quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O Processo: um livro sobre Justiça que vai para segunda edição

O MIRANTE vai publicar uma segunda edição do livro O Processo que conta um caso exemplar de como se ataca a liberdade de imprensa em Portugal e como um advogado conseguiu manobrar o sistema judicial com a aparente complacência de alguns actores do sistema.

O MIRANTE vai editar uma segunda edição do livro “O Processo” que conta um caso de perseguição a este jornal com intenção de acabar com ele. O processo foi obra do advogado Oliveira Domingos, que por causa de uma notícia de interesse público, quando quis sacar meio milhão de euros à Câmara de Santarém, sentiu-se ofendido por O MIRANTE ter dado notícia do assunto. Recorde-se que Oliveira Domingos era advogado da câmara dirigida por Rui Barreiro, e que tinha trabalho como avençado e como responsável por outros processos à parte dessa avença, recebendo por isso dividendos chorudos. Foi sobre esses processos que lhe iam ser retirados que pediu quase meio milhão de euros de indemnização, e que depois acabou por receber um pouco menos devido às notícias de O MIRANTE. O jornalista Orlando Raimundo veio para Santarém consultar os milhares de documentos deste processo monstruoso, e contou em livro o que não está muito longe da realidade kafkiana da Justiça em Portugal, meio século depois do 25 de Abril.

O processo demorou sete (7) anos e chegou a somar uma indemnização de quase 30 milhões de euros ao advogado que tinha, e ainda tem, segundo julgo saber, escritório em Santarém.

Oliveira Domingos, que entretanto desapareceu da cidade, também não imaginou no que se ia meter, e pensou que as cumplicidades a nível político e judicial seriam mais que suficientes para destruir O MIRANTE e a vida dos seus jornalistas e restante equipa. Enganou-se redondamente. E a reedição do livro é importante porque, com o tempo, há quem pense que o assunto está esquecido. Não está. Orlando Raimundo actualiza a edição com um texto que diz bem da complexidade e da importância que dedicou a este julgamento.

Este caso de O MIRANTE é único na imprensa portuguesa devido à forma como a Justiça o decidiu em primeira instância e na aceitação de uma providência cautelar inimaginável num Estado de Direito. Ninguém falou dele ou quis contar ou denunciar, mostrando também que a solidariedade entre jornalistas e meios de comunicação social não existe, nem ao nível local quanto mais ao nacional. E a postura do Sindicato dos Jornalistas e das associações de imprensa, são exemplares também a esse nível. Tristes e lamentáveis.

Esperamos ter a oportunidade de publicar nestas páginas, agora que o livro já vai para segunda edição, alguns capítulos que demonstram até que ponto podemos ser esmagados por uma justiça sem profissionais competentes, que se deixam manobrar, ainda que por vezes sem culpa própria por falta de preparação para o que não viveram, não estudaram e não tiveram a coragem e a humildade de se informarem; e, ou, em último caso, acharam que éramos demasiado frágeis como empresa e como profissionais do jornalismo, e que bem podíamos desaparecer debaixo das botas cardadas de um advogado com muitas influências, e de uma Justiça muitas vezes impreparada. JAE.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Foi preciso chegarmos a 2024 para aparecer um governo que quer acabar com a publicidade na RTP

A RTP recebe anualmente 200 milhões de euros do Estado e factura publicidade em concorrência com todas as empresas de comunicação social do país. Não é justo. No mínimo é uma afronta. 


Num dos livros mais belos da literatura do nosso tempo, Sándor Márai conta uma história ao longo de quatro décadas dando voz a quatro narradores. De verdade é um livro fabuloso, daqueles que fazem jus a um texto de Baudelaire, que cito de cor, que diz que a leitura e releitura ao longo da vida de dez grandes livros chegam para fazer um homem culto.

Já perto do final do livro, uma das personagens mais belas e sinistras do romance, conta que “a pobreza para as crianças é diferente do que imaginam os adultos que nunca foram pobres de verdade. Para a criança a pobreza é sempre divertida, e não apenas miséria. Para a criança pobre, a sujeira em que ela se arrasta e se deita é boa. E na pobreza não é preciso lavar as mãos. Para quê? A pobreza é ruim, muito ruim, somente para os adultos... é o pior que tudo, é como a sarna e a cólica do intestino”.

