quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A greve dos médicos é uma vergonha num país onde a política já viveu melhores dias

O SNS, as leituras subversivas, o caminho de ferro em Alhandra e o que vai rio abaixo.


Confesso que tive a semana mais espectacular dos últimos tempos e não saí dos mesmos caminhos dos últimos anos. Bastou começar a olhar mais para o lado do que para a frente e vi novas paisagens, conheci outras gentes e fui desafiado a meter-me em novas aventuras. Finalmente vou construir uma casa na árvore, dormir a sesta mais vezes e ler todos os livros que tenho em atraso. A minha máxima continua a ser inspirada em Sócrates, o filósofo: ler e aprender até morrer. “O que está presente lembra-te de organizar, sereno; as restantes coisas ao modo de um rio são levadas”.

Talvez por andar mais atento e a olhar para o meu umbigo registei o facto de esta semana, no mesmo dia, ter sido enganado nas contas em dois supermercados diferentes. Num comprei duas pastas de dentes e facturaram três e noutra comprei quatro garrafas de água de marca branca que foram facturadas ao triplo do preço que estavam marcadas. Só dei pela última já que na primeira estava na conversa com um amigo que não encontrava há muitos anos.

Para quem gosta de literatura subversiva recomendo o livro de Virginie Despentes, “Teoria King Kong”, e para quem aprecia um bom romance a leitura de “A Valsa do Adeus”, de Milan Kundera. Foram duas das leituras desta semana cheia de boas surpresas, incluindo a chegada do Outono que é a estação em que me encontro na vida. Lembro-me de ter 30 anos e perguntar que eternidade me faltava viver para chegar aos 60, ou aos 70, e já cá estou e nem dei por isso.

Fui ao teatro e só gostei da interpretação. É difícil escrever para representar e são poucos os escritores que sabem do ofício. Se vivesse no Porto tinha mais sorte; o Teatro São João teve em palco “A promessa” e “O pecado de João Agonia”, duas peças de Bernardo Santareno, o dramaturgo português mais significativo do século XX, que devia estar sempre presente na vida cultural da cidade de Santarém.

Esta semana atravessei-me por uma pessoa que disse que gostava de apresentar aos vilafranquenses uma proposta que resolve muitos dos problemas da quadruplicação da linha de caminho de ferro que tem provocado algumas manifestações populares. O projecto foi desenhado há muitos anos e quem o fez não quer perder a face nem que para isso tenha que subir as escadas do inferno. A resposta de quem organiza as manifestações foi a mesma que os manifestantes estão a receber dos responsáveis pelo projecto. Quando não é o Governo que pode e manda são os partidos que se fecham nos seus interesses ideológicos e os seus militantes nas suas obsessões partidárias; a esquerda vai pagar caro em Portugal a incapacidade para perceber que a ideologia já não faz revoluções; todos juntos somos poucos para combater os interesses instalados, assim como os extremismos de direita e de esquerda.

As greves dos médicos e enfermeiros são uma vergonha num país onde as desigualdades crescem todos os dias e se morre na cama de um hospital por falta de cuidados médicos. Quem não pode recorrer aos hospitais privados não pode dormir descansado. O Governo herdou um Serviço Nacional de Saúde que já era. Nos últimos anos os políticos do PS e PSD têm feito o caminho e a cama aos dirigentes partidários aventureiros que querem facturar mais com o descontentamento do povo que com os seus méritos (que não têm). E vão conseguir. Todos os dias, entre os dirigentes do PS e PSD, cresce o número dos que vão para a política para se servirem e não para prestarem serviço público. Sempre foi assim, mas a coisa está a ficar preta. Valha-nos o S. Martinho que está aí à porta. JAE.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Uma visita a A-do-Freire para trabalhar e comer figos

Adofreire não é uma aldeia qualquer perdida no mapa. É lá que vive a mais entusiasta produtora de figos de Torres Novas e o senhor João Alves Baptista que tem 83 anos e nasceu em Viana do Castelo.

Adofreire é uma aldeia do concelho de Torres Novas onde vivem cerca de 150 almas. Fui lá pela primeira vez muito recentemente no regresso de uma viagem ao Porto, onde renovei energias a ouvir a água de uma cascata, entre idas ao cinema, à livraria e uns mergulhos nas praias fluviais.  No dia que desci a sul parei em Adofreite.

