quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Mensagens de ódio contra a comunicação social são um perigo para a democracia

Há uma campanha de mensagens de ódio contra os meios de comunicação social que não são espontâneas. A normalização de estados de ódio é o perigo mais patente para uma democracia, revela estudo publicado na vizinha Espanha que, como é evidente, tem reflexos que atingem todos os países onde há democracia.  


Na passada semana fiz-me caro ao receber um telefonema em Madrid, onde fui comprar dois livros e visitar duas exposições, na véspera do fecho da edição de O MIRANTE. Lembrei-me que não tinha a crónica escrita e desabafei com o editor que não me apetecia nada apurar o caldo dos textos que tenho sempre, mais ou menos, preparados e adiantados. Recebi como resposta: deixe estar; o jornal vai ficar com muito texto de fora e assim aproveitamos a última página para publicar notícias. E assim foi. Desliguei do assunto e engoli a desfeita. Um dia destes vou ouvir dizer, já com os olhos semicerrados, que o cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis. É bom ter quem nos vá abrindo os olhos antes de os fecharmos definitivamente.

O MIRANTE publica nesta edição a segunda parte de uma entrevista com o jornalista do DN João Céu e Silva. Há razões para conversar com ele que vão da sua experiência como jornalista até à sua carreira como biógrafo e romancista. Dou nota da entrevista para lembrar que nesta altura o DN tem cerca de dúzia e meia de jornalistas, o que diz bem do estado a que chegou o jornal centenário de referência em Portugal que resistiu ao passar do tempo. O pretexto para falar deste caso é também a insolvência da empresa dona da revista Visão e Exame, as propostas de rescisão amigável no jornal Público, e a forma como o falso jornalismo televisivo está a querer ajudar a acabar com a profissão mais bela do mundo. À excepção do Correio da Manhã e do Expresso, o panorama do jornalismo português ao nível dos grandes meios está pelas ruas da amargura. Como a profissão está em decadência, não há novas fornadas de jornalistas que daqui a uma década, no mínimo, ocupem o lugar daqueles que ainda fazem o trabalho de casa, embora cumprindo apenas o mínimo dos mínimos. A distribuição está definitivamente nas mãos de uma só empresa, as gráficas para lá caminham e as tiragens começam a ser insignificantes, o que, lamentavelmente, vão levar à falência da maioria dos títulos que ainda resistem (O MIRANTE, por exemplo, já é impresso em Espanha há mais de um ano por falta de soluções em Portugal). Ao contrário do que se esperava, a imprensa local e regional vai pelo mesmo caminho, por mais estranho que pareça.

Um estudo, que também chega de Espanha, que em termos de imprensa escrita é das mais fortes do mundo, prova que há uma campanha de mensagens de ódio contra os meios de comunicação social que não são espontâneas.  A conclusão surge na sequência de uma investigação que analisou mais de nove milhões de mensagens nas redes sociais. O trabalho, dirigido por investigadores da Universidade Internacional de La Rioja (UNIR) e com a participação de académicos de outros sete centros, descobriu padrões de escrita, horários e dias em que as mensagens de ódio são recebidas nos meios tradicionais na Internet, tanto na rede X e Facebook, como nas suas próprias páginas. O resultado do estudo é uma descrição da situação que enfrentam os media espanhóis desde há uns anos. Nas plataformas analisadas, as mensagens são maioritariamente de ódio e uma grande parte são mensagens de desprezo, insultos e ameaças. O estudo converteu-se, este ano, num monitor permanente que analisa, dia a dia, o ódio contra os meios de comunicação tradicionais. A monitorização classifica o ódio por intensidade e categoria. Isso permite ver se, num determinado momento há mais ataques contra mulheres, imigrantes, minorias sexuais, políticos, etc. Também analisa a intensidade porque as mensagens com ameaças podem ter consequências legais e os investigadores descobriram que milhões de mensagens menos importantes acabam por criar um problema para as sociedades, porque permitem incorporar o ódio na cultura. "A normalização de estados de ódio é o perigo mais patente para uma democracia”, refere o investigador. JAE.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O trabalho, dançar em Paris, Milan Kundera e à memória de José Manuel Roque

A reabertura da catedral de Notre Dame, o trabalho de jornalista, a morte que existe para alimentar a eternidade, e outras palavras roubadas ao quotidiano dos últimos dias.

Já vou em quatro horas de trabalho a montar uma entrevista quando recebo no telemóvel fotos de uma neta, com meses de vida, a chorar no momento em que prova a sua primeira comida sólida, uma sopa que, pela aparência, deve estar muito boa, mas para ela deve saber a amêndoa amarga, uma vez que até agora só conhecia o sabor do leite da mãe.