A personagem usurpou o poder de um homem, tomou conta da sua casa rica e da fortuna de uma família, onde toda a vida foi empregada doméstica. Judit, é assim que se chama a personagem, conta num quarto de hotel de Roma a um novo namorado como foi viver a experiência de passar de empregada do patrão a sua esposa. E relembra como em criança era feliz ao chapinhar na lama da vala que passava perto de sua casa, ao mesmo tempo que conta como viviam os ricos, as suas vidas, as suas manias, os seus poderes, as suas incompletudes que, quase sempre, nos romances, mas também na vida real, roçam o ridículo.

Confesso que conheci este livro muitos anos depois de conhecer o professor doutor Alberto Arons de Carvalho, recentemente eleito presidente do Conselho Geral Independente da RTP um órgão de supervisão e fiscalização interna do cumprimento das obrigações de serviço público de rádio e televisão, previstas no contrato de concessão assinado entre a RTP e o Estado.

Arons de Carvalho é o homem forte do PS para a comunicação social, e para ele a idade não conta, o importante é estar vivo e poder continuar a ter uma palavra na gestão do serviço público, seja ele qual for, desde que seja sentado numa cadeira dourada.

Com 75 anos e uma carreira política sempre à tona de água, Arons de Carvalho é um dos coveiros da Imprensa local e regional, não tanto pelo que fez, mas pelo que não fez. E estou a ser curto e grosso para não me alongar. Claro que não é ele o único culpado do fecho de mais de meio milhar de jornais na última década, mas é sim senhor um dos políticos mais responsável do estado a que chegamos, tanto enquanto secretário de Estado com a tutela da comunicação social como em outras funções onde teve poder sobre as políticas para os media.

Há muitos anos que tenho esta convicção, já pública e publicada, devidamente fundamentada em testemunhos e testemunhas que, na sua grande maioria, já morreram ou ficaram a espernear na árvore em que se enforcaram.

Enquanto vou relendo alguns livros da minha vida, como é o caso “De verdade”, vou também observando como os políticos conseguem manter os seus poderes num país que já tem mais anos de democracia do que teve de ditadura salazarista. Para mim a metáfora sobre a pobreza da Judit aplica-se que nem uma luva aos políticos que se agarram ao poder como as lapas às rochas. Há por aí uma geração de políticos que não largam os ossos, cujas vidas só ficam completas quando saírem em ombros dos organismos públicos para logo de seguida, roçando o ridículo, caírem de cu na lama de uma vala onde brincam as crianças pobres.

Nota. Foi preciso esperar pelo ano de 2024 para aparecer um governo que finalmente vai proibir a RTP de facturar publicidade em concorrência com as empresas privadas que prestam o mesmo serviço mas não recebem 200 milhões de euros por ano de financiamento dos dinheiros públicos. Nada contra a RTP, mas sejamos justos; só quem é parvo é que não percebe que há muitos anos que estamos a regredir para o país que já foi de filhos e enteados. JAE.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A ciência cidadã, a D. Isaura, a D. Emília e o cheiro das palavras

Uma crónica sobre conversas ao telefone depois das viagens, o lançamento de um livro que vai fazer história e um projecto de ciência cidadã que na próxima semana poderá ler nas páginas de O MIRANTE


Esta crónica tem as marcas de uma conversa ao telefone com Isaura Baptista Bastos e uma longa manhã de volta de meia centena de livros que viajaram comigo e que preciso de arrumar de forma a não os perder de vista conforme o interesse do momento: os que ainda não li, os que comecei a ler e deixei a meio, os que li quase até ao final e deixei em suspenso, e os que tenho que ler nem que a vaca tussa, mesmo que tenha consciência que o meu tempo é finito, e se me fecho em casa a ler fico o mais infeliz dos seres humanos.

