Esta crónica dormia num computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. É dedicada ao cineasta Jorge O Mourão a quem fiquei a dever uma homenagem em vida. Esta crónica, sem o uso de aspas aspas, é uma forma de homenagear um homem que nunca ficou em casa a dar comida aos pombos; tal como o Papa Francisco que resolveu aceitar ser Papa para tentar acabar com o fanatismo no seio da Igreja.
Esta crónica começa com uma mensagem de voz no telemóvel. “Ok Joaquim estou a caminho do boteco na rua Francisco Serrador. O boteco chama-se “Escadinhas” por razões óbvias. Te espero”.
Jorge O Mourão é um cineasta de 78 anos com cerca de meia centena de curtas e documentários que fazem parte da história do cinema brasileiro. O privilégio de nos conhecermos deveu-se ao encontro no Bairro da Glória, a um sábado, à hora do almoço, em dia de feira de rua, num encontro que durou até ao cair da tarde, quando os corpos quase nus começaram a desaparecer na paisagem, e o Carnaval já estava na rua. Dia 5 de Fevereiro de 2024.
O poeta Alexei Bueno pediu a meio do convívio para ser fotografado, de charuto ao canto da boca, ao lado daquele que para ele é o Godard brasileiro. O Mourão estava na nossa companhia graças ao André Seffrin, que o conhece desde que chegou ao Rio de Janeiro há quarenta anos. O Mourão era amigo do Walmir Ayala, jornalista, crítico de artes e escritor, com quem André Seffrin trabalhou, e que ficou para sempre ligado à sua vida.
O reencontro, dois dias depois, foi para receber um livrinho da autoria do cineasta que é um marco na sua vida. O livro deixa testemunho da vida de um artista que tem seis filhos de cinco mulheres, que sempre perseguiu um objectivo de vida que era ter um filho de 10 em 10 anos e fazer um filme de 5 em 5. Ficou por cumprir na íntegra porque, um dia, em Trancoso, apareceu-lhe pela frente uma alemã, “que parecia um anjo, branquinha como a neve”. Ao chegar perto dele desatou o cabelo e quase voou atrás dele ao abanar o pescoço, para que o cabelo caísse até quase à sua bunda. “O namorado estava com ela, mas era um hippie em início de vida”. Facilmente o cineasta percebeu que ia dormir pela primeira vez com um anjo. E dormiu. E tudo acabou em poucos dias. Um ano depois a alemã voltou a Trancoso e trazia uma criança nos braços. Hoje esse filho do Jorge tem 32 anos, e ele foi conhecê-lo há pouco tempo, em território alemão, e só não morreu lá quase por milagre.
Jorge O Mourão foi recentemente tema de capa do jornal “Folha de S. Paulo”, que lhe dedicou três páginas no caderno de cultura. Está lá contada uma boa parte da história de vida do autor que fugiu da ditadura brasileira para Nova Iorque, e fez-se traficante de cocaína para sobreviver. Conviveu com os grandes vultos da cultura americana dessa época, e disso dá conta no seu livro. Miles Davis pediu-lhe para ele “comer” a sua mulher; o músico John Lennon e o poeta Allen Ginsberg, entre outros famosos da altura, assinaram petições que o Jorge organizava para combater a ditadura brasileira.
Na conversa na esplanada da rua Francisco Serrador, Jorge O Mourão explicou a presença no Rio de Janeiro do seu filho caçula, que está a ajudá-lo a organizar milhares de papéis, fotos e outras memórias de uma longa vida de activismo ligado ao cinema, ao jornalismo, à literatura, à política e à representação.
“Sempre fui um fazedor compulsivo, mas não um organizador. O meu grande sonho era voltar a Vale de Remígio, terra do meu avô, e morrer por lá a beber vinho do Porto e a comer queijo Serra da Estrela. Ainda tenho esse sonho. Quando fui ao Algarve fazer um filme fiquei uns dias numa pensão em Lisboa. A moça portuguesa que me acompanhava queria que eu dissesse quando voltava para o Brasil. Respondi-lhe que toda a minha vida viajei sem bilhete de volta. Nunca marquei datas de regresso. O importante é partir, voltar é sempre quando dá jeito ou chegamos ao fim de um caminho”. Conseguir a dupla nacionalidade é outro dos seus objectivos. “Mas eu tenho um problema cujas iniciais são parecidas com um problema que afecta as mulheres todos os meses: Sofro de DPM, ou seja, tenho a doença da dispersão, preguiça e modéstia”. “Há quatro anos um moço australiano andou à minha procura no Rio de Janeiro. Acabou por me encontrar e fui convidado para ir a Nova Iorque para uma mostra de cinema internacional. Estive lá e fui recebido como uma vedeta. Foi nessa altura que ia morrendo quando aproveitei para viajar para a Alemanha e conhecer o meu filho”.
O espaço não chega para continuar a citar mais frases do Jorge e algumas partes do trabalho editorial da Folha de S. Paulo. Quem estiver a ler este texto não julgue que a conversa foi só ao ritmo de novela. Nos dois encontros, o cheiro a churrasco no bairro da Glória, e o cheiro a bafio da rua Francisco Serrador, podiam ser matéria importante para um romance ou uma biografia de O Mourão. O autor deste texto estava de férias e perdeu a oportunidade de meter o nariz no anexo alugado onde Jorge O Mourão guarda o seu espólio.
Este texto dormia no computador e renasceu no dia da morte do Papa Francisco. Jorge O Mourão também morreu, entretanto, e os seus 60 filmes ficaram para contar a história de um artista subversivo, que conheci já em final de vida, e que recordo como um Papa Francisco, com uma voz doce, um desejo imenso de me ouvir falar da região de Trás os Montes, de Lisboa, das raízes portuguesas que pareciam sair do seu peito cabeludo e do seu corpo magro, mas ainda cheio de energia. Abençoado Papa Francisco, abençoado cineasta Jorge O Mourão. JAE.