quarta-feira, 14 de novembro de 2007

As Bicicletas em Setembro


Acabei de arrumar alguns livros de Clarisse Lispector que li e reli durante a viagem, livros de biografias, traduções de poetas gregos, franceses e ingleses. E de todos os livros comprados e lidos entretanto é este que tem lá dentro a minha “intimidade” e o meu “corpo” que são “as únicas propriedades privadas do ser humano” (pag 83). No interior do livro, que é como o interior da minha última viagem, “vi várias vezes o diabo mas nunca perdi a alma” (pag 71), e também nunca deixei de sentir que, às vezes, “ficamos em certos sítios, ou com certas pessoas porque achamos que não merecemos melhor” (pag105). “As Bicicletas em Setembro” é um livro de viagem pela infância que mistura sonho e realidade, um livro de mistérios que povoam a infância de todos os homens e mulheres do nosso tempo.Um mês depois de um regresso de 20 dias de viagem começo a arrumar os livros, as revistas, os recortes de jornais e os papéis cheios de memórias. Cada vez que regresso é uma alegria. Trago alimento para algum tempo e deixo para trás um rasto que sei que vou ter que retomar um dia destes. O que me leva a falar do umbigo é esta sensação de estar a remexer nesse passado com pouco mais de um mês quando, entretanto, já mergulhei num presente feito exactamente da mesma massa, com pessoas, com livros comprados quase diariamente, revistas por ler, jornais que se acumulam de um dia para o outro e que são de leitura obrigatória, e muitos apontamentos a propósito de coisas inadiáveis que, muitas vezes, acabam no bolso das calças dentro de uma máquina de lavar.
Uma dessas memórias do último mês é um livro de Baptista Bastos, “As Bicicletas em Setembro”, edição da ASA, que me coloca no centro do mundo, esteja eu na Chamusca ou em Londres. O autor de “O Secreto Adeus” escreveu um novo romance, quase memórias, de um homem que nasceu num bairro de Lisboa, cujos lugares e heróis bem podiam ser, embora com outros nomes, os da minha infância numa vila do Ribatejo.
Um dia fixei um chinelo velho abandonado no meio da rua. Um quilómetro mais à frente apareceu-me uma criança, meio assustada, a perguntar se não tinha visto o seu chinelo perdido. Aquele episódio marcou-me. Como é que se guarda na memória, em tempo de tanto lixo, a lembrança de um velho chinelo perdido junto de uma valeta? E o que é que leva uma criança a percorrer de volta um caminho tão longo para reaver um chinelo perdido? O novo livro de BB é um romance de grandes emoções. Transporta-nos ao tempo em que levávamos com o chinelo no rabo, mas também nos faz recordar quase tudo da vida e dos lugares “para onde vão os pássaros quando morrem”.

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