quinta-feira, 26 de junho de 2025

A vida na aldeia e o que se dizia nos altares das igrejas

Estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe.


Sou um provinciano assumido embora goste de entrar em palácios e palacetes e até ficar por lá a beber um copo. Depois vou à minha vida, e essas experiências para mim são como ir ao cinema. Se forem boas fica a recordação, se não forem, um dia já estou a ver o filme outra vez de tanto ouvir dizer que é bom. Assim é com os palácios e os palacetes, ou seja, os museus, que visito vezes sem conta embora me dê ao luxo de mal conhecer alguns considerados famosos que são de visita quase semanal de gente muito importante.

Lembrei-me deste privilégio de me sentir um provinciano ao ler três newsletters seguidas que o Expresso me envia por ser subscritor dos temas que os jornalistas tratam semanalmente e que me oferecem de mão beijada. Confesso que com estas leituras resumidas das notícias de Lisboa fico informado o suficiente para não ver televisão e, muito menos, ler os jornais mais do que aquilo que me interessa sobremaneira.

Foi num desses dias em que enchi o papo de informação desportiva e política resumida (do Expresso e do El País) que estive mais de uma hora à conversa no meio da rua com duas vizinhas do meu bairro. Elas estavam a ver cair a tarde sentadas à porta; parei o carro na rua onde cabem à vontade dois automóveis, e estive ali num bate boca como há muito tempo não experimentava. Só não falámos de política, de resto o que veio à rede era peixe e algum já enlatado há muitas dezenas de anos, tal foi o alcance temporal dos temas que tratámos na cavaqueira.

Como tinha o carro a apanhar uma faixa de rodagem, e estávamos os três a apanhar ainda uma parte da outra, embora encostados à parede,  os carros que passavam para baixo e para cima tinham que abrandar à séria, embora a rua seja daquelas onde apetece acelerar. 

Escusado será dizer que tirando os que acenavam com a mão por serem conhecidos ou vizinhos, os outros faziam má cara por terem que reduzir a velocidade de 80 ou 90 para 30 ou 40 quilómetros por hora. E naquela hora fiquei a saber por uma das vizinhas o que custa sair à porta de casa e levar com um carro a quase a 100 à hora numa rua dentro da vila, onde, de repente, pode saltar uma criança ou um adulto distraído com o saco do lixo na mão.

Habituado a andar mais de carro do que a pé nas ruas da minha aldeia, de vez em quando também com a mania que as ruas foram feitas só à medida dos automóveis e das motos, ouvi cobras e lagartos de condutores que passavam e faziam má cara por causa do incómodo de terem que abrandar a velocidade.

Nem abençoado pela conversa, com duas pessoas com quem não falava há muitos anos, deixei de pensar nas vezes em que eu também, sempre a acelerar para não perder o comboio, noutras ruas e noutras vilas e aldeias, devo ter levado o responso que, naquele fim de tarde, ouvi rezar com todas as letras a pessoas que conduziam os seus automóveis com o semblante de quem levava o rei na barriga.

Cheguei ao fim do texto sem explicar muito bem por que é que comecei por escrever que sou um provinciano assumido. Agora também já não tenho muito espaço para explicar, mas fica aqui o resumo do que não consegui escrever: a vida na aldeia já não é o que era dantes mas, embora não sinta saudades de outros tempos, vale mais uma hora de conversa sobre o que se dizia no altar da igreja há meio século, do que ver e ouvir os novos padres das paróquias a darem missa campal. JAE.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Leila Slimani, Carla Madeira, Arturo Pérez-Reverte, Juan José Millás e a fraqueza de quem tem o poder

O juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. 

Nos últimos dias já visitei mais vezes a Feira do Livro de Lisboa do que nos últimos três anos. A Feira do Livro de Lisboa também é uma feira de vaidades. Os livros baixam de preço até 30% mas a grande maioria já está nos sítios dos alfarrabistas, ou numa qualquer feira, a menos de 50% do custo inicial. A questão aqui é a Feira, o espaço, o convívio, o livro que é pretexto para ir dar uma volta, comer uma fartura, beber um café, marcar um encontro, e encontrar acima de tudo. A Feira é um grande negócio para quem a organiza e uma forma de os grandes grupos editoriais fazerem a promoção das suas marcas. As vendas devem ter muito pouca importância, a levar em conta que o mesmo título do mesmo autor muitas vezes enche uma estante inteira. E os pavilhões são pequenos. E cada um custa quase dois mil euros. Por isso há grupos editoriais que alugam dezenas deles para mostrarem importância e grandeza. E há editores que deixam lá as suas barbas porque nem devem ganhar para o que comem.

