quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Crónica de uma inauguração

Nesta crónica ignoram-se os discursos, as felicitações, os homenageados, os artistas, os políticos e muitos dos ilustres convidados que se não tivessem comparecido teriam inviabilizado a inauguração.
 No momento em que começou a cerimónia de inauguração da Fábrica das Palavras em VFX o Jardim Constantino Palha, a dois passos da cerimónia, era o lugar perfeito para estar em paz com a vida; meia dúzia de crianças e uma dúzia de adultos ocupavam um dos jardins à beira Tejo mais feliz e bem cuidado.
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A meio do passeio começamos a ouvir ao longe a banda do Ateneu Artístico Vilafranquense, sinal que a cerimónia tinha começado a horas(16h). Quando chegamos havia um mar de gente em frente do edifício da nova biblioteca municipal que se ergue imponente à beira Tejo. A banda tocava de frente para um conjunto de personalidade alinhadas a poucos metros e aparentemente em fila por ordem de importância institucional. Na frente os líderes locais no Poder e os convidados mais importantes. Logo atrás os vereadores da oposição e alguns líderes de instituições locais e regionais. 
Depois de uma volta ao “bilhar grande” infiltramo-nos no meio dos convidados de honra para quem a banda tocava. Perguntamos ao vereador João de Carvalho se não se sentia despromovido em segunda fila na inauguração de uma casa que ele próprio tinha viabilizado com o seu voto. Sorriu e ao ouvido confessou que não estava ali para ter protagonismo. “Tenho outras formas de ser protagonista”, desabafou. 
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Rui Rei, ali por perto, foi mais político na resposta a uma provocação do género; “deixei a política activa; estou num projecto de trabalho muito importante para a minha vida. Mas um dia é certo que o PSD vai substituir o PS no Poder em Vila Franca de Xira”, disse o vereador que já teve pelouros a tempo inteiro e que nos últimos anos sonhou ser presidente da Câmara de VFX mas acabou por ver presidente o homem que mais o enervou enquanto foi vereador com pelouros.
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Alberto Mesquita esteve 10 minutos a saudar as entidades presentes e convidados especiais. Depois falou mais 10 minutos. Quando agradecia o trabalho da sua antecessora, Maria da Luz Rosinha, o comboio passou, fez um barulho ensurdecedor como é normal, e as palmas substituíram as palavras elogiosas do presidente que ficaram suspensas na garganta. “Há muita tarimba e muito barulho de comboios nesta gente das inaugurações”, desabafou alguém atrás de mim que parecia ser um homem bem informado.
Assim que o barulho do comboio seguiu até Lisboa voltaram as palavras elogiosas de Alberto Mesquita para a Mulher que já tem lugar na história de Vila Franca de Xira por ter mudado o rosto da cidade depois de uma gestão comunista de muitos anos que, dizem, pouco feliz. Alguns apelidam de “desgraçada”.
Rosinha, de rosa vermelha ao peito, como é habitual, fazia a diferença entre as personalidades alinhadas a ouvirem a banda. Alberto Mesquita falou a ler do papel mas mesmo assim ainda teve tempo para furar o protocolo quando dirigia palavras de agradecimento ao arquitecto Miguel Arruda e tentou encontrá-lo com os olhos entre os convidados. Como não o viu parou o seu discurso até o próprio anunciar a sua presença de braço no ar chegando-se à frente. Um momento que ajudou a desanuviar das palavras de circunstância que sempre se dizem nestas cerimónias. Aliás, a maior prova de que quem escreve os discursos nem sempre está atento à realidade foi a saudação especial ao “professor doutor Arquimedes da Silva Santos”, títulos que teriam sido muito bem substituídos pelo de escritor, de preferência adiantando também alguns dos títulos dos seus livros que, tenho a certeza, 99 por cento das pessoas presentes nunca ouviu falar ou, se ouviram, já não se lembram.
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Para confirmar que ninguém é perfeito António Mega Ferreira falou a seguir a Alberto Mesquita e deu uma “seca” a quem o ouviu lendo um ensaio sobre a Obra e a Vida de Álvaro Guerra e o seu importante papel como cidadão e intelectual. Mega Ferreira só pode ter ido desencantar a uma das suas gavetas o texto que leu sobre Álvaro Guerra que, apesar do seu valor, não merecia ser diferenciado de outros escritores importantes de VFX como Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes.
