento para erguer sobre ruínas quinhentistas um edifício de cinco pisos que tem todas as condições para ser na Vila Poema a casa do maior poeta português que, a exemplo de Dante, foi responsável pela renovação da língua portuguesa e pela fixação de um duradouro cânone.
Manuela de Azevedo morreu aos 105 anos, foi a primeira jornalista profissional em Portugal. Dedicou toda a sua vida à cultura portuguesa. Ao contrário da maior parte dos intelectuais não lutou só pela sua obra. Foi à luta e conseguiu financiamento do Estado para a Casa de Camões que, a cada dia que passa, é um sonho que parece ter morrido com a mulher a quem José Saramago, um dia, em Constância, depois da representação da sua peça de teatro “Que Farei Com Este Livro”, que fala de Camões, cumprimentou, tirando da cabeça a sua boininha: «Muito obrigado, senhora dona Manuela, a senhora é melhor do que eu.» ( Retirado de uma entrevista ao DN). JAE.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Nomes de Guerra: Almada Negreiros, Nuno Rebocho e Arlindo Consolado Marques

Nomes de Guerra para dar corpo a um texto que fala da morte do jornalista e escritor Nuno Rebocho e de Arlindo Consolado Marques, o guardião do rio Tejo.


A actriz Maria do Céu Guerra contou há pouco tempo, num encontro de uma livraria Bertrand, que passou a noite a velar o corpo de Almada Negreiros com o jornalista António Valdemar contando peripécias da vida. Para quem conhece estas duas personagens não é difícil adivinhar o prazer da partilha a dois junto a um nome maior da literatura que na hora da morte só teve duas almas a alumiar a sua face na última noite sobre a terra.
Esta semana morreu Nuno Rebocho, jornalista, poeta e animador cultural, que ajudou muita gente a sentir-se feliz. Não sei sequer se teve velório, uma vez que perdi o contacto com ele e soube da sua morte no dia do funeral, por um amigo comum que, tal como eu, passou o dia a trabalhar numa redacção.
Li-o recentemente num texto onde falava da morte de Bento Vintém e de episódios passados em Santarém e tomei boa nota: ninguém vai contar por escrito, como ele gostava de contar, os episódios da vidinha política e literária que tanto o ligavam à vida. Nuno Rebocho não era um Almada Negreiros mas tinha Nome de Guerra (título de um livro famoso de Almada Negreiros), e fazia questão de o usar em todas as suas actividades, incluindo no jornalismo profissional, onde terá dado muitas dores de cabeça a quem o dirigia nas redacções, quando não era ele a mandar.
No dia, e perto da hora da morte de Nuno Rebocho, cerca das 11 da noite, outro tipo com Nome de Guerra, Arlindo Consolado Marques, meteu-se mais uma vez ao caminho até à beira do rio Tejo para denunciar que no espaço de quatro horas o leito do rio passou de seco a um nível considerado muito elevado. E com a militância habitual faz perguntas a que ninguém responde e pede aos seus seguidores para partilharem o vídeo. Como não tem material para fazer boas imagens, só ouvimos a água a correr e a voz dele a assumir-se “maluco”, debaixo de chuva, protegido por um gorro na cabeça, falando de “vergonha” e de “malandros” e perguntando quem controla os caudais do rio, uma vez que às 18 horas o leito do Tejo estava seco e às 22 horas tinha um imenso caudal. No dia seguinte, a meio da tarde, lá estava ele outra vez com as imagens da “neve branca” rio abaixo, sinal de que isto está tudo ligado. Só que agora, e desde há muito tempo, há um maluco assumido que não dorme para fazer aquilo que o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, não é capaz de fazer, e muito menos as autoridades que dependem do seu Ministério.
Quem se der ao trabalho de visitar o Facebook de Arlindo Consolado Marques pode verificar que ele até se aproveita da luz da lua para tentar iluminar o leito do rio e fazer passar a sua mensagem e o resultado do seu trabalho de guardião do Tejo; um pouco ao jeito de Almada Negreiros e Nuno Rebocho, que usavam as metáforas para construírem a sua obra literária, únicas nos seus valores originais na literatura portuguesa. JAE
Nota. Quem achar as comparações demasiado exagerados que leve em conta a minha amizade pelo Nuno Rebocho com quem partilhei, na Cidade Velha de Santiago, em Cabo Verde, refeições de cachupa numa esplanada de um largo onde se ouve o mar a bater na areia, cheio de algas e lixo, imprópria para banhos, como na mítica praia de Itapoã, em Salvador da Bahia, onde também por esses anos comi do melhor peixe frito do mundo mas só consegui tomar banho nas dunas, enquanto ouvia no telemóvel “Uma tarde em Itapoã”, com música de Toquinho e letra de Vinicius de Moraes .