A meio da manhã recebo a notícia da morte do empresário e amigo José Manuel Roque, cujo internamento no Hospital tenho vindo a acompanhar; nos últimos dias o seu coração batia como o de um passarinho, diziam os médicos da unidade hospitalar onde estava internado. A última vez que estivemos juntos, se bem me lembro, foi no Tribunal de Santarém, onde foi minha/nossa testemunha abonatória, num caso que envolveu um personagem manhoso. Ficamos a dever-lhe esse favor que, agora, só lhe poderei  pagar na eternidade.  

Antes de me mandar à entrevista como um leão, velho e um pouco cansado da jornada, mas ainda com as garras afiadas, andei a navegar nos vários endereços de email onde tenho guardado dezenas de currículos para ajudar a equipa a escolher novos colaboradores.

Ainda trabalho textos de entrevistas de vida, mas recuso-me a fazer entrevistas de emprego. Chega. Não quero pensar no tempo em que comi a primeira sopa, mas também não quero chegar à idade do empresário José Manuel Roque e ainda andar à pesca, sabendo que o que vem à rede é peixe mas nem todo é de confiança.

Vou à cozinha de hora a hora beber café das velhas e mordiscar qualquer coisa. A televisão é toda catedral de Notre Dame, que, neste dia, volta a abrir ao público depois do grande incêndio que comoveu o mundo. Vou lá todos os anos, mas é muito raro entrar na Catedral; o meu destino é um lugar a 100 metros do monumento onde se dança numa cave com música ao vivo e se fala em várias línguas. O espaço é pequeno, mas é único, como uma catedral. Lá dentro só sobrevive quem dança, quem vai para transpirar e conhecer gente que, tal como eu, está de passagem pela cidade e não gosta de abanar o capacete, mas de música de jazz ou dos anos sessenta. A primeira visita à Catedral foi há muitos anos, e serviu na altura para ficar por lá cerca de cinco minutos a ouvir o silêncio, que depois fica na memória durante o resto do ano, até voltarmos aos lugares onde somos felizes. Antes e depois do incêndio voltei a dormir lá por perto num daqueles pequenos hotéis que servem às mil maravilhas só para descansar um fim-de-semana.

Pela primeira vez o texto da entrevista que estou a montar saiu do gravador directamente para o computador em letra de forma graças à ajuda da IA e do Fábio Oliveira. Amanhã vou levar a novidade a toda a equipa. Veremos quem, depois desta descoberta, vai continuar a achar que não pode confiar nas tecnologias. Mesmo assim vou chorando por não poder gozar a luz do dia de sábado, agora que já são quase seis da tarde, e só trabalhei, e comi, e falei ao telefone sobre trabalho.

À noite fui a Corroios jantar a uma colectividade a convite de um amigo, mas com um pavilhão dominado por japoneses que ofereceram a comida. A vida nas colectividades é igual em todo o lado, só muda nas terras que perdem habitantes, têm as casas a cair, não há cidadania activa, estão entregues a dirigentes políticos analfabetos.  

Quando cheguei a casa vi um documentário sobre Milan Kundera, um dos meus escritores preferidos. Ultimamente tenho andado a aproveitar todos os minutos para reler a sua Obra, e em alguns casos ler pela primeira vez alguns dos seus títulos. O documentário também é para voltar a ver. Às quatro da manhã vou para a cama, mas continuo a ler "A Arte do Romance", onde o realizador do documentário foi buscar muitas frases que alimentam o filme sobre a sua vida e o seu pensamento. Não tenho sono, e acho um desperdício dormir com "A Valsa do Adeus", "A Brincadeira" e os dois volumes de "A Insustentável Leveza do Ser", à espera em cima da cómoda, embora com as marcas do tempo. Foi por causa da adaptação para cinema deste romance que o autor se zangou com o mundo, deixou de dar entrevistas e prometeu que mais nenhum dos seus romances serviriam outros interesses que não a leitura. No entanto, foi o filme que lhe deu projecção mundial, que fez com que o seu nome seja hoje muito mais popular, embora a Obra magnífica. “O artista deve fazer crer à posteridade que não viveu”. A vida privada de um homem e o seu rosto não pertencem ao público”. “Do esboço à Obra o caminho faz-se de joelhos”. “São precisas várias vidas para fazer uma só pessoa”. “O quarteto op. 131 ( de Beethoven) é o máximo da perfeição arquitectónica”. E, se bem me lembro, nessa noite de sábado sonhei pela primeira vez que dormi dentro das páginas de um livro, muitos anos depois de ter alimentado a ilusão que um dia podia encontrar Milan Kundera a passear em Paris, à beira do rio Sena, folheando livros e perguntando o preço das gravuras antigas. JAE.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Ministra da Cultura esteve em Santarém mas não teve que prestar contas

