quarta-feira, 21 de abril de 2010

A eternidade de Saramago

A Fundação José Saramago convidou o poeta Juan Gelman para visitar Portugal. Estive em duas sessões que se realizaram em Lisboa. Na primeira fui até ao fim. Na segunda saí da sala quando iam começar os discursos oficiais. Pratico esta liberdade de sair de uma sala onde me querem encher os ouvidos com a mesma satisfação que fico em casa a ler ou a ver um filme em vez de comparecer a iniciativas que prevejo sejam chatas graças aos eternos frequentadores.
Na nossa terra usa-se e abusa-se desta mania. Certa gente, quase sempre os mesmos, só gostam de se ouvir a si próprios. Em vez de darem a palavra aos oradores e convidados, que muitas vezes viajam de tão longe para falarem apenas 20 minutos, são eles que ocupam o tempo para contarem histórias pessoais e para colocarem questões que não são perguntas mas sim tentativas mal educadas de se mostrarem também como “especialistas na matéria”. Em Portugal não há uma cultura de respeito pelos intelectuais que começa exactamente nas cadeiras da assistência quando alguns marmanjos se sentem no direito de terem os seus 15 minutos de fama custe isso o que custar aos seus camaradas mais humildes da cadeira do lado, aos oradores e organizadores.

José Saramago fez 86 anos em Novembro. Apesar da doença Saramago resiste como um leão. Na passada semana os médicos descobriram finalmente o vírus que se alojou nos pulmões e que o derruba literalmente quando toma antibióticos.
Estava a ouvir o presidente da Fundação José Saramago a explicar o milagre do trabalho dos médicos, que devem ser pagos a preço de ouro, e a lembrar-me do meu avô paterno que caiu na cama de um hospital de onde saiu directamente para a cova. O médico de serviço tratou logo do milagre de o despachar para o inferno encharcando-o de medicamentos. Foi há mais de 25 anos mas lembro-me como se fosse acontecimento de hoje. Ia vê-lo todos os dias e a cada dia que passava ele ficava mais moribundo. Foi internado por ter caído e partido um osso mas depressa levou com uma dose de cavalo de medicamentos que o levaram desta para melhor. Para além do catarro e das dores nas articulações nunca conheci o meu avô doente. No dia em que caiu na cama do hospital foi como se tivesse entrado numa câmara de gás. Durou só mais uma semana.
Ouvi Saramago a dirigir-se à plateia através de um vídeo, quase a comer as palavras e com uma cara ainda marcada pela presença do vírus nos pulmões, e percebi que por ter ganho o prémio Nobel conquistou um direito de viver que não está ao alcance de todos. Não fosse ele quem é, por mérito próprio, e o vírus já lhe tinha feito a cama, como os médicos fizeram a mortalha ao meu avô.


Nota: Encontrei o velho Juan Gelman à entrada do auditório e perguntei-lhe se não tinha pena de ser pouco traduzido e conhecido em Portugal. Respondeu-me à Saramago: e o que é isso comparado com aquilo que o povo sofre? Para além de grande poeta Gelman tem uma história de vida que é comum a muitas famílias que viveram e ainda vivem as ditaduras na América Latina. Só que a grande maioria não pode contá-las como Gelman.
Em 1976 foram sequestrados os seus filhos Nora Eva, e Marcelo Ariel, de 20 anos, com a sua nora María Claudia, de 19, que se encontrava grávida de 7 meses. Desapareceram para sempre. Em 1978 Gelman soube através da Igreja  que a sua nora tinha dado à luz sem poder precisar onde nem o sexo da criança. 14 anos depois, em 1990, foram identificados os restos mortais de Marcelo, encontrados num rio dentro de um contentor de gordura cheio de cimento. Em 1998 Gelman descobriu que sua a nora tinha sido enviada para o Uruguai através do Plano Condor. Só veio a descobrir e a identificar a neta em 2000, 23 anos depois. Do cadáver da nora ainda não se sabe nada.

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