Estacionei o carro junto à igreja e sentei-me no degrau de uma porta à espera da Michele Rosa, a produtora de figo preto com quem tinha marcado encontro. Nesse meio tempo, que durou cerca de 20 minutos, só passou por mim uma alma, que puxava uma traquitana a arrojar pelo chão. Entretanto chegou companhia para fazer dupla no trabalho que me levou a Adofreire, e a presença do carro identificado com o símbolo de O MIRANTE incentivou a conversa entre forasteiros e residente. A única alma que tinha passado por mim e dado os bons dias, puxando a traquitana, estava de volta já sem a geringonça pela mão. João Alves Baptista parou na esquina da rua e desta vez meteu conversa. “Este jornal já entrou na minha casa durante muito tempo. Depois deixei de o receber. Tive pena, mas o dinheiro nunca é muito para pagar o que não é pão para a boca”, disse, identificando-nos com o carro, também estacionado no largo da igreja, como se tivéssemos escritos na testa.

“Agora já nem tenho olhos para ler. Mas vim aqui parar de uma terra que tem a festa tradicional mais famosa de Portugal, sabem qual é”, perguntou em jeito de quem queria saber e perceber se a nossa vontade de interagir era genuína. Viana do Castelo, respondemos quase em cima da pergunta. Os seus olhos sorriram e demos-lhe razões para continuar a contar a sua história de vida como se fosse sua obrigação fazer o papel de anfitrião da aldeia enquanto esperamos a mais entusiasta produtora de figos da região.

“Tenho 86 anos e este menino que vos fala ainda faz a lide da casa e trata da mulher que, infelizmente, precisa da minha ajuda. Fui trabalhar para Lisboa onde morei 20 anos. Depois mudei-me para aqui porque vim trabalhar para a Renova. Reformei-me e trabalhei durante muitos anos como empregado de mesa a fazer festas e casamentos. Corri o país. Agora acabou-se. Estou preso em casa por causa da mulher, mas também porque, entretanto, fiquei doente dos pulmões. Uso bomba duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite. Foi há quatro meses que um médico que me deu mais atenção mandou fazer exames. Já andava assim há muito tempo, mas agora os médicos só tratam o que está à vista. Não há tempo para mais. Daí que tenha chegado a um estado ruim, de uma doença pulmonar que demorou a descobrir por falta de exames atempados”.

A conversa estava a aquecer e íamos começar a falar dos filhos e das saudades da terra natal quando apareceu o carro da Michele Rosa que parou e gritou, “bom dia senhor João”, já nós tínhamos levantado o rabo da pedra do degrau da porta para ir ao seu encontro, enquanto o senhor João respondia à saudação e dizia, no timbre de voz em que falávamos, que a Michele era uma rapariga de confiança e filha de gente boa.

Nesse meio tempo em que conversamos com João Alves Baptista, Adofreire parecia a aldeia dos peregrinos; se não fosse a meia dúzia de carros que circularam, e que desapareciam sem fazer barulho suficiente para interromperem a conversa, dir-se-ia que naquela tarde, em Adofreire, éramos os únicos habitantes que não dormiam a sesta ou não se escondiam do sol de Verão entre quatro paredes.

A história acaba aqui, mas, entretanto, ainda está actual a outra que fomos contar conversando com Michele Rosa, que nos mostrou pela primeira vez na vida como se produzem figos de forma ecológica, pendurando armadilhas nas figueiras para apanhar as moscas e assim evitar a pulverização das árvores com o veneno que garante o crescimento saudável do figo, mas prejudica a saúde. Falta contar que Adofreire não é uma aldeia qualquer perdida no mapa apesar de ter apenas cerca de 150 eleitores. No dia 14 de Janeiro de 2001 a população desta localidade boicotou as eleições presidenciais portuguesas não comparecendo às urnas para votar, em protesto, contra a falta de cumprimento da promessa da autarquia de Pedrógão, sede da freguesia, sobre a resolução do problema da poluição da ribeira local. E ainda tem a particularidade de se poder escrever com duas grafias diferentes. JAE.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Cada vez há menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país

“Jornalismo é imprimir o que outra pessoa não quer que seja impresso: todo o resto são relações públicas.”  George Orwell


“Há uma crise na formação da opinião pública”, diz José Luís Cebrian, porque “o populismo levou a melhor”, e os políticos esfregam as mãos de satisfeitos por verem que são cada vez menos escrutinados porque há cada vez menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país. 

