quarta-feira, 27 de maio de 2009

Cunhal, Brasileiro e Cabaço


No dia da morte de Álvaro Brasileiro acabei de ler o livro Um Dia na Vida de Ivan Denisovich do escritor russo Alexander Soljenítsin. Luis Bunuel, cuja autobiografia já li há muitos anos e vou relendo sempre que procuro uma referência, disse que este seria o livro que levaria para uma ilha deserta. O Diário de Notícias pôs-me o livro em casa numa daquelas colecções dedicadas ao Prémio Nobel. Um dia destes, no meio de tanto livro que sei que nunca vou ler, lá estava o título entre as minhas mãos.
A minha admiração pelo comunista Álvaro Brasileiro não era muito grande. Aquele rosto fechado, que nunca vi sorrir, com um olhar desconfiado, à Álvaro Cunhal, não me inspirava simpatia. O meu comunista preferido foi sempre Gonçalo Cabaço. Era o Álvaro Brasileiro da Chamusca. No essencial eram iguais. Pessoas de carácter, ao serviço de uma missão partidária mas também de cidadania, que nunca enriqueceram com a política e sempre serviram a política num espírito de missão que, infelizmente, está cada vez mais fora de moda.
Cunhal, Brasileiro e Cabaço eram homens da mesma raça. Tinham formas de ser e de estar muito parecidas. Gonçalo foi talvez o melhor deles todos. Não tinha aquele olhar de ataque, que era característica dos dois Álvaros, e o seu coração deveria ser careca, comparado com o número de cabelos que deveriam ter os corações dos seus dois camaradas.
Já contei neste jornal como conheci mais de perto Álvaro Cunhal nos últimos anos de vida, cego, falando do seu passado e da sua actividade política e intelectual como se se despedisse de um poema. Há pouco tempo também fotografei Álvaro Brasileiro numa iniciativa em que ele acompanhava Jerónimo de Sousa, e tenho quase a certeza que, embora sabendo que estava a ser fotografado, fez questão de me ignorar espreitando apenas pelo canto do olho. O que eu acho que nunca contei em letra de forma foi o episódio em que um funcionário do PCP, a meio de uma reunião de trabalho, por dá cá aquela palha, desafiou o camarada Gonçalo para a rua para levar dois murros na cara. O tipo que o insultou ainda anda por aí com a foice e o martelo na lapela ( penso que já não é funcionário do partido) mas o Gonçalo, pelo que sei, nunca chegou a levar os murros porque não respondeu à provocação deixando-se ficar sentado e ignorando, para além da ameaça dos murros, os nomes impróprios que lhe gritaram.
No dia em que morreu Álvaro Brasileiro acabei de ler Um Dia na Vida de Ivan Denisovich do escritor Alexander Soljenítsin, livro publicado em Novembro de 1962, tinha eu sete anos de idade. O livro relata a história fictícia de um russo que foi acusado injustamente de ter espionado a favor dos alemães, após a sua captura na frente de batalha. Esta história é semelhante ao que o autor passou após a guerra e é um relato impressionante sobre as condições da prisão e do sistema prisional soviético.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Pagar favores com ovos


