quarta-feira, 21 de maio de 2008

Os pobres e os explorados


     Passei dois dias pelo serviço militar. Já lá vão mais de trinta anos. Ficou uma história para contar que me acompanha sempre que tenho que conviver com gente diferente (diferente no sentido em que se acham impunes à mentira e a comportamentos de espertalhões).
     No dia da chegada a Tancos ficámos na parada, mais ou menos em sentido, cerca de duas horas, acompanhados por um oficial. Um tipo de quem já esqueci as feições, mas de que guardo memória por ter pronúncia de alentejano e um corpo que parecia um chaparro, queixou-se até à exaustão do calor e das dores nas pernas. Em duas horas protestou mais de metade do tempo contra “o sistema” que o obrigava a estar ali “feito parvo”. E disse asneiras, contou anedotas, fez gato-sapato do oficial que, com a maior paciência do mundo, o ia avisando que devia saber comportar-se. Todos sorriam com os disparates. Mas percebia-se que eram sorrisos nervosos. À noite, depois de recolhermos à caserna, a maioria da rapaziada não dormiu porque “o chaparro” passou o tempo todo a chorar e a chamar pela sua querida mãezinha. Assim, contado, parece mentira. Mas a verdade é que o tipo chorava e gritava pela mãe como um miúdo de oito anos. E aquilo durou toda a noite. Toda a santa noite. Não posso contar muito mais sobre esta personagem porque já não dormi na caserna na noite seguinte. Fiquei livre da tropa depois de uma junta médica.
     Deixo aqui esta história para ilustrar o quanto precisamos de viver para aprender a lidar com certas pessoas que de dia usam uma carapaça e, à noite, ficam só pele de galinha; certas pessoas que parecem grandes figuras da Humanidade e, lá no fundo, não passam de uns cínicos e arrogantes animais de carne e osso.
     Acabei de ler um livrinho que reúne conversas com Ryszard Kapuscinski, um conhecido jornalista polaco, que morreu o ano passado, e que passou toda a sua vida a trabalhar como jornalista dando voz aos pobres e explorados (uma boa parte em África). Deixo aqui, para deleite de quem sonha ser jornalista, o que ele considerava serem as qualidades necessárias para alguém desempenhar a profissão e levar a bom termo as suas tarefas: “deve ser testemunha de todos os princi pais acontecimentos numa extensão de 30 milhões de quilómetros quadrados (a superfície de África), saber o que sucede em simultâ neo nos 50 estados do continente, o que ocorreu no passado e o que pode acontecer no futuro, conhecer pelo menos metade das duas mil tribos em que se divide a população africana, recordar centenas de pormenores práticos... É necessário também uma boa resistência psi­cológica e uma saúde de ferro. De que serve ao correspondente pen sar, se depois é vítima de uma depressão devastadora e não escreve uma palavra sequer enquanto estão a acontecer factos de máxima importância?... Não pode ser correspondente quem tem medo das moscas tsé-tsé, das cobras negras, dos elefantes, dos canibais, de se envenenar com a água dos rios e dos riachos, de comer uma torta de formigas assadas, quem treme só de pensar nas amebas, nas doenças venéreas, em ser roubado e espancado, quem põe de parte dólares para construir uma casinha na pátria, quem não sabe dormir numa cabana africana e quem despreza as pessoas sobre quem escreve".

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