quinta-feira, 26 de setembro de 2024

A política, a literatura e um elogio a João Céu e Silva

Nada melhor para falar de política que meter a literatura pelo meio. 

Portugal tem tantos institutos públicos como tem impostos no activo para as empresas e os empresários. Dizem as associações que são mais de quatro mil. Quando li a notícia não quis acreditar, mas é verdade, e mesmo que não tenha ido procurar como é possível um Estado ter quatro mil impostos activos não deixei de pensar no assunto.

Por causa de uma frase de José Saramago, cuja obra também vive comigo todos os dias, consegui desenvolver alergia aos políticos de meia tigela que vivem à sombra dos cargos dos institutos públicos, saltando de um para outro ao longo dos anos como as raposas saltam de galinheiro em galinheiro. “O heróico num ser humano é não pertencer a um rebanho”.

Estou a escrever com a “História do Cerco de Lisboa” na mala para amanhã viajar bem acompanhado. Dizem que é um dos seus melhores livros, mas também já diziam isso de “Todos os Nomes” e não é definitivamente melhor do que “Manual de Pintura e Caligrafia”, provavelmente um dos menos lidos e talvez um dos melhores e mais biográficos, embora bem anterior a tudo o que Saramago escreveu já como escritor famoso.

Enquanto escrevo esta crónica leio a notícia de que João Céu e Silva vai republicar a biografia de António Lobo Antunes com uma grande diferença; há uma introdução que anuncia que o escritor está vivo, mas demente. Há dias falei dele aqui a propósito de Vale Abraão, de Agustina, e não disse que ele quase destrata José Saramago no prefácio do livro, embora não seja novidade que a rivalidade pode cegar. Já a prosa, quando é boa literatura, como é o caso de Agustina, a autora de a Sibila, “com quem se aprende como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial, escreve Lobo Antunes”.

João Céu e Silva, também biógrafo de José Saramago, é um jornalista do DN natural de Alpiarça, o mais destacado jornalista da actualidade a dedicar-se à literatura. João Céu e Silva tem uma vasta obra publicada, alguns livros premiados, e, ao nível das biografias, é um verdadeiro recordista com livros publicados sobre Álvaro Cunhal, Pulido Valente, Maria Filomena Mónica, Manuel Alegre e Miguel Torga, para além dos já citados Saramago e Lobo Antunes.

Nada melhor para falar de política que meter a literatura pelo meio. O que eu queria mesmo escrever esta semana era sobre os milhares de institutos públicos que servem às mil maravilhas para dar emprego à rapaziada dos partidos políticos que não gostam de dobrar a mola e só sobrevivem por serem parte do rebanho. Tenho razões para me queixar de alguns fantoches que ocuparam lugares em organismos de Estado de grande relevância, e sei que alguns nos fecharam a porta para agradarem a camaradas que se foram queixar de trabalho editorial que não lhe agradava. Não tenho mordaça e podia escrever os nomes deles, mas a decência ainda é uma virtude e, neste caso, aplica-se o ditado: nomeá-los é dar-lhes importância.

Enquanto escrevo deito o olho à mala de viagem e tento perceber do que é que me vou esquecer desta vez.

Quem não viaja não tem ilusões. JAE.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O mau exemplo da ESTA de Abrantes

A crise na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes vem de longe e tem uma história que mete política, professores e dirigentes que enfiaram a cabeça na areia para não verem a realidade.


A equipa de O MIRANTE orgulha-se de ser parceira no desenvolvimento da região dando visibilidade às suas instituições e aos seus líderes mas também àqueles que são apenas cidadãos empenhados nas suas tarefas diárias profissionais e familiares. 

