quarta-feira, 30 de julho de 2008

Voluntário…mas pouco


Fui a Moçambique há cerca de quatro anos e quando regressei jurei que haveria de voltar para cumprir um sonho e uma missão: voltar ao território onde descobri pela primeira vez a África profunda e oferecer durante algum tempo o meu trabalho como voluntário numa das muitas organizações que trabalham no território.
Já vi muita miséria e muita fome. Como em Moçambique nunca tinha visto igual. Passei alguns dos melhores momentos de férias naquelas praias paradisíacas. Viajei com pessoas que nasceram lá e que regressavam aos mesmos lugares muitos anos depois. Assisti a encontros com o passado e, com a memória que tinha dos retornados das ex-colónias, quase que senti na pele o drama dos milhões de portugueses que viveram na pele a época da descolonização.
Fui incentivado por um médico, que fazia parte da minha comitiva, a cumprir a promessa de voltar como voluntário para ajudar a minorar o sofrimento daquele povo. Sei que ele voltou pouco tempo depois e foi cumprir o prometido.
Guardo na memória a visita a algumas escolas onde não havia sequer cadeiras para as crianças se sentarem. Sentavam-se ou deitavam-se no chão e escreviam em cadernos que pareciam recuperados do lixo. E, num almoço que nos serviram no meio do mato, vi crianças ao colo das mães que eram literalmente comidas em vida pelas moscas. Não conto mais porque as imagens da televisão e do cinema mostram todos os dias o que eu jamais conseguiria descrever com palavras. Foi nessa altura que me lembro de ter tremido só de pensar como seria viver ali dois ou três meses naquele convívio com o sofrimento e com a mais cruel de todas as realidades que é o desprezo pela vida.
Durante alguns meses troquei ideias sobre o assunto com alguns amigos que me acompanharam e fui revendo os contactos que tinha na minha agenda. No meio do vendaval que é a vida, de repente, dois familiares muito próximos ficaram sozinhos e a precisarem da minha ajuda. Assoberbado com o trabalho comecei a sentir dificuldades em sair a meio da tarde para lhes prestar a ajuda que eles precisavam e ainda precisam nos dias de hoje.
Quando tenho que roubar um dia ao trabalho para uma consulta médica, para comprar medicamentos ou,  até, para uma simples visita de conforto, parece que o tempo nunca chega e o trabalho fica todo por fazer.
Certos dias, quando regresso dessa pequenina missão de dar uma hora, ou uma parte do dia, ao meu dever de filho e sobrinho, lembro-me das promessas de me oferecer como voluntário para acções de solidariedade em Moçambique e penso no tamanho do meu egoísmo. Nada que eu não vença com espírito de missão e com a certeza de que não nasci para cruzar os mares. E ainda com a firme convicção e desgosto de que o meu grãozinho de loucura, com o passar dos anos, ficou muito mais pequeno do que eu verdadeiramente sempre desejei.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Bater no ceguinho


Fui amigo do ex-presidente da Câmara de Santarém, Miguel Noras e, na altura em que ele mais precisou de solidariedade estive do seu lado contra tudo e contra todos. Cheguei a dizer-lhe que se fosse necessário empenhava as minhas barbas para o defender. Noras não se fez rogado e, nestas páginas, mandou cacetada que até ferveu contra Rui Barreiro e quem na altura procurou descredibilizá-lo. Já não tenho o mesmo relacionamento com Miguel Noras, por razões que se perceberá (eu sou jornalista a tempo inteiro e ele é político profissional) mas procurarei manter até ao fim da vida o espírito da solidariedade que na altura resolvi dar-lhe.
Um dia, se alguém escrever a história da nossa região com o que se publicou nos jornais, aproveitando a voz dos jornalistas, ninguém nos poderá acusar de termos sido jornalistas sem causas, sem amigos e sem músculo para mostrar. Não sou nem nunca fui capacho de ninguém. Quem mexer com a minha honra vai conhecer-me até a boca lhe saber a veneno que é exactamente assim que fica o meu sangue.
Se o nosso trabalho contribuiu ou não para que Rui Barreiro perdesse as eleições isso só a História o dirá. E, neste caso, também os tribunais uma vez que o ex-presidente resolveu fazer dos jornalistas de O MIRANTE o bode expiatório das suas derrotas.
O assunto vem a propósito porque na última sessão do julgamento, que decorre no tribunal de Santarém, Miguel Noras esteve à altura e repetiu tudo aquilo que é a nossa maior defesa e que prova o quanto fomos uns inocentes a escrever sobre Barreiro. Realmente, o político (zinho) que Rui Barreiro foi, e ainda é, podia ter sido um saco de porrada e nós todos apenas lhe demos umas palmatoadas.
Não é este o lugar para citar as palavras de Noras mas quero deixar um exemplo que ilustra bem algumas das canalhices que os seus camaradas lhe fizeram e até onde podia ter ido o enxovalho se, na altura, ele não tivesse uma tribuna para se defender.
Rui Barreiro trouxe de Lisboa uma funcionária que requisitou ao Ministério da Agricultura de quem fez o seu braço direito. Conheci-a bem porque ela ouviu de mim aquilo que os cães não gostam de ouvir quando, também ela, tentou intimidar-me.
Noras recordou agora em tribunal que essa senhora tinha um “espírito fabuloso” já que chegou a falar dele, que tinha acabado de exercer o cargo de presidente da câmara durante dez anos, e era presidente da assembleia municipal, como “um tal Noras que teria sido desenhador da autarquia”.
Isto é o texto de uma crónica não é um ajuste de contas. Mas passados sete anos destes acontecimentos continuo a vivê-los como se se tivessem passado ontem. E sinto cá dentro um grande orgulho por não fazer parte da carneirada que escreve de encomenda e que está sempre do lado dos mais fortes desde que estes tenham o dinheiro e o Poder.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Um dia vou deixar de fumar (2)