A D. Isaura tem 85 anos e é uma orgulhosa companheira de vida, e de uma vida, do jornalista e escritor Baptista Bastos que faleceu em Maio de 2017. De vez em quando falamos ao telefone e pomos a conversa em dia. Não conheço ninguém que tenha tanta alegria de viver e esteja dependente de uma cadeira de rodas, e de um andarilho, por causa de uma queda que lhe causou diversas fracturas. Cada vez que conversamos encho duas folhas de notas. Não sei para que vão servir mas é o hábito que faz o monge. Estamos sempre ligados embora só falemos de tempos a tempos. Eu porque continuo leitor e admirador do autor de "Bicicletas em Setembro" e Isaura porque vai lendo O MIRANTE como se fosse o jornal da sua terra ( e é de certo modo porque a casa em Constância ainda existe, e eu nunca vou esquecer o passeio pela Chamusca a procurarmos uma casa que eles queriam comprar por razões que agora não interessa explicar).

Esta coisa de escrever deve-se muito ao facto de as palavras terem cheiro, de haver palavras que não pronuncio por serem feias, de viajar muito, na maioria das vezes de forma imaginária. Sim, porque eu estou agarrada a uma cadeira de rodas, mas estou sempre a sonhar, embora não realize a grande maioria dos meus sonhos. Nem quero realizar. Depois como é que continuava a sonhar? O meu marido foi o jornalista que mais escreveu sobre Lisboa, mas as crónicas e as entrevistas que publicou, nomeadamente  no jornal O Ponto, jamais serão esquecidas. Tenho saudades dele, dos livros que recebia em casa, de o ouvir ler um livro de um novo autor e dizer que gostava mais do original.

Estou a misturar palavras minhas com frases de Isaura Baptista Bastos para que a crónica avance e os leitores não me chamem chato, habituados que estão a que eu seja pão pão queijo queijo. O problema é que preciso sair para a rua e dar uma volta de moto, e apanhar sol na careca e vento no rosto. Isto de ficar horas e horas seguidas agarrado aos livros dá mau resultado. Ficamos mais inteligentes mas mais curvados, mais velhos, gozamos menos os prazeres físicos das caminhadas, dos passeios à beira mar, das visitas à beira Tejo e, acima de tudo, das viagens sem destino que só possíveis quando nada nos obriga a ficarmos agarrados a um computador ou a um posto de trabalho.


No passado domingo fui participar numa iniciativa de um projecto de ciência cidadã com mais meia-dúzia de almas. Foi na Azinhaga por onde passa o Almonda que está infestado de jacintos, não tem fauna piscícola mas tem água suficiente para um barco descer até ao Tejo. Falo do assunto porque no regresso à Chamusca meti pela estrada do campo até ao Barracão do Duque e evitei passar na Golegã. A Feira para mim já era. Assim que terminar volto lá para comer um peixe assado na Adega do costume.


Domingo, dia 17 de Novembro, vou apresentar o livro de Emília Infante Pedroso que, finalmente, está nas bancas. Não acredito que o livro se torne um best seller, mas acredito que vai ter muitos leitores, e alguns vão gostar de ler a história de vida de uma menina de bem, que aos vinte e poucos anos foi internada à força, depois de ter fugido com um hippie e ter sido presa em Espanha por ordem da família. Emília Infante Pedroso descende de uma das famílias mais conhecidas da vila, e a sua autobiografia vai ficar a marcar para sempre o meio chamusquense, que nunca teve ninguém com o seu estatuto a escrever sobre a terra e algumas aventuras e desventuras. JAE.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Uma leitura que é uma aventura: "O Coronel e o Lobisomem"

Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Quem me conhece sabe que não sou loroteiro ou espalhador de falsos. Mato a cobra e mostro o pau. Com esta voz grossa que Deus engastou na garganta do neto do meu avô, não há desavença que eu não desmanche na força do berro, muitas vezes no intervalo de uma chupada no charuto debruçado na varanda do beiço. 

Um dia encontrei um camarada vingancista que ameaçou que eu não pegava o tempo das águas com vida no corpo. Como fosse mês de agosto aproveitei para fazer ironização: seu boi de chocalho, em tempo de sapo, de jacaré pedir agasalho, já combati até com trovão. E sou homem de comer vivinho qualquer querelante (embora de verdade, no meu natural, até sou capaz de pular de lado para não matar minhoca). Metido ao barulho, disse sem ostentação que Deus não cresceu o neto do meu avô para que ele desperdiçasse toda essa grandeza em raiva de anão, em ódio de sujeito nascido para caber em anel de costureira, aguardenteiro de curtas letras que mal sabia assinar escrituras e recibos de cachaças.