Cá bem atrás, enquanto Mega Ferreira repetia a grande admiração pela Obra de Álvaro Guerra, a nossa companhia eram dois elementos da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo. Perguntei-lhes se tinham sido convidados e disseram que não. Com eles a militância fala mais alto que os convites. Enquanto Mega Ferreira falava da trilogia de Álvaro Guerra, e do seu estatuto como embaixador e ribatejano, os meus interlocutores recuavam cerca de quinze minutos no tempo e lembravam que o orador tinha prometido falar pouco e, entretanto, já tinha falado mais tempo que o presidente da câmara.
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António, o cartoonista do jornal Expresso, estava longe da confusão e dos discursos numa conversa a quatro, sempre com aquele seu ar misterioso de “escritor de desenhos”. À pergunta, “então como é que vai a crise”, respondeu que “os grupos e os grupinhos tomaram conta da sociedade portuguesa. Quem não pertencer à Maçonaria e companhia não se safa”, desabafou.
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Ao nosso lado uma das mulheres mais famosas da freguesia, Ana Câncio, espreitava a cerimónia com aquela cara de reformada aos 40 anos e um exemplo de que a política nem sempre é para os melhores e para os que são exemplo na vida pública.
No final do discurso mais chato da últimas inaugurações, (Álvaro Guerra que nos desculpe lá no Olimpo) o pessoal afunilou junto a todas as portas de emergência da Fábrica das Palavras que estavam abertas excepcionalmente. Curiosamente a porta rotativa era a mais utilizada com a complicação que se imagina numa situação de excesso de carga.
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O barco varino estava estacionado a vinte e cinco metros da margem e dava um ar de festa à água do rio que espelhava o sol radioso do fim da tarde.
Uma pequena multidão sentava-se no muro em frente da Fábrica das Palavras de costas para o rio. O sol ainda ia alto e podiam ver-se ao longe centenas de gaivotas rente às águas.
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Dez minutos depois da entrada da multidão na Fábrica das Palavras já havia fila na casa-de-banho das senhoras. A dos homens estava normal. Mega Ferreira foi pela mão do arquitecto seu amigo pregar uma mijadela depois de fumar um cigarro logo a seguir à cerimónia. O arquitecto ia recebendo algumas palmadas nas costas e perguntando sorridente às pessoas que o saudavam se tinham recebido o convite.
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No primeiro piso o bar tinha duas filas ao longo do balcão. O café custava 0,70€ “e o resto é por aí acima”, informou-me um velho conhecido com a barriga encostada a uma mesa mas sem bebida por perto. Pensei alto: já lá vai o tempo das bebidas grátis no final das inaugurações. Às vezes as dificuldades ajudam a moralizar os costumes em família. As famílias políticas e as outras, acima de tudo.
O vereador João de Carvalho era um dos que estava com a barriga encostada ao balcão sempre rodeado de amigos. O José Fidalgo, ex-presidente da junta de freguesia, era o mais cumprimentado. Não havia quem não passasse a seu lado que não lhe estendesse a mão. Pelo calor das suas palavras e pelo impulso com que saíam da boca era fácil perceber quem eram os que o cumprimentavam por serem amigos e os que o saudavam por ele ainda ser, na cabeça de alguns, o presidente da junta.
Durante o tempo em que estive junto ao bar, sem beber, fui fotografado duas vezes para o facebook. Quem me fotografou junto das minhas companhias não me conhece, logo não me procurem na internet porque não estarei identificado nas fotos ao lado dos meus ilustres interlocutores.
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“Nesta terra quem não reclama não é atendido”, diz um professor da Escola Reynaldo dos Santos numa conversa, para mim sem sentido, dirigindo-se a José Fidalgo. Mário Nuno, o adjunto do presidente Alberto Mesquita, passa por perto e aproveita para mandar uma bicada. “Estão a começar uma tertúlia”, disse, sorridente, e desandou.
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Dei três passos para o lado do Tejo ainda no primeiro andar e ouvi as primeiras criticas à falta de comparência de algumas identidades na inauguração da Fábrica das Palavras: O Turismo de Lisboa e o Governo da Nação não se fizeram representar. Gente da má-língua ainda tentou atribuir as culpas todas às divisões internas no PS de António José Seguro e António Costa mas é evidente que o momento era de dar largas ao veneno que cada um tem de sobra debaixo da língua quando a conversa mete política.
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Mário Coelho estava sentado numa mesa a autografar a sua autobiografia. O homem com cara de toureiro, de lenço ao pescoço, trazia o livro do matador vilafranquense debaixo do braço e arrancou-lhe ali mesmo um autógrafo que já não fui a tempo de registar para a posteridade porque o meu telemóvel às vezes é mais teimoso que os vereadores da CDU no exectivo da Câmara de Vila Franca de Xira. A propósito: disseram-me que os vereadores estavam na festa mas confesso que não os vi.