Nem sempre fomos e somos bem sucedidos. A crise instalada na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA) é um exemplo que merece ser estudado. O MIRANTE fez tudo o que era possível para ser parceiro da única escola de ensino superior de comunicação da sua área de influência. Fomos lá comemorar os nossos 17 anos, em 2004, levando connosco para uma conferência Francisco Pinto Balsemão que era, é ainda é, a maior figura viva da imprensa portuguesa. Assinamos, inclusive, um protocolo de colaboração que nunca saiu do papel apesar das aparentes boas vontades e entendimentos do que são as parcerias para o êxito de alguns projectos. E assim se mantém até hoje, apesar da boa relação institucional que sempre tivemos com o Politécnico de Tomar e as suas direcções. Soubemos mais tarde, muito mais tarde, que houve interferência política do presidente da câmara da altura que terá ameaçado: "ou eles ou nós".  Nunca apurámos os factos, e até hoje não conseguimos perceber como é que uma Escola Superior com um curso de comunicação consegue ignorar o trabalho de uma equipa de um jornal de proximidade que é considerado por muita gente como um caso de estudo a nível nacional, embora para nós isso seja irrelevante, pois tudo o que fazemos sabe a pouco; e de verdade, por mais que trabalhemos, nunca conseguiremos chegar a todas as frentes de trabalho.

Não sou a melhor pessoa para puxar dos galões, mas já saíram da redacção de O MIRANTE para a reforma jornalistas com quase 30 anos de trabalho na região que nenhuma direcção da Escola se lembrou de convidar para uma palestra, ou apenas para dar testemunho. Em tempos acompanhei os convites que as direcções da ESTA faziam às grandes figuras da televisão, como se o curso de comunicação tivesse no jornalismo televisivo a sua grande referência. Não tem, nunca teve, e o que já foi trabalho mediano em televisão é agora uma enxovia, um lixo, quase sempre em directo e que entope todas as sargetas das nossas ruas e das nossas indignações.

Com directores e professores virados de costas para a realidade onde vivem e trabalham, não admira que a ESTA esteja a passar a sua maior crise. Já se adivinhava. O exemplo que estou a dar não tem nada de ressentimento, nem de melindre, tem sim algum sentimento de desgosto e de pena por não fazermos parte dos parceiros de uma Escola que forma pessoas, que mais tarde têm a missão de ajudar a mudar ou melhorar o mundo local, ligados a empresas em que O MIRANTE é líder destacado. Se a Escola estivesse a bombar jornalistas nem precisávamos de protocolos, muito menos de lamentar a falta de visão dos dirigentes da ESTA destes últimos vinte e muitos anos. Mas já na altura não era difícil perceber as dificuldades de organização da Escola e da falta de sensibilidade dos seus responsáveis para verem mais do que o que se avista do Castelo de Abrantes. 

Que este texto sirva pelo menos para que em Abrantes a política nunca mais se meta onde não deve, porque ninguém ganha nada em secar o que quer florescer à sua volta; como diz o ditado, "um fraco chefe faz fraca a sua gente". Esta é a grande lição que fica do tempo em que Abrantes tinha um presidente da câmara que vivia numa redoma; que politicamente foi um líder que só deixou maus exemplos; e a ESTA era governada por professores que há menor contrariedade enfiavam a cabeça na areia para não verem o que não lhes interessava e, ou, os obrigava a saírem do trono dos reis pasmados. JAE.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Para lá do Marão mandam os que lá estão

Uma viagem de verão pelo norte de Portugal, que parece outro país para quem não tem o hábito de viajar de Coimbra para cima; e uma visita à Feira do Livro do Porto para ouvir a Pilar.


Estou num sítio à beira da estrada, numa aldeia perto de Alfândega da Fé, num turismo rural com café e restaurante, e os meus companheiros de sala são todos transmontanos. Sinto-me em casa e percebo que tudo o que gira à minha volta é obra de uma jovem família que trabalha de dia e de noite. Lembro-me do café restaurante do Perneta, perto do Chouto, onde o pessoal da minha terra, nos idos anos setenta, ia encher a barriga em grupo e, algumas vezes, em família.

