quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Nascer no Ribatejo

As cheias do Tejo estão aí outra vez para nos moerem o juízo e para prejudicarem a vida daqueles que vivem da terra e precisam de preparar as terras para as próximas sementeiras. Por outro lado esta água é uma bênção; alimenta os aquíferos, limpa os valados e as marachas, aduba a terra como nenhum outro fertilizante comprado nas lojas da especialidade.
De verão quando vou ao Tejo mergulhar, ou de inverno quando me aproximo para ouvir o canto das águas a dialogarem com as margens, o rio é sempre o lugar que me identifica ao longo de todos os anos de vida.
Desde que me conheço como gente que me identifico pelo nome e pelo lugar onde nasci, que fica entre a charneca e a lezíria, com o Tejo pelo meio e um aglomerado de casas a colorirem a paisagem.
Quem nunca viu tirar a cortiça de um sobreiro, ou nunca observou um grupo de homens ou mulheres a podarem uma vinha, não pode olhar para a rolha de uma garrafa ou provar do seu vinho como olham, e provam, aqueles que tiveram a sorte de nascer no Ribatejo.
Há quem diga que o pastor é eterno porque tem o espírito preso à terra e tudo o que aprende é renunciando. Por estas alturas das cheias do Tejo, com a memória ainda fresca dos mergulhos no rio durante o verão, sinto a magnificência de quem renuncia de uma forma continua e inexorável. E faço-me ladrão de sentimentos para me sentir também magnifico a oferecer a mim próprio a derrota do espírito.
Há meses ofereci a um jovem escritor “Cartas a um jovem poeta” de Rilke. Algum tempo depois um outro jovem escritor aconselhou-me a leitura do livro. Sinto-me a ir com as cheias pelo rio abaixo e também me sinto a viver a alegria de construir jangadas como nos tempos da infância. Nunca soube usar tinta e pincel para retratar o meu mundo imaginário numa tela. Sempre senti, no entanto, em todas as idades, que tinha uma trincha nas pestanas para traçar riscos ilimitados nos meus horizontes.
Há hora a que me lêem, se forem horas de trabalho, há milhões de burocratas, políticos, lobistas, gente macabra que vigia os nossos passos e as nossas carteiras, a rirem-se da poesia das nossas palavras. Nós, os sonhadores, sabemos que por cada descoberta da cura de uma doença há outras tantas que vão aparecendo das quais ninguém fala para nos ajudarem a aguentar o caminho até à recta final.
Os dois livros destas últimas duas semanas são o relato de duas viagens à Grécia contadas com as emoções de quem visita os deuses nos altares: O Colosso de Maroussi de Henri Miller e Um Adeus aos Deuses de Ruben A. Há muito tempo que não era tão feliz a descobrir que “a rendição para ser perfeita tem que ser absoluta”.

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