As notícias sobre o futuro da comunicação social não são boas para os jornais. Quem é bom observador sabe que nos últimos anos as tiragens em papel dos principais jornais nacionais desceram para números irrisórios; nos casos dos jornais líderes como o Expresso, o Correio da Manhã e o Jornal de Notícias, a tiragem desceu para menos de metade. É assim também em Espanha que é o país da Europa onde a imprensa escrita tem mais força e onde os diários se multiplicam em várias regiões.

A verdade é que os grandes títulos deixaram de fidelizar leitores como acontecia noutros tempos. E a culpa não é do mercado, mas da forma como os editores continuam a trabalhar, privilegiando as notícias de Lisboa, próximas dos poderes da capital do reino, assim como o acompanhamento das figuras mais mediáticas graças ao papel das televisões que são um caso à parte no meio editorial.

A crise veio pôr a nu outro problema no jornalismo que é  a falta de profissionais com mérito, e também com liberdade editorial, para a formação da opinião pública. É evidente que cada vez mais os jornalistas se dividem nas suas opiniões entre esquerda e direita. Mas o que é mais grave é que falta cada vez mais quem nos conte o que se passa no país, quem leve a carta a Garcia; e no caso dos que só escrevem opinião nota-se, cada vez mais, que os jornalistas estão entrincheirados, ou porque são condicionados pela entidade patronal ou sem capacidade de saírem dos seus casulos. Não é discutindo a ética na profissão que se aprende a respeitá-la, mas é por demais evidente que falta essa discussão; os jornalistas parecem exercer uma profissão em extinção, nem a porra de um congresso conseguem organizar que não seja de dez em dez anos. E há outra coisa extraordinária na profissão: os poucos jornalistas que verdadeiramente se fazem ouvir e são lidos, regra geral também eles são estrelas de televisão.

Os meus 36 anos de actividade profissional, quase desde o início envolvido no movimento associativo a nível nacional, fazem com que já tenha saudades de muita gente que deu o corpo ao manifesto mas que, entretanto, desapareceu de cena vencido e, nalguns casos, verdadeiramente derrotado. Este texto não é exactamente para falar deles mas para lembrar que O MIRANTE continua a ser um projecto de jornalismo de proximidade graças aos ensinamentos que essa gente nos deu. É cada vez mais evidente que os jornais ditos nacionais jamais vão renovar-se; mas não podemos perder a esperança na força do mercado e na reinvenção de negócio. Nos últimos 15 anos fecharam centenas de jornais locais e regionais. O fecho desses jornais era tão previsível como o aumento da influência da Internet nas nossas leituras, incluindo as notícias. E não podia ser maior o aviso à navegação dos denominados almirantes da comunicação social.

“Há uma crise na formação da opinião pública”, diz José Luís Cebrian, porque “o populismo levou a melhor”, e os políticos esfregam as mãos de satisfeitos por verem que são cada vez menos escrutinados porque há cada vez menos jornalistas a escreverem sobre o que se passa no país. 

Uma última nota para dar conta que é minha convicção que um dia todos os jornais em Portugal copiarão o modelo de O MIRANTE, talvez fazendo melhor e com mais meios; se não o fizerem morrem no seu posto mas sem leitores. JAE.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Não sou o Manuel da Pastora mas sou do tempo dele

Escolhi o Manuel da Pastora para esta crónica por causa do valor dos euros na nossa vida de pobres mortais, o valor das propriedades para quem um dia morre e se transforma em pó. Tenho a certeza que o Manuel da Pastora, se fosse vivo e precisassem dele para gerir a coisa pública, era mais competente que esta rapaziada de hoje.