Este ano encontrei logo nos primeiros dias duas escritoras excepcionais de quem gostava de ser amigo. Carla Madeira e Leila Slimani: cada uma delas, separadas por meia dúzia de anos, escreveram dois romances eróticos como não conheço muitos, que deixam os textos de Henry Miller ou de Casanova a milhas de distância. Durante o tempo em que estive a observar as sessões de autógrafos, posso garantir que 80% dos leitores eram mulheres. "O Jardim do Ogre", da Leila Slimani, contra a história de uma mulher ninfomaníaca e o "Tudo é Rio", da Carla Madeira, conta a história de uma prostituta envolvida num triângulo amoroso. Mas estes dois títulos são, nos dois casos, apenas o início de carreira de duas grandes escritoras com livros que já venderam mais de um milhão de exemplares.

Conversei cinco minutos com Carla Madeira, que já é uma senhora de 60 anos, mas a minha conversa com Leila Slimani continua adiada. Leila Slimani não tem mãos a medir apesar dos seus 43 anos; se há alguém na literatura que nesta altura tem estatuto de vedeta é ela. Acaba de publicar o último livro de uma trilogia que conta a saga da sua família, mas antes destes três romances mais autobiográficos tem outros títulos que os seus futuros leitores têm que desbravar para se apaixonarem primeiro pelos seus primeiros quatro livros, entre eles Canção Doce, que é um romance de uma crueza incomum, que só pode ser contado por a sua autora ser genial e certamente a melhor discípula de Tahar Ben Jelloun.


Não me canso de citar Fernando Pessoa que escreveu que a literatura existe porque a vida não chega. No dia em que escrevo este texto encontrei uma entrevista com Juan José Millás que, a certa altura, conta que leu no jornal que “o juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. Ou seja, a menos que esteja meio metro mais alto do que a pessoa interrogada. É assustador, mas exemplifica muito bem o que está a acontecer. Em outras palavras, um juiz vir interrogar uma testemunha, a um lugar, e pedir uma tribuna, porque senão ele não sabe interrogar... é um ponto de vista esclerosado; para ele, esse olhar de cima para baixo é o olhar do poder. E ele, para interrogar uma testemunha, tem que se sentir mais poderoso”. A citação está fora do contexto da entrevista mas vive bem sem ela. E resolvi aproveitá-la para introduzir aquilo que se passou com um amigo a quem dava trabalho para o ajudar a ganhar a vida. Numa das muitas vezes que entrei na sua empresa, certo dia mandou-me sentar num sofá no seu escritório para me fazer as queixinhas do costume. Só que desta vez acrescentou uma conversa incomum: perguntou-me se eu tinha dado pelo facto de estar sentado num sofá que me obrigava a olhar para ele de queixo levantado, de baixo para cima. Lembro-me de ter sorrido e ficado calado.  Então ele explicou-me que estava farto de ser usado, que estava a obrigar todas as pessoas que iam à sua empresa a olharem para ele com a bola baixa, não aguentava mais tanta desfaçatez. Não é nada contigo, afirmou, mas queria que soubesses, explicou, como explicava muitas vezes o que lhe ia acontecendo na vida de menos bom, e que eu ouvia devolvendo algumas palavras de circunstância mas também de conforto. Esta história é antiga e desde essa altura que praticamente deixei de ver a criatura. Deixei de lhe dar trabalho e ele deixou de me aparecer pela frente. Há pessoas que só existem na nossa vida porque nós somos condescendentes, vamos beber todos os dias à nascente do rio e depois durante o caminho paramos para dar um pouco de água a quem não sabe que os grandes rios começam de uma pequena nascente e vão desaguar num grande estuário que, regra geral, é o mar.