A Primavera é a minha estação preferida. Gosto de ver os dias a crescerem e de observar como a vida no campo se prepara para nos dar lições de humildade. É nesta altura do ano que tudo começa a fazer sentido debaixo dos nossos pés. E por cima da nossa cabeça o sol anuncia muitos destinos de férias que já foram em direcção à Nazaré, numa Zundap com quarto marcado na pensão Parreirinha, mas também já foram em direcção a Chilan, a mais de seiscentos quilómetros de Santiago do Chile, onde dormi algumas noites na casa de um escritor (Gonzalo Rojas (n. 1917) que me deu a ver quase todas as primeiras edições dos meus poetas de culto.
Sempre que os dias começam a ficar maiores, e a maracha do Tejo é um lugar onde nos podemos esconder do mundo, lembro-me dos tempos das searas e das minhas visitas, nas férias da escola, aos campos da Azambuja onde o meu pai foi seareiro durante alguns anos.
Foi lá, entre tomateiros, que descobri o lugar distante onde uma das galinhas andava a pôr o ovo. Com a descoberta tive direito a um prémio que me tinha sido prometido: uma gemada feita com cinco ovos. Eram um terço dos ovos que descobri. Foi até hoje o prémio mais valioso que recebi em toda a minha vida.
As galinhas dos ovos de ouro nunca foram o meu forte. Mesmo em criança, quando ouvia as histórias que o meu avô paterno me contava sentado à lareira, eu embarcava nas fantasias mas lembro-me bem que tinha sempre algumas perguntas para fazer. Mas foram os ovos das galinhas que mais marcaram a minha alma de criança e que me deram a perceber o valor do açúcar numa boca muito debiqueira.
A minha avó pagava com cestos de ovos (não eram cestos eram sacos de plástico e muitas vezes até podiam ser folhas de couve que são um excelente suporte para embrulhar), os favores que recebia do funcionário do centro de saúde, do enfermeiro, do médico, do farmacêutico e sei eu lá mais de quem, pois a minha avó era pobre mas gostava de dar do pouco que tinha.
Não vou perder tempo a explicar que os favores que a minha avó pagava são aquilo que nós hoje exigimos em voz alta e que muitas vezes até conseguimos obter de boca calada pedindo o livro de reclamações.
No tempo em que não havia subsídio de desemprego, nem formas de ganhar dinheiro que não fosse a trabalhar no campo ou a ripar camisas, a minha avó criou os seus filhos e ainda deu uma mão a criar os netos. E do seu galinheiro ainda sobravam ovos e frangos para dar a quem era generoso com ela ou com os da sua família.
A Primavera é a estação da generosidade. E eu não me esqueço que ainda sou do tempo em que os nossos avós enfiavam o dedo no cu das galinhas para saberem se elas tinham ovo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Os jornalistas, os políticos e a crise


     Na passada semana participei numa conferência em Madrid organizada pela IFRA, uma organização mundial de investigação e de serviços ligada aos jornais e à indústria gráfica, que reuniu editores de todo o mundo.
     Bernard Spitz, membro do Conselho de Estado Francês e braço direito do presidente Nicolas Sarkozy, foi convidado da organização para explicar os contornos das medidas do Governo francês que pretendem ajudar a imprensa a sair da crise.
     Depois de explicar como é que as medidas de apoio estão a ser implementadas, Bernard Spitz foi confrontado com várias perguntas, nomeadamente dos editores espanhóis, como é o caso da VOCENTO, proprietária do ABC, que imprime junto à fronteira entre os dois países mais de dois milhões de jornais por dia.
     A resposta para a aflição por que também passam as empresas espanholas, que começam a sentir o efeito das ajudas do outro lado da fronteira, surgiu de forma clara e frontal. O Governo francês entendeu ajudar as empresas de comunicação social, nomeadamente a imprensa escrita, porque assim estamos a salvar um dos valores mais caros da nossa democracia que é a liberdade de imprensa e a força do bom jornalismo.
     A resposta de Bernard Spitz não deu azo a qualquer comentário. E foi ele próprio que adiantou que a França é, nos dias de hoje, o vigésimo país da Europa na leitura de jornais diários e o quinquagésimo a nível mundial, números que surpreenderam tendo em conta o quanto a imprensa francesa já foi uma referência a nível mundial.
     Espanha é um dos países do mundo onde a imprensa tem mais qualidade. Não admira por isso que esteja também a passar por uma crise acentuada com a redução dos investimentos publicitários.
     O que me empurrou para falar do assunto nesta crónica é a sensação de que ainda somos do terceiro mundo quando nos juntamos a discutir estes assuntos com os nossos vizinhos. Um Governo que respeita assim a comunicação social do seu país não é, de certo, um Governo que anda atrás dos jornalistas a pressioná-los com processos judiciais. Num país onde os jornalistas são cultos e responsáveis, e exercem a profissão sem despirem a pele de cidadãos, não se escreve e publica de forma quase irresponsável como aconteceu e ainda acontece nos processos Casa Pia e Freeport.
     Definitivamente a nossa classe política também merece os jornalistas que temos. Quem anda nesta vida há muitos anos sabe o que diziam os socialistas sobre os casos da honra quando governavam os social-democratas. E sabe o que dizem, de há muitos anos a esta parte, os social-democratas desde que os socialistas estão no Governo.
     Reformas na máquina do Estado, nomeadamente na Justiça, de forma a que se acabe com esta pouca vergonha, isso ninguém vê fazer. Nem Sócrates, aquele em que muitos portugueses ainda confiam, consegue mudar o sistema judicial, mesmo vivendo um caso em que, para além do seu nome, também o dos seus parentes “caíram na lama”.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O 10 de Junho em Santarém