O arroz-doce não tinha a casca do limão, mas era como se tivesse; o cheiro a perfume na sala fez-me lembrar o cheiro das mulheres nos casamentos e nos dias de festa quando acompanhavam as filhas aos bailes da colectividade. O facto de ser sexta-feira deve explicar a sala cheia, o que obrigou alguns clientes a entrarem numa outra sala do restaurante que ficava longe da vista. 

Numa mesa perto da minha, seis homens sessentões comemoravam uma data festiva. Identifiquei-os um a um com outros homens de trabalho que conheço da minha terra e das terras vizinhas. O que falava mais tinha um bigode em forma de ferradura. Parecia um actor francês dos filmes dos anos sessenta; o cabelo meio esbranquiçado, farto, tinha o molde do boné, o pescoço com uma bossa acentuada; era o único que não bebia vinho tendo optando pela cerveja. Só falaram de trabalho. Dois deles quase que não balbuciaram palavra de tão concentrados que estavam nas postas do bacalhau. Na minha terra e nas terras vizinhas há muitos anos que se perdeu este espírito de grupo, de vizinhança, de compadrio, no bom sentido da palavra. Como não posso ficar a espreitar e a calhandrar todas as mesas vizinhas, concentro-me naquela onde tenho mais para aprender. O telemóvel onde tomei notas serviu também para disfarçar o interesse que tinha naquela conversa de transmontanos à volta de uma mesa. 

Uma menina de nove anos assegura o balcão do café por onde se entra para o restaurante. O pouco tempo que permaneci no espaço, lendo os programas das festas e os cartões de visita dos clientes/empresários espetados na parede, foi suficiente para ouvir o óbvio: “isto é exploração de mão-de-obra infantil”. A menina fingiu que não ouviu, tinha um rosto sério, percebi que conversa daquela, mesmo a gozar, é música para os seus ouvidos. Durante a hora e meia que demorei a roer uma costeleta de novilho, e deixei o tempo correr para não me deitar com as galinhas, passou uma dúzia de vezes no apoio à cozinha e ao serviço de mesas. O telemóvel no bolso de trás das calças e a forma como olhava para os clientes era de quem se sentia em casa e esperava estar a fazer o seu melhor dia de trabalho. Quem diz que “o trabalho da criança é pouco, mas quem o desperdiça é louco” só quis fazer piada. Uma criança de nove anos a ajudar a família consegue fazer melhor que um adulto. E não é só por conhecer os cantos à casa; é por saber onde é que é útil e não atrapalhar quem tem que estar em todo o lado ao mesmo tempo.

Um salazarista com quem convivi ainda alguns anos, e que me falava de alto quando eu era mais jovem, dizia-me com a voz grave que Portugal não é um país agrícola, mas sim um país pedrícola. É preciso ir para lá do Marão para perceber o que ele queria dizer. Mas os homens do norte não são de brincadeiras. Os filhos dos que plantaram as vinhas do Douro andam agora a plantar oliveiras e amendoeiras nas encostas das serras.

Para quem percorre aquelas estradas pelo interior “a vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”, conta Miguel Torga que nasceu em São Martinho da Anta, perto de Vila Real.

Se alguém do meu grupo ler esta crónica, o que é improvável, vai dizer que escrevo de barriga cheia porque não aproveitei o convívio no rio Sabor até ao final. A verdade é que a Pilar del Rio falava nesse dia no encerramento da Feira do Livro do Porto e era impossível estar nos dois lados ao mesmo tempo. Por isso no último dia dormi a manhã na cama e depois regressei ao Porto a parar pelo caminho comendo amoras silvestres e espreitando a paisagem e tentando encontrar memórias de leituras de Miguel Torga mas também de João de Araújo Correia e Aquilino Ribeiro, três escritores que dormiram e ainda dormem à cabeceira da minha cama.