Na minha terra havia um homem chamado Manuel da Pastora que tinha a fama, e talvez o proveito, de ser um forreta. Era um pequeno proprietário de terras com algumas vacas num quintal de uma casa rural no centro da vila da Chamusca, que vendia leite; abastecia uma leiteira, a senhora Custódia, que ia de casa em casa com uma bilha de bico mas vendia também a quem entrava pelo portão da propriedade uma de bilha de mão (hoje uma pesquisa na Internet mostra como estas peças se tornaram objectos de colecção). Em rapaz trabalhava perto da casa do Manuel da Pastora; conheci-o bem, o suficiente para me lembrar da fisionomia dele como lembro a de alguns familiares. Para a época era um homem remediado, com um feitio de bonacheirão, mancava, o que o obrigava a usar bengala, e era de poucas conversas. Como tinha o privilégio de trabalhar atrás de um balcão, num espaço onde ele ia de vez em quando, tinha estatuto para lhe roubar confidências. A alcunha de Manuel da Pastora é fácil de decifrar, porque tinha vacas leiteiras, e a de associar o seu nome a um forreta também não é difícil de perceber. Quem vende e vive do que vende é lógico que tem que ser rigoroso nas contas; e o trabalho por conta própria, às vezes, é também tão castigador que faz com que a pessoa mais sensível ao sofrimento dos outros se torne uma pedra quando lhe pedem fiado ou uma pequena facilidade na compra. Dantes, como hoje, a maioria das pessoas que pediam fiado um dia fugiam e deixavam rasto. Não era por mal. Parecia evidente que fazia parte do contrato de ter conseguido crédito. Não estou a generalizar; muitas vezes as pessoas não conseguiam mesmo sobreviver sem essa facilidade de comprar fiado e conheci e conheço pessoas que não dormem enquanto não pagam as suas dívidas. Também era assim nesses tempos, só que hoje uma lata de sardinha custa um euro e um maço de cigarro custa o preço de cinco latas de sardinha. E hoje é mais fácil a uma pessoa pobre sustentar o vício do tabaco do que nos tempos de Salazar era matar a fome.

Lembro-me muita vez do Manuel da Pastora por o seu nome estar associado a uma pessoa avarenta, egoísta, gananciosa, o que não tenho a certeza que fosse o caso. Mesmo assim sempre tive receio que por tanto trabalhar, e a vida me correr bem, me tornasse num Manuel da Pastora, com medo que o dinheiro nunca fosse suficiente, guardando sempre para o dia seguinte aquilo que já deveria ter gasto, viajado, comprado, usufruído nos anos anteriores. Ainda hoje, e por isso escrevo sobre o assunto, apanho um cêntimo do chão e guardo na carteira, mais em memória desses tempos antigos e do respeito que tenho pelo dinheiro, do que pelo valor ou por qualquer superstição. No meu dia-a-dia, a cada dia que se aproxima a idade da velhice, gasto menos dinheiro do que gastava. Se viajo evito hotéis caros, troco os restaurantes de luxo pelas tascas ou cervejarias, não estrago o dinheiro anunciando, na noite, balcão aberto para os amigos e amigas; conheço as regras principais para poupar gasóleo, água e luz, sou eu que vou com os carros às oficinas, compro e pago para saber sempre com o que conto e estou cada vez mais atento para ajudar na altura certa, e não por capricho ou vaidade, aqueles que são da família.

Sempre gostei no meu tempo de formação de ter a atenção dos homens mais velhos, de jogar às cartas a dinheiro com eles, de lhe ouvir contar o que se passava de errado nas suas vidas, de estudar as palavras e as atitudes dos mais temidos e respeitados. Em vez do Manuel da Pastora podia ter escrito uma crónica contando os episódios de vida com o Manuel Salgado, Tomaz Vacas, Manuel Eduardo Tecedeiro, José Félix, António Padeiro, Manuel Estevão Laranjinha, entre tantos outros. Escolhi o Manuel da Pastora por causa do valor dos euros na nossa vida de pobres mortais, o valor das propriedades para quem um dia morre e se transforma em pó; e escrevi também, embora aqui a escolha não tenha sido importante, porque a Chamusca é uma terra cada vez mais decadente; tenho a certeza que o Manuel da Pastora, se fosse vivo e tivesse forças, e precisassem dele para gerir a coisa pública, era mais competente que esta rapaziada de hoje. JAE.