A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Salvaterra de Magos entrou numa pobre casa de família à uma e trinta da madrugada para levar para um orfanato três crianças de 3, 7 e 12 anos a pretexto das más condições de habitabilidade do casal e dos seus três filhos.
Tenho amigos que me dizem que a comissão é composta por gente boa e muito responsável. Fico ainda mais surpreendido como é possível alguém, humano e bondoso, reunir-se a um aparato policial enorme e levantar da cama, quase às duas da manhã, três crianças que já dormiam desde as nove da noite. Imagino a cena e não posso deixar de ver a Marília e o Joaquim Manuel, gente pobre mas honrada, a perguntarem a Deus mas afinal que gente é esta que por bondade leva os filhos dos outros às horas em que os lobos atacam sabendo que o que os espera são cordeirinhos indefesos.


Num breve poema de meia dúzia de versos Mário Quintana escreveu que “Deus é muito mais simples que as várias religiões”. Eis como um verso nos diz quase tudo sobre os que usam e abusam da palavra de Deus. Como a Obra Poética de Mário Quintana é a minha leitura de cabeceira, e é rica em versos sobre as coisas mais simples roubadas à palavra de Deus, fiquei a pensar como é possível alguns filhos da mãe acharem que o uso do preservativo é contra a vontade do Senhor, ou outros filhos da mãe, por causa de uma suposta vontade de Deus, preferirem ver um filho morto do que salvo por uma transfusão de sangue, ou ainda outros filhos da mãe, como eu também sou, só se lembrarem de Santa Bárbara quando faz trovões.


Recentemente um Juiz olhou-me nos olhos durante um julgamento e, em jeito de provocação, perguntou-me se não era já tempo de mandar imprimir as páginas do jornal à medida dos processos judiciais de forma a facilitar o manuseamento e a respectiva consulta. Respondi com um sorriso mas tomei boa nota. Um dia conto mais. Estamos a falar de um processo, que o Ministério Público acompanhou, onde não existe mais do que o mais livre e inocente exercício do direito à informação e à critica. O problema é que o Ministério Público tem vários rostos e nem sempre se interessa pelos valores mais altos da democracia, pela defesa dos valores consignados à sociedade civil antes de os escrutinar em nome de políticos inábeis e ignorantes, oportunistas e irresponsáveis, que são a vergonha do poder democrático.


Como sei que os leitores desta coluna são fiéis aqui vai o parágrafo que não saiu no final do texto da passada semana e que dava título à crónica.
Há pessoas para quem o vício de fumar é uma tragédia. Para mim não; fumo pouco mas com muito prazer e cada cachimbada sabe-me que nem ginjas. Tenho a certeza que vou deixar de fumar muito antes de chegar à idade da minha amiga Maria Teresa Gama.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Um dia vou deixar de fumar