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

O Ribatejo e o Alentejo para começar o ano de olhos abertos e espírito construtivo

Não vivemos no melhor dos mundos mas acredito que podemos e devemos fazer muito mais e melhor nos nossos territórios ribatejanos.
Para isso precisamos de trabalhar mais e falar menos: como os nossos vizinhos alentejanos.


O ano que agora começa (2020) é tão redondinho nos números que deixa uma sensação de conforto e de esperança em dias melhores.
A região ribatejana só pode evoluir e melhorar. Temos concelhos já tão pobres e com tão pouca população que se não tivermos opinião e não suarmos as estopinhas algumas das nossas aldeias vão ficar como as da região transmontana: sem gente e com o casario em ruína.
Vamos acreditar que se perdermos população, o que parece inevitável, não perdemos cidadania; que não nos reformamos do nosso sentido crítico mas construtivo; que saberemos chamar os bois pelos nomes e não pactuaremos com os políticos e os dirigentes, sejam eles quais forem e a que classe pertençam, que não nos demitiremos de os criticar e elogiar quando merecerem.
É uma grande mentira a ideia que passamos de que nos faltam motivações para lutarmos por um futuro melhor. É verdade que não vivemos em estado de guerra; que não corremos o perigo de uma epidemia; que não falta trabalho para quem quer trabalhar; que o Estado funciona apesar de tudo; mas não é menos verdade que somos dos países mais atrasados do primeiro mundo; que temos um ex-primeiro ministro na praça pública acusado dos crimes mais vergonhosos, dos comportamentos mais arrogantes, alguns deles ridículos que até causam dó. Temos o maior banqueiro do país a tentar escapar da prisão e os gestores mais importantes e mais badalados dos últimos tempos a serem acusados de corrupção, com provas irrefutáveis, como é o caso de Zienal Bava, o menino bonito da imprensa portuguesa que foi considerado um exemplo como gestor.
Na região ribatejana temos o Tejo, o Alviela, o Nabão e o Almonda poluídos de forma indigna. Não temos uma Rua Augusta, que acaba num Terreiro do Paço, mas temos cidades como Tomar, Ourém, Abrantes, Torres Novas, Santarém, Almeirim e Vila Franca de Xira, que pedem meças em termos de património histórico. Tomar e Santarém podiam ser já este ano um caminho turístico obrigatório para os peregrinos de Fátima; a Rua Augusta e a Rua Garrett, Sintra e Cascais, não são definitivamente o melhor que os portugueses têm para mostrar aos turistas. As nossas aldeias, caso de Amiais de Cima, só para dar um exemplo, já têm unidades de turismo rural ao nível do melhor da Europa. Só falta fazer no Ribatejo aquilo que já se faz com muito êxito no Alentejo. E ainda há quem diga por aqui, de mão na cintura, como os toureiros, que os ribatejanos metem os alentejanos a um canto. Vamos a Évora e ficamos de boca aberta, já é uma cidade modelo, e daqui a muito poucos anos vai ser das mais badaladas do mundo, a confiar no modelo de crescimento que está a ter. É verdade que têm o maior lago da Europa mas nós temos o melhor rio do mundo. Quando vou a Évora sinto-me em casa, na minha terra, com uma diferença: tenho à mão de semear o melhor que encontro nas grandes cidades do mundo. JAE.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Acabar o ano a ouvir chorar as pedras da calçada

