Na minha aldeia há muita gente da terra e dos concelhos vizinhos que vão encher garrafões de água na fonte do Pinhão, uma herança da família Lopes da Costa que mantém a propriedade e uma coudelaria bem conhecida. Quando passo por lá também vou à bica beber água para matar a sede do momento, mas jamais acredito em águas milagrosas que não sejam as da chuva. Mas também tenho as minhas manias. Sempre que estou na terra vou à fonte pública dos Carrapiteiros beber água directamente da torneira do fontanário e encher a garrafa que sempre me acompanha no carro. Foi hoje o caso. Fui lá de propósito. A maioria das vezes calha no caminho para a beira do Tejo, onde tenho um bocado de terra e a esperança de um dia ser enterrado ao lado da campa de um cão, a quem eu próprio fiz o funeral há muitos anos. E agora também de uma linda raposa que recentemente foi morrer debaixo da laranjeira onde já dormi e quero continuar a dormir umas sestas.
No dia em que escrevo, varro o chão pela última vez de uma casa que aluguei e depois comprei há meio século, onde aprendi sozinho a trabalhar no ofício e a ganhar dinheiro.
Os últimos meses foram incríveis. Tudo o que foi ficando de uma vida de meio século, entre milhares de coisas e coisinhas, minhas e dos meus, deitei para o lixo, guardei e vendi a exemplo do que aconteceu também com o edifício.
Tive todo o tempo do mundo para sentir o peso de cada peça, de cada móvel, de cada quadro, de cada objecto que enchia os cantos à casa, os fundos às gavetas, enfim, de cada coisa que dantes era parte da minha vida e de um dia para outro passou à situação de dispensável.
Não senti um pingo de sentimento por ser eu próprio a apanhar os cacos da loiça até ao último bocadinho. Nem quero saber se os gajos que me detestam, e juram vingança (não sei de quê nem porquê) estão por trás da facada que me deram, que por não me ter morto deixou-me mais forte.
Ao fundo da rua onde escrevo, ainda estão de pé as paredes de uma antiga taberna e cervejaria que foi onde me fiz homem dos 11 aos 22 anos a trabalhar de borla para o meu pai.
Carreguei muitos milhares de quartões de vinho (e alguns de água) para as quatro cartolas de quinhentos livros de onde saía o vinho a copo para o balcão.
Registo estas memórias enquanto espero pelo Filipe Barreiras que foi almoçar com o seu pessoal para depois darmos continuidade à limpeza, no dia de fecho desta edição, com o Bernardo e a Joana ao leme, e viagem marcada para os cus de judas, o lugar onde também mergulham nas nuvens outros gajos como eu que já fizeram o seu caminho e, agora, só precisam de não faltarem às consultas e não esquecerem de tomar a medicação.
Nota: Dedico esta crónica à minha avó Ilda que é uma das mulheres da minha vida e a única a ter a iniciativa de meter cinco contos no meu bolso quando soube que eu tinha resolvido tomar de trespasse a ourivesaria do senhor Silva. A minha família nunca foi grande, mas ter uma avó como ela fez de mim o menino da família mais rica da minha aldeia. Ainda hoje. JAE