quinta-feira, 31 de julho de 2025

Numa guerra os primeiros a morrer são as crianças

É imperdoável que os líderes dos organismos mundiais, a começar pela ONU, dirigida pelo português António Guterres, discursam nos dias de hoje a clamarem que “a fome jamais deve ser usada como arma de guerra”, quando todos os dias, e de há muitos séculos, essa é a arma principal dos facínoras. Uma vergonha que nos envergonha. 


Julho e Agosto são meses de menos trabalho em quase todas as profissões: a economia do país cresce significativamente em muitas áreas mas na maioria dos casos quase que anda a passo de caracol. Eu não me queixo: faça sol ou faça chuva tenho sempre trabalho, e quando não tenho invento, que é aquilo onde, para minha desgraça, acho que ainda sou o melhor de mim no meio de tanta gente que, certamente, já me deve olhar ou começar a ver como descartável.

Hoje, segunda-feira, dia 28 de Julho, por volta das 17h00,  o correio da redacção tem três e-mails de leitores a pedirem ajuda para denunciarmos roubos e má administração de alguns responsáveis por gabinetes de trabalho de autarquias, nomeadamente com assuntos ligados às obras e más condições de habitabilidade. É raro o dia que os leitores de O MIRANTE não contribuem para a agenda dos jornalistas, o que para nós é uma honra, um sinal de que embora não tenhamos sempre razão, temos um trabalho que nos obriga a nunca baixarmos os braços. Há outras mensagens no correio de hoje menos importantes, aparentemente, de leitores a protestarem por não terem recebido a edição impressa na sexta-feira, ameaçando desistir da assinatura. Há dias em que o telefone toca várias vezes só para explicarmos que a culpa é dos CTT que recebem os valores das facturas, a tempo e horas, todos os meses, e que não retribuem prestando o serviço com a qualidade que deviam. Nem por isso deixamos de dialogar com a administração dos CTT, também porque devemos ser dos maiores clientes do país. Curiosamente, são muito mais as reclamações da área do Vale do Tejo, a área com mais população, do que da Lezíria e Médio Tejo, mas ninguém tem explicações para dar, e nós limitamo-nos a confiar na lei do mercado; e a pedir encarecidamente a compreensão dos assinantes, já que as nossas notícias e reportagens são únicas e o jornal tem, no mínimo, uma vida que, em muitos casos, dura muito para além dos sete dias da semana.


As crianças são as primeiras vítimas

O que se passa no mundo, na Ucrânia e na Palestina, e em muitos países africanos de que nunca ouvimos falar, e que parece que não existem, é o maior absurdo dos dias que vivemos. Matar crianças à fome é a arma mais poderosa usada pelos ditadores políticos. Sem querer desviar as atenções das imagens que chegam de Gaza, com as crianças a morrerem à fome devido à guerra, remeto para um filme com o título de A Chorona, que pode ser visto na plataforma Filmin, um drama político que tem como pano de fundo o genocídio da população indígena maia, em 1982, sob o comando do ditador guatemalteco Efraín Ríos Montt. O director do filme, o guatemalteco Jayro Bustamante, mostra como se ataca um povo e se acaba com ele pela raiz, ou seja, antes de matar os pais matam-se primeiro os seus filhos, porque são as crianças, com a morte dos adultos, que ficam para darem testemunho. A guerra é cruel em todos os aspectos, mas fazer a guerra começando por matar primeiro as crianças, parece ser uma táctica tão antiga como a existência da humanidade. Mesmo assim os nossos políticos discursam como se fossem padres, e embora não usem armas com balas que matam, usam as palavras e os argumentos falsos que vão matando lentamente, como é o caso das crianças em Gaza. É imperdoável que os líderes dos organismos mundiais, a começar pela ONU, dirigida pelo português António Guterres, discursem nos dias de hoje a clamarem que “a fome jamais deve ser usada como arma de guerra”, quando todos os dias, e de há muitos séculos, essa é a arma principal dos facínoras. Uma vergonha que nos envergonha. JAE.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

José António Falcão: o alentejano que mora no coração do Ribatejo

José António Falcão é mais conhecido no Alentejo que os últimos ministros dos últimos governos do país. É um alentejano de gema, filho de proprietários agrícolas, mas a sua praia é a museologia, o património, a biodiversidade, a música e o trabalho de dinamizador cultural que vai conciliando com o de conservador de museus, ensaísta, professor, investigador, entre outros afazeres todos ligados ao que mais o apaixona. Mora em Santarém há muitos anos com a sua mulher Sara Fonseca, mas parece que ninguém dá por ele.


Escrever uma crónica é como varrer o chão da nossa casa. Assim como é difícil varrer o chão sem deixar algum lixo pelos cantos, ainda que seja apenas o cotão debaixo dos móveis, escrever sobre um acontecimento obriga-nos a esquecer muitas vezes aquilo que mais nos marcou, mas que não pode ser contado porque sabemos que não interessa ao leitor.