Ando a ler a poesia lírica de Camões com a fixação do texto, prefácios e notas de gente ilustre das nossas letras. Durante o último mês sentei-me à mesa e dormi com a lírica de Camões e com as várias versões de alguns (muitos) versos da sua lírica. Pela primeira vez na vida percebi a grandeza da Obra Poética de Luís Vaz de Camões e o quanto se desconhece sobre a sua vida e a forma como os seus poemas chegaram até aos nossos dias.
O poeta não se limitou a viver para escrever a sua Obra; deixou-a espalhada aos quatro ventos. E como não há poeta com sorte, os que eram do seu tempo e perceberam a grandiosidade da sua lírica resolveram chamar a si a autoria de muitos poemas e, noutros casos, onde o engenho e a arte também eram grandes, escrevinhadores organizaram antologias da poesia de Camões mas com muitas alterações em alguns dos poemas. Todos, ou quase todos, lhe meteram a mão nos versos procurando corrigi-lo de forma a agradarem às gentes do seu tempo. Ainda hoje é assim. Ninguém conhece, mais de quatro séculos depois, a veracidade da autoria de uma boa parte dos versos atribuídos a Camões. Num prefácio a um livro que reúne os Sonetos, José Hermano Saraiva puxa as orelhas à inteligência nacional e pergunta onde andam os estudiosos deste país que não conseguem fixar os textos escritos por Camões limpando a sua Obra dos vários equívocos; “a erudição oficial portuguesa tem-se aplicado a pirotecnias masoquistas e esquece que está por resolver essa questão: quais os versos escritos pelo principal poeta do renascimento português?”.
Também eu ando por aí a organizar uma antologia da sua lírica para editar por alturas do 10 de Junho. As comemorações em Santarém prometem ser um marco na história da cidade e da região. O MIRANTE associa-se à data e vai editar um livro que homenageia o Poeta.
A minha esperança, como homem desta terra e cidadão militante, é que as festas do 10 de Junho em Santarém envolvam todas as pessoas e instituições do concelho assim como todas aquelas que gostam da sua região e fazem a diferença nas empresas, nas escolas ou nos clubes da sua terra.
Por mim não quero saber das condecorações e das homenagens. Não viro as costas, por respeito, mas a minha esperança é que se mobilizem os cidadãos para que, durante alguns dias, possam visitar a cidade de Santarém e tudo o que a Comissão das Comemorações do 10 de Junho vai mostrar que retrata os nossos oito séculos de História. Não exageremos no orgulho mas também não ignoremos a importância do acontecimento que se vai realizar à nossa porta.
Ninguém vai ressuscitar Camões e encontrá-lo na vala comum onde terá sido sepultado. Não temos universidades em Santarém para sentirmos culpa pelo abandono e desinteresse pela Obra de Camões. Poderemos no entanto aproveitar a data para mostrarmos que temos orgulho e vaidade em sermos portugueses e da família de um dos maiores poetas do mundo que dizia que tinha “impressa na alma a larga história”.