Na mesma revista online (Zenda) onde li a entrevista com Juan José Millás pode ler-se uma crónica de Arturo Pérez-Reverte que se intitula “No dia em que me tornei nazista”, em que ele explica como conseguiu entrevistar um nazista a quem Franco deu nacionalidade espanhola e que estava escondido em S. Sebastian. Arturo Pérez-Reverte é outra grande figura da literatura e do jornalismo que me impele a meter a cabeça nos livros diariamente e a aprender a gostar de viver sempre com um livro debaixo do braço ou a sonhar que viajo nas histórias que vou lendo. JAE.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um Ribatejano encantado com a vida no Minho

Crónica sobre a arte de ser feliz a caminhar, e descobrir o país a norte, onde as tradições nos remetem para os tempos dos nossos avós.

Se quero saber quantos anos Portugal está atrasado em relação aos países mais desenvolvidos do mundo, viajo para Itália. E não é nem de longe nem de perto o melhor exemplo, mas é aquele que eu encontro com mais facilidade juntando o útil ao agradável. Depois Itália teve, e ainda tem, uma organização cujo nome (Máfia) já entrou no dicionário de todas as línguas do mundo e que, com o tempo, acabou por chegar a Portugal, coisa que facilmente se comprova, embora o pior ainda esteja para vir (e todos seremos vítimas. E não haverá inocentes… nem pintados de azul).

Se quero saber como Portugal e os portugueses são diferentes nas várias regiões, subo ao Norte e fico por lá dois ou três dias e vejo como o povo português do sul e da grande Lisboa, onde vive quase um terço da população, é tão diferente do povo do norte como os brasileiros são diferentes dos ucranianos.

No primeiro domingo do mês de Junho caminhei todo o dia pelas margens e leito do rio Caldo, em plena Serra do Gerês, e tive a sorte de seguir na estrada, e depois pelo meio do mato, a “Subida da Vezeira”, tradição que se explica em poucas palavras: no início do Verão, o gado bovino é conduzido para os baldios, onde permanece durante a época de pastagens mais abundantes. A vezeira é acompanhada pelos vezeireiros, que cuidam do gado e das suas necessidades na vezeira.

Quem não sabe um boi desta vida em comunidade admira-se, primeiro por ver como animais com 500 quilos conseguem subir aqueles terrenos montanhosos e cheios de mato, e, depois, como ainda há pessoas que mantêm a tradição de criar animais quando, economicamente, a grande maioria só tem prejuízo, embora tire partido do prazer e do prestígio local de ajudar a manter as tradições, contribuindo ainda para a preservação do património cultural imaterial e para a valorização do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Como o caminho que fiz ao longo do dia me levou para várias freguesias da Serra do Gerês, tive oportunidade de conhecer outros vezeireiros de outras vezeiras, e de ouvir contar como se organizam, como se defendem no Inverno, e de que forma se organizam para deixarem o gado no pasto e poderem ir à sua vida, que, ali, toda a gente vive de vários ofícios.

Apesar da conversa viva e culta sobre os costumes das gentes daquelas aldeias, foram dois adolescentes, que acompanhavam os pais, que me explicaram como funcionam e se organizam os vezeireiros, a cor de cada um dos animais, as suas origens, enfim, um tratado que só se escreve, edita e estuda na universidade da vida.

O rio que percorremos ao longo de sete quilómetros, durante uma boa parte do dia, tem as piscinas mais belas do mundo, digo eu, que, embora já tenha viajado muito, só conheço meia dúzia de metros quadrados de paraíso, pelas minhas contas uma parte ínfima do que deve ser o tamanho do olimpo.

A Gabel Oliveira, que é a guia do grupo e viajante profissional, foi quem me fez voltar a caminhar por carreiros de pastores, a saltar de pedra em pedra, e a deixar, por enquanto, o grupo do meu amigo Carlos Cupeto, que, não sendo viajante profissional, é um dos maiores dinamizadores culturais que já conheci, com uma actividade em várias áreas que vão desde a caminhada à tertúlia, entre muitas outras. Há muitos anos que o acompanho, mas ultimamente não tenho marcado o ponto. JAE.