Coruche é a minha segunda terra. Sempre que me vejo perdido algures no mundo lembro-me de Coruche por ser uma vila tão cheia de luz e ao mesmo tempo tão secreta. Dizem que Cachoeiro, no Brasil, é a cidade mais secreta do mundo. Para mim ainda é Coruche.
Passei os últimos vinte anos a atravessar a vila a caminho do Alentejo e em visitas pontuais de trabalho ou de lazer. Mas, sempre que penso num lugar para descansar, passear de mão dada ou reencontrar-me com as memórias da infância, lembro-me de Coruche e invento uma história.
Há 22 anos que foi morar para Coruche a minha amiga Maria Teresa. Reformou-se com 62 anos do emprego de escriturária da Casa Amaral Netto e fixou residência em Coruche onde vivia e ainda vive a sua filha e genro.
Há mais ou menos vinte anos que sei onde ela mora e vigio a sua casa à distância. O tempo passou e bater-lhe à porta foi sempre um projecto adiado. Na passada sexta-feira cumpri o prometido. Seria hipócrita se dissesse que me lembrei dela todos os dias durante mais de duas décadas. Há certos dias que até me esqueço de mim próprio. Mas durante todos estes anos não só vigiei a sua porta à distância como fui sabendo regularmente como a Maria Teresa andava a fazer as curvas da vida que nada têm a ver com as curvas da estrada que nos levam até às terras de Nossa Senhora do Castelo.
Foi por ser seu amigo e admirador, e por querer prestar-lhe uma homenagem com um pequeno texto, que tomei consciência que tinha capacidades para fundar um jornal na minha terra, que fosse uma alternativa ao jornal local.
Há mais de vinte anos que visitava Coruche, ou passava por Coruche, e não tirava os olhos da porta da minha amiga Maria Teresa. Desta vez bati à porta e entrei. E estive com ela de mão dada conversando sobre o que é possível as mãos dizerem umas às outras.
Não foi um reencontro emocionante confesso. No meu coração ainda vive a Maria Teresa de outros tempos. A Maria Teresa sempre foi uma mulher discreta, tão ou mais discreta que um malmequer do campo. Com ela, que sempre me fazia lembrar a fragilidade dos malmequeres, aprendi também que andar em bicos dos pés é coisa para bailarinos e não para gente comum como eu e ela sempre fomos.
Na passada sexta-feira, depois de almoçar com um amigo no melhor restaurante de Coruche, que por acaso foi inaugurado recentemente, sentei-me à camilha com a minha amiga Maria Teresa Gama e conversei com ela sobre personagens de romances que é disso que a nossa cabeça se enche quando já não aguenta mais esta vida de ficção em que a maioria de nós anda metido uma vida inteira para nada.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A terra e as suas gentes


Gosto da cidade de Vila Franca de Xira por ser a mais cosmopolita das cidades ribatejanas. Um dia da passada semana almocei, sozinho, no restaurante do senhor Pedro Miguel Gil e esqueci-me durante quase duas horas que vivia um dia normal de trabalho. Comi que nem um lorde e associei-me, em espírito, a um grupo de franceses que comiam e bebiam perto de mim como se estivessem sentados à mesa do rei. No final da refeição ainda roubei alguns desabafos de vida ao senhor Pedro Miguel Gil que, goste-se ou não da sua personalidade, é uma figura que com o seu trabalho e dedicação à Residencial Flora vale por muitos coletes encarnados.
Há muito tempo que não comia gamboa assada à sobremesa. Se bem me lembro foi na outra reencarnação. Gosto de gozar comigo próprio nestas alturas em que percebo que há mais mundo que os habituais dez metros quadrados da minha sala de trabalho onde passo as melhores horas do dia.
Meia hora depois de perceber como estamos todos guardados para o mesmo, nas palavras com setenta e cinco anos de idade do chefe Pedro Miguel Gil, estava a falar com o senhor Bernardes, da Predial – Xira, outra figura da cidade que tem sempre uma história para contar, um conselho para dar, uma sugestão para uma reportagem, um elogio para os jornalistas da redacção de O MIRANTE. Mais meia hora de conversa a ouvir a voz da experiência e do trabalho e estava tudo explicado: estes homens pertencem a outro mundo; quando morrerem também vão para debaixo dos torrões os usos e os bons costumes de uma geração que vai deixar saudades.
A cidade, às quatro e meia da tarde de um dia de Junho, não dorme a sesta nem se esconde à sombra dos toldos das lojas. Fervilha de gente e, para mim, que deixo sempre o carro estacionado à entrada da cidade, nem as filas de automóveis me prejudicam a visão de uma terra que marca a diferença a poucos quilómetros de Lisboa com uma qualidade de vida que eu gosto.
Desta vez fui acabar a digestão do almoço sentando-me numa esplanada na Praça Afonso de Albuquerque, também para ver cair a tarde à sombra do pelourinho. Mas a cidade tem muitos cafés e esplanadas onde marca a diferença em relação a outras cidades da região.
Esta semana a cidade de Vila Franca vive a festa do Colete Encarnado. Vou passar por lá como faço todos os anos para respirar o ambiente e sentir-me mais perto das raízes. Sei que a festa divide muita gente e cria rivalidades. Tenho a grande vantagem de não morar no concelho e de poder sentir sem ponta de ciúme o orgulho de ser ribatejano, na Chamusca, Azambuja, Benavente ou Vila Franca de Xira.