Sosseguei na espreguiçadeira,  bem comido e charutado, barba repousada no peito. Senti no rosto um ventinho candeeiro de água. Enquanto dormitei, ri no íntimo e abri o livro de S. Cipriano em parte que eu conhecia: o caso de uma penitência levada da breca, coisa acontecida num longe antigamente, que nem o lobisomem era de existir mais de corpo inteiro. Um cachorro olhava e gemia um gemido comprido, de ser medido a metro. Um boiadeiro, joelho em terra, pois era muito devocioneiro, procedeu ao sinal-da-cruz, e em reza forte caiu e depois sumiu em viagem maluca no seu cavalo branco de luar.


Por causa de uma menina professora nunca andei tão embonecado na vida, e viajava de longe a mata-cavalos em água de cheiro, coisa de causar admiração mesmo ao nariz mais acostumado a essa mimosura. Só do baú de um cometa arrematei toda a praça de sabonete, fora as encomendas. O povo fuxicava de tal esmero: o Coronel tem moça em vista. Nem galante das ribaltas podia comigo. Quando retirava o lenço do bolso traseiro, que é onde aprecio guardar essa utilidade, o cheiro do frasco saltava longe. Nos rodados do vestido da menina Isabel, meu atrevimento encolhia. A boca do Coronel, dona de tanta fala, nessas especiais circunstâncias perdia venenos. Um dia, a moça que era de trato fino, rasgou seda: muita honra, Coronel. Respondo no mesmo pé de educação: a honra é minha e dela não abro mão.


No tempo em que ainda era negócio limpar picada de surucucu, já havia curador que em mais de um mês não tinha um caso de veneno. O povo botava de quarentena o ofício de Tatu e a criançada corria de urina no ponta do birro ao sentir o cheiro da mulinha do curador que tinha fama, vinda de longe, de manobrar dente de cobra. Noite alta, no cemitério de São Gonçalo, viram o curador alisar a cabeça de jaca de uma surucucu; não só alisou como falou na orelha dela coisas e segredos próprios das serpentes. Com a ponta do dedo avivou o saco de peçonha da cobra que logo ficou tomada de raiva, possessa, e por um buraco da coberta picou um pardavasco em veia mortal. Foi ele e outro alguém nenhum, que desses poderes do mato só Tutu tem a segredagem, disse o povo acusador. 


Estou sentindo bafo de caça maior, aí pela ordem de uma onça,  bem mamada e melhor criada. Vosmecês todos, gente de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.


Um danoso de um Lobisomem, se passasse no carrascal, não fazia tanto estrago na coragem dos meus agregados. Encarei de frente o medo da comitiva era de escorrer do rosto igual a leite de mamão. Segurando esses receios pela goela, fingi aborrecimento. Isto é uma companhia de caça ou acompanhamento de defunto?


Sei comandar com mão de ferro e punho doce. E se for cavalo sou capaz de o fazer relinchar nas patas do coice. Nas minhas viagens nao careço de mijão na rabeira; e hoje cheguei de viagem no Sobralinho mais água podre do que gente. 


O texto desta crónica é roubado à leitura de um livro que é um dos melhores de sempre em língua portuguesa, do Brasil, e que embora já tenha chegado à meia centena de edições, sempre pela mesma chancela, nunca me apareceu pela frente. Até há meia dúzia de dias no mesmo lugar de sempre, no Rio de Janeiro, em casa de amigos que gostam tanto de vinho ribatejano como de livros. Chama-se O Coronel e o Lobisomem, da autoria de José Cândido de Carvalho, e é uma experiência de leitura de se lhe tirar o chapéu e o couro cabeludo. Não resisti ao prazer da leitura e fui roubando alguns trechos que juntos deram esta crónica. 

Uma nota final: os editores europeus perdem as botas e os sapatos de engraxar a caminho das feiras do livro de Frankfurt e etc, para comprarem direitos de autor de escritores que, a maioria das vezes, são ou foram alunos de escrita criativa dos professores universitários que trabalham para as editoras. E assim se faz a vida e enchem as estantes de novas estrelas, e se esquecem, e muitas vezes se escondem, as verdadeiras jóias da nossa literatura. Neste caso acho que nem podemos falar de dinheiro e interesses económicos, mas de uma estúpida ignorância sobre a realidade da literatura brasileira e da sua qualidade. JAE.