No sábado à noite fui a Coruche assistir a um recital de piano que fez parte do programa do Terras Sem Sombra que já vai na sua 21ª edição. A Igreja da Misericórdia registou uma enchente para ver e ouvir Eliane Reyes ao piano a tocar as 14 valsas de Chopin. Tive a sorte de ficar perto do palco, o que me permitiu observar tudo aquilo que num recital passa quase sempre despercebido à maioria do público presente na plateia. É exactamente disso mesmo que não vou falar porque não escrevo crítica musical nem acredito que o assunto interesse aos poucos que lêem esta coluna. Assim como não falo dos apertos de mão que recebi, dos beijos, das saudações pelo nome próprio, das conversas cruzadas antes e depois do concerto que quase fazem de mim um munícipe coruchense.

Não posso dizer que acompanho o Terras Sem Sombra como um alentejano ou um grande amigo e admirador do José António Falcão e da Sara Fonseca. Mas já assisti a sessões suficientes para confirmar que o Terras Sem Sombra é um caso à parte no panorama das iniciativas culturais com assinatura. Não só pela importância dos programas, que variam de ano para ano, como pelas parcerias que conquista a cada edição. Neste caso, na noite do concerto da Eliane Reyes, estavam como convidados o embaixador da Bélgica e um delegado geral de Bruxelas, que patrocinam o festival e suportaram o pesado (imagino) cachet da premiada e prestigiada pianista belga.   

José António Falcão é um alentejano dos quatro costados, mas curiosamente vive em Santarém há muitos anos. É herdeiro de uma grande casa agrícola no Alentejo, mas a sua vida é dedicada às coisas da cultura, desde a valorização do património à divulgação de tudo o que mexe com a nossa identidade cultural, sem excepções. O facto de viver no coração do Ribatejo e trabalhar na divulgação e valorização do seu Alentejo, levando a cultura aos lugares mais isolados do território, faz dele uma figura intelectual de excepção. Há menos de um mês estava a almoçar no café Central, em Santarém, com a proprietária da maior e mais prestigiada ganadaria do Alentejo, a prepararem mais um fim-de-semana do programa do Terras Sem Sombra deste ano.

Falta contar que José António Falcão foi  conservador da Casa dos Patudos entre 1993 e 1997, e responsável pelo Museu Municipal em Alpiarça, entre 2003 e 2008. O resto é uma vasta lista de prémios, de condecorações, de uma vasta bibliografia, de muito trabalho no terreno, na área académica, investigação, assim como na área da museologia, que é onde se destaca mais o seu trabalho e a sua participação na vida cultural do país. Ainda hoje guardo o catálogo da exposição de arte sacra que organizou no Panteão Nacional que foi uma das mais visitadas de sempre naquele monumento nacional.

Curiosamente, uma das últimas vezes que conversamos em Santarém, não foi sobre o Terras Sem Sombra, nem sobre a sua múltipla actividade cultural e profissional no país e no estrangeiro. Em 2020 o alarme de incêndio do edifício da empresa Águas de Santarém esteve avariado cerca de um ano e disparava a meio da noite deixando os moradores num desespero sem conseguir dormir. Só quando O MIRANTE escreveu sobre o assunto é que acabou o martírio. Um dos moradores é José António Falcão, o escalabitano adoptado que, aparentemente, poucos conhecem e sabem que é uma personalidade intelectual com um vastíssimo e rico currículo que qualquer associação da cidade bem podia aproveitar se os seus dirigentes soubessem onde ele mora e lhes batessem à porta. JAE.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Colete Encarnado em Vila Franca de Xira e as memórias das festas que ficam para a vida

A festa do Colete Encarnado não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica, falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

A festa do Colete Encarnado junta uma multidão em Vila Franca de Xira durante 3 dias. Não há outra festa ligada aos toiros que junte tanta gente, sendo certo que a grande  maioria não vai às corridas nem às largadas e, certamente, uma parte também não aprecia as tradições tauromáquicas nem as aplaude. 

O Colete Encarnado tem uma tal dimensão ao nível da festa popular que os toiros e as touradas ficam para segundo plano. O forte da festa é a presença de milhares de pessoas, os encontros entre grupos de amigos, e, especialmente, a forma como o concelho mostra a sua actividade associativa. A festa nas ruas não se recomenda a quem não gosta de grandes ajuntamentos, e muito menos a quem gosta de ir jantar ou lanchar com os amigos ouvindo música clássica e falando dos problemas da quadruplicação da linha do comboio, do futuro aeroporto em Alverca, do barulho e da poluição dos aviões, dos problemas no hospital, dos aterros ou do crescimento da habitação em altura, entre outros assuntos que afectam especialmente o concelho de Vila Franca de Xira, um dos mais diferenciadores da Área Metropolitana de Lisboa.

