quarta-feira, 28 de abril de 2010

Esmifrar o Estado

Há mais de 25 anos dei cama e mesa a um escritor muito conhecido da nossa praça. Na hora de falarmos de literatura dei-lhe a saber que era amigo e admirador de um jornalista e escritor que trabalhava na altura no Diário de Lisboa. O comentário dele envenenou a conversa. Esse tipo é conhecido no meio jornalístico como o boi sentado. Ainda hoje o sentimento de despeito por um colega de ofício me serve de lição quando uso a má-língua, uma prática que, não sendo o meu desporto favorito, também sei usar nos melhores momentos de tertúlia.
Na passada semana, no final de uma palestra, cruzei-me com o jornalista José Carlos de Vasconcelos, um dos melhores e mais influentes jornalistas portugueses, e acabamos num café da avenida de Berna a confraternizar. Há muitos anos ouvi da boca de um outro escritor famoso as piores coisas que se podem dizer de um camarada de ofício. Ouvi e calei. Quem sou eu para me meter no meio da má-língua que sempre povoou o mundo dos intelectuais!
Sou amigo de um político que há 20 anos confessava-me que o seu grande objectivo, enquanto homem público, era ser cônsul de Portugal no Rio de Janeiro.
A vida pregou-lhe algumas partidas e nestes últimos anos fez parte de dois governos. Pela forma como se tem mantido na crista da onda é bem provável que volte em breve a ocupar cargos ministeriáveis.
Meio a brincar meio a sério eu retorquia que jamais queria ser figura pública e que o meu grande sonho era chegar aos 50 e começar a viajar, a ler e a escrever, concretizando tudo o que tenho vindo a adiar cada vez que sonho mais um projecto de trabalho, cada vez que coloco à frente dos interesses da minha profissão os meus grandes sonhos de juventude. Numa coisa sempre estivemos de acordo: nenhum de nós pensa na reforma ou imagina, um dia pedir, a reforma antecipada.
Já ultrapassei os cinquenta e estou longe dos meus objectivos quanto a viajar e a ganhar tempo para ler e escrever. Mas mantenho intactos todos os meus projectos de vida e todas as minhas convicções são fortalecidas a cada dia que passa.
Concentro-me numa delas para sair desta crónica intimista que já enjoa. Se não perder o juízo trabalharei até ao fim dos meus dias de vida nem que seja à cabeceira de uma cama. E nunca pedirei a reforma. Já decidi que não quero morrer reformado e pensionista da Segurança Social.
É crime o que muito boa gente com responsabilidades públicas anda a fazer com os dinheiros da Segurança Social. Pedem a reforma por antecipação aos cinquenta anos e depois candidatam-se a cargos públicos para ganharem ordenados chorudos em cima das pensões de reforma que resolveram chular à segurança social.
Se um tipo pede a reforma por antecipação é porque resolveu mudar de vida. Não devia poder, depois de se reformar, voltar a ocupar cargos públicos ganhando um vencimento como é devido a quem faz da vida profissional um manual de bons costumes. Pedir a reforma por antecipação para esmifrar o Estado e depois continuar na vida activa ocupando lugares públicos, auferindo ordenados chorudos, é uma atitude que envergonha os ideais do 25 de Abril. E o Partido Socialista é, neste momento, o que mais culpas tem no cartório.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A eternidade de Saramago

A Fundação José Saramago convidou o poeta Juan Gelman para visitar Portugal. Estive em duas sessões que se realizaram em Lisboa. Na primeira fui até ao fim. Na segunda saí da sala quando iam começar os discursos oficiais. Pratico esta liberdade de sair de uma sala onde me querem encher os ouvidos com a mesma satisfação que fico em casa a ler ou a ver um filme em vez de comparecer a iniciativas que prevejo sejam chatas graças aos eternos frequentadores.
Na nossa terra usa-se e abusa-se desta mania. Certa gente, quase sempre os mesmos, só gostam de se ouvir a si próprios. Em vez de darem a palavra aos oradores e convidados, que muitas vezes viajam de tão longe para falarem apenas 20 minutos, são eles que ocupam o tempo para contarem histórias pessoais e para colocarem questões que não são perguntas mas sim tentativas mal educadas de se mostrarem também como “especialistas na matéria”. Em Portugal não há uma cultura de respeito pelos intelectuais que começa exactamente nas cadeiras da assistência quando alguns marmanjos se sentem no direito de terem os seus 15 minutos de fama custe isso o que custar aos seus camaradas mais humildes da cadeira do lado, aos oradores e organizadores.