A ministra da cultura Dalila Rodrigues esteve em Santarém a acompanhar o primeiro-ministro Luís Montenegro mas chegou tão cedo que se passeou entre convidados como um escalabitano em dia de festa. Os jornalistas e os que fingem ser jornalistas ficaram todos nas covas; ninguém lhe perguntou que novidades é que ela tem para a capital do gótico.

Viver num meio pequeno parece uma desvantagem para quem nasceu numa grande cidade, mas para mim é um engano que sai caro. Sei do que falo porque tive a sorte, e ainda tenho, de viver os dois mundos nos últimos trinta anos depois de comprar casa numa grande cidade antes de me mudar para lá, embora nunca definitivamente. Uma das razões para gostar de viver num meio pequeno é conhecer-me melhor, sabendo que sou permanentemente observado e julgado. E nos meios pequenos as pessoas são tão afectuosas como podem ser cruéis; dificilmente existe o meio termo. Se uma pessoa vinga na vida e com isso a comunidade também ganha, por que ele sabe distribuir o que tem, seja em bens materiais ou simpatia e carinho, não há quem não o trate por primo, vizinho, amigo, entre outros mimos que a linguagem permite. Se a pessoa tem um azar e não vinga, faz má figura nos negócios ou tem uma família complicada, todos lhe chamam nomes feios ou dizem em jeito de desdém que deu o passo maior que a perna.

Conheço este desafio desde os meus catorze anos quando comecei a desenhar a minha vida futura no caminho que fazia sozinho da vila para casa, já noite alta, depois de ver televisão ou jogar bilhar na colectividade da terra. E já nessa altura ao ditado “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”, eu acrescentava o ditado: “sabendo do que te ocupas, saberei para onde vais”.

No dia em que reabriu a igreja de São João de Alporão, em Santarém, fui até ao local ver a festa mas não me misturei. Embora o espaço em frente da igreja seja pequeno, chegou para passar despercebido, encostado a uma parede. Pude assim observar sem ser observado até me fazer ao caminho de volta à sede do jornal. Mas só saí depois da cerimónia já ir a meio dentro da igreja, que encheu até às costuras, o que me deu a possibilidade de também reparar no que mais me interessava na paisagem humana. 

Enquanto fiz o meu papel de jornalista de folga, fui desafiado por um cidadão a dar uma volta ao edifício para o ouvir dizer que o beirado da igreja mostrava que havia várias falhas no telhado, que os milhões gastos na obra não deram para terem mais cuidado no cimento que espalharam nas paredes (que a visão de quem passa na rua não alcança), para além das severas críticas ao facto de não terem colocado os leões de pedra à entrada do monumento, uma vez que são parte da memória do local (vou ficar por aqui porque o homem parecia mesmo um fiscal das obras).

Cheguei ao templo a tempo de ver a Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, a conviver como um à vontade que não é habitual num membro de um governo, e tiro-lho o chapéu porque não a vi ser confrontada com as políticas centralistas dos governos da nação, de que Santarém tem bastantes queixas, e muito menos a ser questionada sobre políticas públicas para a cultura. A anunciada presença e iminente chegada do primeiro-ministro fez da ministra da cultura uma simbólica figura da hierarquia dos poderosos que mandam nisto tudo. Políticas à parte deu para perceber que o novo presidente da câmara de Santarém, João Leite, ganhou estaleca e não deixa mal quem foi substituir. Luís Montenegro deu por isso e do que ouvi, com ouvidos de tísico, já que o som mal chegava cá fora, os caminhos para os gabinetes de Lisboa estão escancarados. Agora é preciso saber aproveitar.

Como é habitual no final do dia fui dormir a Lisboa, mas no dia seguinte já fui dormir à Chamusca, embora de verdade eu esteja noite e dia sempre na região, seguro que nem um barco preso a um salgueiro. Não acabo esta crónica sem contar que me perguntei o que fui fazer à inauguração da nova igreja de São João de Alporão, se a intenção era encostar-me a uma parede. Acho que fui à procura, que é aquilo que eu melhor sei fazer, embora, se eu soubesse onde está o que procuro, não andaria certamente à procura. JAE.