quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Acabar o ano a ouvir chorar as pedras da calçada

Os leitores que me perdoem este puxar de brasa à minha sardinha. Este texto é parte de uma comunicação em congresso de há muitos anos. Relendo-o agora acho-o mais actual do que na altura em que o escrevi. Não é um aviso à navegação mas é sem dúvida um olhar por mim abaixo.


Acabo o ano de 2019 como acabei os anos de mil novecentos e troca o passo: a ler os jornais atrasados e a recordar os assuntos que mais interessam. Cada vez mais são os assuntos internacionais: Descoberta de novos versos de Baudelaire; O poder de quem dirige um museu, Peter Handke, o Nobel da discórdia; a corrupção à volta dos dirigentes das comunidades autónomas de Espanha; a vida do Rui Pinto, o hacker mais famoso do mundo que tem o azar de ser português. Os telefonemas que valem milhões, o negócio do lixo e das armas, enfim, são meia dúzia de recortes que aproveito para iniciar este texto sobre o que é a vida de um jornalista viciado em trabalho, condição indispensável para se ser jornalista.
Foi por ter consciência do prazer deste trabalho, que não dá tréguas ao operário, que me formei jornalista. Li e aprendi com os melhores jornalistas, em congressos e em lançamentos de livros, e em todas as situações que soube aproveitar para dar mundo à minha cabeça pequenina. Como a grande maioria dos jornalistas da imprensa regional da minha geração também não tenho o diploma universitário.
Quanto mais o tempo passa mais percebo que esta luta de escrever, escrever, escrever e ter que dirigir equipas, é trabalho que nunca mais acaba. O mundo vai mudando e nós não damos por isso; se não enfiarmos os olhos no espelho estamos sempre a ver a nossa foto de infância e a ignorar a foto da velhice dos nossos pais e avós. O trabalho quando é feito com prazer rejuvenesce-nos todos os dias; é um lenitivo para nos levantarmos de manhã da cama de um salto prontos para os cem metros sabendo que podemos ter que fazer a maratona. Mas ninguém exerce a profissão de pedreiro sozinho quanto mais a de jornalista. E um pedreiro, para ter um bom servente, tem que beber uns copos com ele e de vez em quando fazerem uma patuscada, irem ao futebol, guardarem segredos íntimos, cheirarem os peidos um do outro em silêncio, enfim, fazerem aquilo que é próprio das estratégias de equipa.
O MIRANTE é um projecto de aldeia mas há muitas aldeias da região onde ainda não pusemos os pés porque ficam longe da casa do jornalista e ele, às vezes, acomoda-se aos assuntos de todos os dias e não lhe apetece fazer estrada e conhecer nova gente; O MIRANTE é um projecto para dar voz às populações mas há muita gente que acha que somos bois de trabalho e que adivinhamos as coisas para estarmos sempre no lugar certo à hora certa. Resumindo: é difícil manter profissionais motivados para fazerem jornalismo de proximidade e é difícil alimentar projectos de comunicação social que não dependam de “patos bravos”, políticos, empresários ou padres. Não é impossível, como temos provado, mas é preciso nunca esquecer a renovação dos profissionais da equipa, ou a formação mesmo dos melhores jornalistas, ter tomates para fazer mudanças, não aceitar desculpas esfarrapadas de quem não evolui e se acomoda fazendo do jornalismo uma profissão de lambe botas, ou de canastrões, que é o que acontece a muitos profissionais que aproveitam o facto de um buraco na estrada ser notícia para escreverem e porem a chorar as pedras da calçada. JAE.

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