José Saramago fez 86 anos em Novembro. Apesar da doença Saramago resiste como um leão. Na passada semana os médicos descobriram finalmente o vírus que se alojou nos pulmões e que o derruba literalmente quando toma antibióticos.
Estava a ouvir o presidente da Fundação José Saramago a explicar o milagre do trabalho dos médicos, que devem ser pagos a preço de ouro, e a lembrar-me do meu avô paterno que caiu na cama de um hospital de onde saiu directamente para a cova. O médico de serviço tratou logo do milagre de o despachar para o inferno encharcando-o de medicamentos. Foi há mais de 25 anos mas lembro-me como se fosse acontecimento de hoje. Ia vê-lo todos os dias e a cada dia que passava ele ficava mais moribundo. Foi internado por ter caído e partido um osso mas depressa levou com uma dose de cavalo de medicamentos que o levaram desta para melhor. Para além do catarro e das dores nas articulações nunca conheci o meu avô doente. No dia em que caiu na cama do hospital foi como se tivesse entrado numa câmara de gás. Durou só mais uma semana.
Ouvi Saramago a dirigir-se à plateia através de um vídeo, quase a comer as palavras e com uma cara ainda marcada pela presença do vírus nos pulmões, e percebi que por ter ganho o prémio Nobel conquistou um direito de viver que não está ao alcance de todos. Não fosse ele quem é, por mérito próprio, e o vírus já lhe tinha feito a cama, como os médicos fizeram a mortalha ao meu avô.


Nota: Encontrei o velho Juan Gelman à entrada do auditório e perguntei-lhe se não tinha pena de ser pouco traduzido e conhecido em Portugal. Respondeu-me à Saramago: e o que é isso comparado com aquilo que o povo sofre? Para além de grande poeta Gelman tem uma história de vida que é comum a muitas famílias que viveram e ainda vivem as ditaduras na América Latina. Só que a grande maioria não pode contá-las como Gelman.
Em 1976 foram sequestrados os seus filhos Nora Eva, e Marcelo Ariel, de 20 anos, com a sua nora María Claudia, de 19, que se encontrava grávida de 7 meses. Desapareceram para sempre. Em 1978 Gelman soube através da Igreja  que a sua nora tinha dado à luz sem poder precisar onde nem o sexo da criança. 14 anos depois, em 1990, foram identificados os restos mortais de Marcelo, encontrados num rio dentro de um contentor de gordura cheio de cimento. Em 1998 Gelman descobriu que sua a nora tinha sido enviada para o Uruguai através do Plano Condor. Só veio a descobrir e a identificar a neta em 2000, 23 anos depois. Do cadáver da nora ainda não se sabe nada.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Cumprir a tradição

Todos os dias, quando saio à porta de casa pela manhã, vejo meia dúzia de velhos conhecidos da infância sentados nos bancos do jardim a olharem para quem passa. Há mais de quatro décadas  enchia-lhes copos de vinho e cálices de aguardente ao balcão de uma taberna. Conhecia-os pelos nomes mas também pelos hábitos diários; pelos vícios; pelos desabafos sobre as suas vidas em família; pelas dificuldades em pagarem no final da semana o que mandavam apontar no rol.
Já não me vejo nos espelhos que tenho em casa para me procurar reflectido nos rostos destes homens e mulheres que se sentam nos bancos dos jardins da minha terra.
Há dias em que os olho com indiferença, com o mesmo sentimento com que recordo os mortos, ou seja, sem qualquer saudade deles. Mas há outros dias em que os procuro para lhes roubar conversa. E é nesses dias de sol que me apetece ficar sentado no banco do jardim a ouvir as vozes antigas, como a de uma respeitável senhora, que em tempos tinha fama de puta, mas que era uma pessoa tão recatada, tão recatada, que a todos tentava fazer passar a ideia de que era virgem (também eu, jovenzinho, passei pelos braços dela, mas nunca pelo meio das suas pernas).