A Pilar, como sempre, foi igual a si própria. Leu um texto original de José Saramago, falou em espanhol porque defende que cada um deve falar a sua língua esteja onde estiver, e, para ser coerente, antes de falar da Obra e do valor do nosso prémio Nobel gozou com a classe política que na Assembleia da República censurou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,  e ainda disseram que estava mal escrito. JAE .

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Diário dos últimos dias de Agosto

Uma viagem de moto pelo bairro de Santarém e concelhos limítrofes daria para uma crónica alargada, mas fica aqui apenas o resumo, assim como pequenas notas dos últimos dias de Agosto.


Para almoçar na capital de distrito na terceira semana de agosto a uma segunda-feira corri Seca e Meca e Olivais de Santarém e só consegui depois de subir as escadas rolantes do Shopping. Aceito na minha caixa de correio a ementa dos restaurantes que se sintam ofendidos com a minha eventual ignorância.


Marquei entrevista com dois gajos de 40 anos para virem trabalhar numa das minhas equipas e falharam os dois. Um morreu-lhe a avó uma hora antes da reunião e o outro apareceu com roupa de morador de rua. 


A Joana esteve em Almeirim com uma figura de um organismo do Estado que nos atura há duas dezenas de anos, desde quando ganhámos estatuto para bater com o punho na mesa, e não o reconheceu apesar do sorriso e do trato pelo nome. Subiu na hierarquia. Os bons que servem o Estado não estão muito tempo no mesmo lugar. O seu ex-presidente conhece-nos desde que andamos nesta vida e a ideia é arrancar-lhe a memória de tantas reuniões em Lisboa em que só faltou brigarmos. Só espero que ainda nos tenhamos lembrado a tempo.


Depois de três meses com as lentes estragadas finalmente fui a uma óptica porque entretanto perdi os óculos de sol na praia da Ursa, num dia que parecia de Outono, em que tomei banho de brisa. Há anos que não bebia água do banho nem conhecia uma pessoa tão profissional que conseguiu desfazer o trabalho do optometrista que me acompanha há quase 20 anos. Incrível como somos resistentes. 


Entreguei para impressão dois livros que são fruto do nosso trabalho nas horas livres: "Camões, além do desconcerto", de Alexei Bueno, e "Confissões de um poeta", de Lêdo Ivo, cujo centenário se comemora este ano e é um dos meus escritores preferidos. Em meados de Setembro estarão nas livrarias. Jamais pensei que um dia ia editar um dos mais brilhantes escritores de língua portuguesa, graças à cedência de direitos de autor do seu filho Gonçalo Ivo.


Fui fazer uma viagem de mota pelo bairro de Santarém, Torres Novas, Alcanena e Golegã, onde querem construir um aeroporto internacional. Fui com uma outra motivação, mas esta ideia assaltou-me várias vezes pelo caminho. A verdade é que já nem os figos se apanham e são negócio. Os lugares multiplicam-se, o casario é muito disperso, e ali toda a gente parece que vive no fim do mundo mas onde tudo o que é terreno fica mais à mão. Como nasci e cresci numa casa entalada entre a lezíria e a charneca, o bairro parece-me sempre um lugar estranho; talvez por isso o coração veja mais do que os meus olhos.


Morreu José António Santos, Zezão para os amigos. Dizem que foi uma cirurgia simples, mas mal calculada que acabou com ele. Era pedreiro de profissão, aluno do mestre Joaquim Antunes, leva com ele os segredos de centenas de ramais de esgoto, ligações de águas pluviais e domésticas, segredos de telhados que todos os invernos metem água, paredes e muros que ainda hoje originam brigas familiares na divisão das propriedades, etc, etc. Falava pouco mas da sua profissão sabia muito. Fui seu companheiro em menino quando subíamos a "Rua do Vale" em grupo depois dos serões na colectividade da terra. Em menino é uma forma de escrever. Pertencemos à geração daqueles que nunca foram meninos, mas nem por isso deixámos de viver a vida e de deixar testemunho. JAE.