segunda-feira, 28 de junho de 2010

O homem que teve que voltar à sua terra para acabar de nascer

À Isabel, sempre.
A João Domingos Serra e João Basuga, e também a Mariana Amália Basuga, Elvira Basuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, Maria Saraiva, António Vinagre, Bernardino Barbas Pires, Ernesto Pinto Ângelo - sem eles não teria sido escrito este livro.
À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados. 
Esta dedicatória é das primeiras edições do livro “Levantado do Chão” e desapareceu dos livros de Saramago nas edições mais recentes. Pelo que ela representa na vida de um livro, e não de um escritor, resolvi partilhá-la. Li “Levantado do Chão” com entusiasmo mas já numa quarta edição . Daí para cá só me maravilhei de verdade com os “Cadernos de Lazarote”, onde o autor se expõe de forma nua e crua com todas as suas virtudes e defeitos. É por lá que Saramago diz ter começado a “Contar uma vida pelos dedos e encontrar uma mão cheia”. Para quem procura a alma de um escritor recomendo as leituras deste diário, publicado em vários volumes. E não esquecer “As Pequenas Memórias” onde o escritor imortaliza a Azinhaga, sua terra natal. 
Resolvi partilhar esta dedicatória para dar conta do tamanho que pode ter a vida de um homem. Maria João Avilez escreveu um dia sobre Mário Soares a propósito do apagamento da vida pública de muita gente que resolveu fazer-lhe frente: os grandes homens, para o serem, têm que esmagar pelo caminho muitos homens pequenos( cito de cor). Saramago não esmagou os companheiros de viagem dos seus primeiros livros mas remeteu-os para as edições antigas. Até parece injusto mas provavelmente não é. “Levantado do Chão” continua a ser um grande livro com uma história que tão depressa não se apagará da nossa literatura. Saramago começou a viver outra vida quando um dia precisou de se separar do seu passado mais antigo.
O poder da palavra é um poder maior que o poder do ouro, do dólar ou do euro. Muito maior que o poder conferido por quem exerce cargos políticos. Saramago foi jornalista toda a vida e sabia que o poder da palavra move montanhas. Por isso criava polémica nos seus discursos e nas suas opiniões políticas e religiosas. Até na hora da morte conseguiu tirar o sono a Cavaco Silva que está presidente da República Portuguesa. Se na hora da morte também houver lugar para sorrisos, Saramago estará de boca rasgada a rir-se da figura que obrigou a fazer o representante máximo do seu país.
Não fui, e ainda não sou, um grande leitor da obra de Saramago. Gosto da sua poesia e li “Os poemas Possíveis” várias vezes de fio a pavio. Saramago publicou “Os poemas possíveis” em 1966 e a edição que eu guardo é de 1982 quando a Caminho reeditou os poemas com uma nota do autor que, já nessa altura, reconhecia que era o romancista da altura “a raspar com unha seca e irónica o poeta de ontem”. Mas era dos seus poemas que eu sempre falava a quem me interrogava por esse mundo fora sobre a sua vida e obra. E ser vizinho do pé da porta de Saramago sempre foi pretexto para falar da Azinhaga e da aldeia que se vê da minha terra quando subimos ao Senhor do Bonfim ou à Senhora do Pranto. Porque um homem, por mais voltas que dê ao mundo, carrega sempre consigo o lugar e a condição em que nasceu. 
“Quem não nos deu amor não nos deu nada”. Citação de Saramago, de um poema de João Rui de Sousa, publicada nos Cadernos e datada de 16 de Junho de 1992. O homem podia ter mau feitio como realmente diziam e vão continuar a dizer e escrever. Mas era um camarada fiel e um homem honrado. E de todos os seus livros e milhões de palavras escritas nos seus romances atrevo-me a citar uma frase roubada ao “O Ano da Morte de Ricardo Reis: “um homem, se quer uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la”.
Nas margens do Almonda e do Tejo, onde Saramago em criança se defendia do calor do sol abrigando-se nas marachas, nas terras da Azinhaga onde o escritor teve que voltar um dia “para acabar de nascer”, deviam ser sepultadas as suas cinzas.

2 comentários:

  1. Discordo das suas palavras. Saramago esqueceu-se de quem o ajudou. Apenas em 2009 revelou que levantado do chão teve origem num diario de familia, agora transcrito para livro "uma familia no alentejo"
    Vera Serra

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  2. H[a 25 anos acompanho as edicoes brasileiras de LEVANTADO DO CHAO. Em todas elas, eles sao lembrados. Inclusive na ultima. Tenho 3 edicoes aqui. Acabei de certificar-me disso. Eula Pinheiro

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