Na última Sexta-feira Santa, ao visitar uma das igrejas por onde passa a procissão que todos os anos se realiza na minha terra, olhei para o tecto e voltei a ver pendurado pelo pescoço um rapaz da minha idade que um dia fui visitar à prisão nas Caldas da Rainha. Enforcou-se na Igreja da Senhora das Dores porque era muito pobre e tinha o vício de roubar. Um dia ganhou vergonha e resolveu pendurar-se pelo pescoço. Se bem me lembro das conversas que tive com ele, e foram muitas, só um milagre o podia salvar daquela vida triste e miserável que ele próprio lamentava com lágrimas nos olhos.
Na última Sexta-feira Santa, ao olhar a imagem de Nossa Senhora das Dores, percebi no seu olhar de vidro que ela é incapaz de fazer um milagre e por isso cumpri a tradição: não vou em procissões. Nem morto.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O mercado ao domingo

No domingo fui ao mercado a Almeirim. Eram pouco mais de onze e meia e junto aos principais restaurantes da cidade já havia fila. Saí do carro para tirar uma foto quando percebi que a maior fila estava a desfazer-se. A razão era simples. O dono do restaurante acabava de abrir as portas. Acho espantosa esta dinâmica dos restaurantes da sopa da pedra. E fico cheio de inveja das pessoas que são capazes de fazer fila à porta de um restaurante antes do meio-dia. Eu não tenho paciência para esperar nem quando vou ao médico quanto mais para comer.
Confesso que sinto culpa quando vou ao mercado. Sinto-me no dever de ajudar os comerciantes de porta aberta da minha área de residência. São eles que pagam os impostos, que fazem publicidade nos jornais, que dão trabalho aos meus vizinhos, que dinamizam a economia da minha região. Mas a ida ao mercado é uma festa para os sentidos. Ninguém atrás de um balcão nos atende como no mercado. Em nenhuma loja podemos andar a ver os produtos de mãos atrás das costas e a perguntar preços e a cumprimentar quem passa e a observar pelo canto do olho os negócios dos outros compradores.
Em nenhuma loja de porta aberta me fazem o que um negociante desconhecido me fez no passado domingo. Comprei uma dúzia de queijos por 10 euros e, depois de provar uma pequena porção de queijo da ilha, o homem embrulhou um pedaço que pesava mais de duzentas gramas e mandou-me pôr dentro do saco. Gostou ? Então que lhe faça bom proveito, exclamou. Agradeci dez vezes e, enquanto me afastava do local olhei para trás outras dez vezes perguntando a mim próprio se o queijo não estaria fora da validade.
Andei meia hora a ver os pintos e os patos e os perus e não era para comprar. Mas apeteceu-me perceber os preços que estão a ser praticados e quem compra. E neste negócio, como em tantos outros, há sempre um feirante que é melhor a vender. Aos outros, mais disponíveis, massacrei com as perguntas habituais para saber em que mundo é que vivo.
O homem das árvores de fruto reconheceu-me de um telefonema que lhe fiz há dois meses a pedir preços. Depois de meia hora de conversa comprei 30 pés de árvore por metade do preço que já tinha apalavrado por fax. Ele justificou-se dizendo que uma coisa era a árvore envasada outra era retirá-la da terra e entregá-la no mesmo dia na Chamusca. Mas não me convenceu. Negócio é negócio e aquela meia hora de conversa foi suficiente para lhe fazer entender que ou ele baixava o preço ou perdia o cliente para um dos vizinhos do lado. E comprei metade do que lhe tinha dado a entender com o argumento de que para o ano quero fazer uma encomenda ainda maior. Claro que desta vez não fui ao mercado de fato de treino. A roupa também conta na hora de passarmos a credibilidade da nossa palavra e a certeza das nossas decisões.
A última história que merece ser contada passou-se com uma senhora que vendia bacelos. Eu quero comprar mas ainda não sei bem o que quero. A senhora estava lá para vender mas não estava preparada para falar com ignorantes na matéria. E a certa altura, depois de me ver passar tanta vez, quase que comprei só para compensar o seu olhar de infortúnio. Apesar do bacelo estar ao preço da uva mijona os euros que levava na carteira falaram mais alto que o sentimento.