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A subida ao terceiro piso da Fábrica das Palavras é um deslumbre. Ali se percebe que esta é obra do regime. Maria da Luz Rosinha e Alberto Mesquita já têm um lugar na pequena eternidade reservada aos homens que chegam ao Céu, com recomendações especiais enviadas do planeta Terra. A vista sobre o rio Tejo, e a ponte e o casario junto às margens, é soberba. Quem tem um rio ao pé da porta não sabe a riqueza que Deus lhe deu. Sempre que vou a Vila Franca de Xira e percebo a ligação da cidade com o rio lembro-me dos políticos que governaram nos últimos quarenta anos a cidade de Santarém e pergunto-me se todos eles não tiveram problemas com a água, em pequenos, quando as mães lhes davam banho.
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Encontrei a comitiva oficial no terceiro piso e o vice-presidente dizia alto que tinha perdido de vista alguém, logo ele que era o mais alto da comitiva.
Neste piso a vista sobre a cidade é quase total. De um lado o rio Tejo e do outro o casario da cidade que, vista dali, tem outro encanto. Do lado do rio fomos encontrar um proprietário a contar e mostrar a um amigo o problema com uma habitação cujo telhado ruiu este ano. Assim como a história deste proprietário não tem lugar neste texto, também o presidente da câmara achou que não tinha que dar para aquelo peditório e passou por nós, que estávamos com os olhos na paisagem, como se passa por vinha vindimada. Cumprimentou quem lhe apeteceu e lá seguiu a sua visita ao edifício liderando a comitiva. 
Nesta altura fui cumprimentado com um forte aperto de mão pelo vice-presidente do município, Fernando Paulo Ferreira, que me deu um sorriso de orelha a orelha e um “bem-vindo” como se eu tivesse acabado de chegar de Marte. Já estive dezenas de vezes ao lado do senhor e passei por ele muitas vezes nas ruas de Vila Franca de Xira e foi a primeira vez que recebi um cumprimento efusivo. Vá lá saber-se se não foi do efeito da gravidade uma vez que estávamos no terceiro andar e em cima de uma placa suspensa que só pode causar vertigens a quem tem medo de alturas.
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O piso onde vai ficar a administração e os funcionários da Biblioteca é o mais espectacular. Quero trabalhar aqui, apeteceu-se dizer em voz alta a uma senhora que se pendurava na paisagem ainda mais encantada do que eu com a luz e a majestade do lugar.
O corrimão que acompanha a escadaria do edifício da biblioteca mereceu a maior critica que ouvimos em toda a visita. “Os corrimãos são redondos; este gera desconforto e insegurança. Os arquitectos são assim”, desabafou um dos convidados atrás de mim que passou a conversa para outro que ia à frente e que corroborou por inteiro o que o seu conterrâneo acabava de dizer.
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Às 17h40 estava de novo de volta ao piso onde fica a biblioteca para as crianças. Até ali só tinha visto homens aos abraços e às palmadas nas costas. Finalmente encontrei senhoras a cumprimentarem-se com beijinhos. Uma delas era a ex-presidente da câmara que me perguntou ao seu estilo “então o que é que acha?”. Respondi-lhe o óbvio e não perdeu tempo a repetir-me que foram dez anos de muita luta e que há uma pessoa chamada Luís Matas de Sousa, o urbanista, que bem merece ser referenciado publicamente pois foi um dos poucos que nos acompanhou e se dedicou a este processo desde o início sem virar a cara à luta. Rosinha deu-me o recado ao ver-me tomar apontamentos mas não conseguiu continuar a conversa pois daí a segundos já estava a dar mais beijinhos e abraços a quem a procurava.
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Desci ao rés-do-chão e cumprimentei o diretor da Escola Secundária Alves Redol,Teodoro Roque, e não só pusemos a conversa em dia como terá nascido ali uma ideia que pode dar frutos no futuro e representa uma boa colaboração de O MIRANTE com as escolas secundárias da região.
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Eram 18h00 quando voltei a entrar no Jardim Constantino Palha. A meio do jardim já se notava o frio da tarde. Havia ainda menos pessoas nos bancos e no café à beira rio. Os barcos parados ainda falavam com a água do rio Tejo a mesma linguagem que eu tinha percebido no caminho para a Fábrica das Palavras mas eu já nem dava por isso nem me interessava. Muito menos achei graça aos patos que andavam por ali feitos vaidosos sem terem que assistir a inaugurações e trabalhar ao fim-de-semana. JAE

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