Conheço mais de ouvir contar do que vivenciar as festas do Colete Encarnado.  O mesmo com a Feira de Maio, na Azambuja, ou Alenquer, as festas de Mação que também decorrem nesta altura, as de Abrantes que acabaram recentemente, e muitas outras que são notícia em O MIRANTE, e vão continuar a ser, se a redacção do jornal perceber que falar das festas locais é mais do que publicar o programa.  

Nos meus tempos de juventude sempre fui mais de bailaricos e largadas do que de petiscos e copos, embora me lembre de muitas ressacas, também quando era jovem, que me faziam corar de vergonha nos sete dias da semana seguinte. E, uma vez, uma única vez, por obrigação, peguei de caras à saída dos curros as quatro vacas de uma picaria nas festas de Vale de Cavalos, por razões que não é altura para explicar. Mas faço notar que ainda hoje guardo memórias dolorosas de algumas ressacas, e não me lembro de uma única razão para beber quase até cair para o lado.

Voltando ao Colete Encarnado: quando as galinhas tinham dentes, ia a Vila Franca de Xira todos os anos para ter que contar. Ainda hoje provo da mesma sopa. Aonde vou estou sempre a trabalhar. Foram nesses anos dourados, em que ainda tinha mau vinho, que mandava despejar a cerveja para o copo junto ao balcão para depois me juntar aos amigos e ninguém perceber que estava a beber cerveja sem álcool. Mesmo assim, com toda essa escola da vida que me obrigou bem cedo a ganhar juízo, ainda apanhei uns sustos nas varolas, a mota resvalou algumas vezes nas curvas, e cheguei a enfiar o barrete até quase tapar os olhos, mesmo tendo uma curta vida de forcado e nunca tenha vestido o traje de campino. JAE.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Beber água da torneira sem pagar e viver duas vidas sem protestar

Na minha aldeia há muita gente da terra e dos concelhos vizinhos que vão encher garrafões de água na fonte do Pinhão, uma herança da família Lopes da Costa que mantém a propriedade e uma coudelaria bem conhecida. Quando passo por lá também vou à bica beber água para matar a sede do momento, mas jamais acredito em águas milagrosas que não sejam as da chuva. Mas também tenho as minhas manias. Sempre que estou na terra vou à fonte pública dos Carrapiteiros beber água directamente da torneira do fontanário e encher a garrafa que sempre me acompanha no carro. Foi hoje o caso. Fui lá de propósito. A maioria das vezes calha no caminho para a beira do Tejo, onde tenho um bocado de terra e a esperança de um dia ser enterrado ao lado da campa de um cão, a quem eu próprio fiz o funeral há muitos anos. E agora também de uma linda raposa que recentemente foi morrer debaixo da laranjeira onde já dormi e quero continuar a dormir umas sestas.

No dia em que escrevo, varro o chão pela última vez de uma casa que aluguei e depois comprei há meio século, onde aprendi sozinho a trabalhar no ofício e a ganhar dinheiro.

Os últimos meses foram incríveis. Tudo o que foi ficando de uma vida de meio século, entre milhares de coisas e coisinhas, minhas e dos meus, deitei para o lixo, guardei e vendi a exemplo do que aconteceu também com o edifício.

Tive todo o tempo do mundo para sentir o peso de cada peça, de cada móvel, de cada quadro, de cada objecto que enchia os cantos à casa, os fundos às gavetas, enfim, de cada coisa que dantes era parte da minha vida e de um dia para outro passou à situação de dispensável. 

Não senti um pingo de sentimento por ser eu próprio a apanhar os cacos da loiça até ao último bocadinho. Nem quero saber se os gajos que me detestam, e juram vingança (não sei de quê nem porquê) estão por trás da facada que me deram, que por não me ter morto deixou-me mais forte. 

Ao fundo da rua onde escrevo, ainda estão de pé as paredes de uma antiga taberna e cervejaria que foi onde me fiz homem dos 11 aos 22 anos a trabalhar de borla para o meu pai.

Carreguei muitos milhares de quartões de vinho (e alguns de água)  para as quatro cartolas de quinhentos livros de onde saía o vinho a copo para o balcão.

Registo estas memórias enquanto espero pelo Filipe Barreiras que foi almoçar com o seu pessoal para depois darmos continuidade à limpeza, no dia de fecho desta edição, com o Bernardo e a Joana ao leme, e viagem marcada para os cus de judas, o lugar onde também mergulham nas nuvens outros gajos como eu que já fizeram o seu caminho e, agora, só precisam de não faltarem às consultas e não esquecerem de tomar a medicação. 

Nota: Dedico esta crónica à minha avó Ilda que é uma das mulheres da minha vida e a única a ter a iniciativa de meter cinco contos no meu bolso quando soube que eu tinha resolvido tomar de trespasse a ourivesaria do senhor Silva. A minha família nunca foi grande, mas ter uma avó como ela fez de mim o menino da família mais rica da minha aldeia. Ainda hoje. JAE