Os leitores que me perdoem este puxar de brasa à minha sardinha. Este texto é parte de uma comunicação em congresso de há muitos anos. Relendo-o agora acho-o mais actual do que na altura em que o escrevi. Não é um aviso à navegação mas é sem dúvida um olhar por mim abaixo.


Acabo o ano de 2019 como acabei os anos de mil novecentos e troca o passo: a ler os jornais atrasados e a recordar os assuntos que mais interessam. Cada vez mais são os assuntos internacionais: Descoberta de novos versos de Baudelaire; O poder de quem dirige um museu, Peter Handke, o Nobel da discórdia; a corrupção à volta dos dirigentes das comunidades autónomas de Espanha; a vida do Rui Pinto, o hacker mais famoso do mundo que tem o azar de ser português. Os telefonemas que valem milhões, o negócio do lixo e das armas, enfim, são meia dúzia de recortes que aproveito para iniciar este texto sobre o que é a vida de um jornalista viciado em trabalho, condição indispensável para se ser jornalista.
Foi por ter consciência do prazer deste trabalho, que não dá tréguas ao operário, que me formei jornalista. Li e aprendi com os melhores jornalistas, em congressos e em lançamentos de livros, e em todas as situações que soube aproveitar para dar mundo à minha cabeça pequenina. Como a grande maioria dos jornalistas da imprensa regional da minha geração também não tenho o diploma universitário.
Quanto mais o tempo passa mais percebo que esta luta de escrever, escrever, escrever e ter que dirigir equipas, é trabalho que nunca mais acaba. O mundo vai mudando e nós não damos por isso; se não enfiarmos os olhos no espelho estamos sempre a ver a nossa foto de infância e a ignorar a foto da velhice dos nossos pais e avós. O trabalho quando é feito com prazer rejuvenesce-nos todos os dias; é um lenitivo para nos levantarmos de manhã da cama de um salto prontos para os cem metros sabendo que podemos ter que fazer a maratona. Mas ninguém exerce a profissão de pedreiro sozinho quanto mais a de jornalista. E um pedreiro, para ter um bom servente, tem que beber uns copos com ele e de vez em quando fazerem uma patuscada, irem ao futebol, guardarem segredos íntimos, cheirarem os peidos um do outro em silêncio, enfim, fazerem aquilo que é próprio das estratégias de equipa.
O MIRANTE é um projecto de aldeia mas há muitas aldeias da região onde ainda não pusemos os pés porque ficam longe da casa do jornalista e ele, às vezes, acomoda-se aos assuntos de todos os dias e não lhe apetece fazer estrada e conhecer nova gente; O MIRANTE é um projecto para dar voz às populações mas há muita gente que acha que somos bois de trabalho e que adivinhamos as coisas para estarmos sempre no lugar certo à hora certa. Resumindo: é difícil manter profissionais motivados para fazerem jornalismo de proximidade e é difícil alimentar projectos de comunicação social que não dependam de “patos bravos”, políticos, empresários ou padres. Não é impossível, como temos provado, mas é preciso nunca esquecer a renovação dos profissionais da equipa, ou a formação mesmo dos melhores jornalistas, ter tomates para fazer mudanças, não aceitar desculpas esfarrapadas de quem não evolui e se acomoda fazendo do jornalismo uma profissão de lambe botas, ou de canastrões, que é o que acontece a muitos profissionais que aproveitam o facto de um buraco na estrada ser notícia para escreverem e porem a chorar as pedras da calçada. JAE.