quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

O “Venta Azeda”, o “Serra Cornos” de Montalvo e a morte de Ramiro Matos

Morreu um dos nossos na semana em que fui almoçar a Montalvo e entrevistámos um médico com uma história de vida que dá que contar.


Montalvo, na freguesia de Abrantes, está actualmente no mapa de Portugal por causa do fecho da fábrica da Tupperware. Fui lá almoçar um dia destes com o meu primo João Emídio dos Santos que me ofereceu um almoço de batatas com bacalhau de azeite e vinagre. Fui oferecer-lhe 4 livros, e ele e a mulher Maria José não se fizeram rogados, e nem puseram a hipótese de eu já ir almoçado, ou ter almoço pelo caminho ou até ter almoço marcado ali por perto. A mesa estava posta e não saí de lá sem aproveitar o almoço e a conversa com o filho da minha tia Maria da Luz, que andou emigrado pela Holanda durante quatro anos e a quem chamavam o Venta Azeda.

Fui a Montalvo num dia frio, que não deu para ir ver o leito do Tejo, mas prometi voltar por alturas do Verão, não só para irmos à pesca como para irmos à taberna da aldeia e eu conhecer o Serra Cornos, e outros amigos do João, que também quero que sejam meus amigos ou, pelo menos, conhecidos.


Morreu um dos nossos

Ramiro Matos foi toda a vida um profissional competente e dedicado. Quando se reformou veio oferecer-se a O MIRANTE para trabalhar porque não queria ficar em casa a envelhecer. Esteve na empresa editora de O MIRANTE  o tempo que quis e ajudou no que sabia na área da administração e comercial. Já lá vão muitos anos. Entretanto fez-se artesão com a esposa e, quando podiam e queriam, faziam as feiras de artesanato vendendo os seus produtos de cortiça. Ramiro Matos morreu no passado sábado com 80 anos. Não morreu de velho, segundo sei, mas de uma famosa bactéria que tem vitimado outras pessoas igualmente de forma cruel que causa revolta.


O que é ser jornalista?

Um jornalista é e será sempre uma figura pouco grada na comunidade e em sociedade; a razão é simples. O ofício dele é escrever sobre o quotidiano, as histórias do quotidiano, a maior parte denunciadas pelos leitores, e nem sempre consegue agradar a gregos e a troianos. E se é um jornalista de proximidade arrisca-se a levar uns sopapos, ou uns enxovalhos, que é coisa que os jornalistas de Lisboa não levam porque estão muito bem escondidos em edifícios sem portas e janelas para a rua.

Esta semana O MIRANTE publica uma entrevista de vida com um médico que conheci na minha terra há quase meio século. A sua história de vida está um pouco ligada à minha, ainda que numa pequena parte. Sabia que ele assinava O MIRANTE e que é leitor assíduo. Como os jornalistas de proximidade não vivem em redomas, e quando querem sabem tudo o que gira à sua volta, aqui fica a entrevista, ainda a tempo de dar a conhecer em letra de forma um homem que bem merece o reconhecimento público.

Sem querer empertigar-me à custa do trabalho dos outros, deixo aqui a informação que no dia anterior ao fecho desta edição caíram no telefone do jornal cinco histórias de diversas partes da região, todos com pernas para andar. É desta forma, sem falsas modéstias, que editamos um jornal que é o espelho de uma região e quer continuar a ser cada vez mais a voz dos cidadãos que se sentem injustiçados. Não conheço melhor forma de exercer a profissão de jornalista; e também não entendo o jornalismo sem este serviço público que prestamos a quem não tem outra forma de se fazer ouvir. JAE.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Para uma História da Imprensa Local e Regional

Ainda hoje, devido à nossa experiência no terreno, servimos de interlocutores a muita gente que já não tem como se orientar num negócio que perdeu referências, foi alvo de assalto por parte dos políticos durante as últimas décadas, e cuja existência como sempre o conhecemos está em fase terminal. Falar em associações do sector e ao serviço do sector é o mesmo que falar do triste destino que teve a protagonista do fado da Casa da Mariquinhas.

Para uma história da imprensa local e regional pode dar um livro ou pode nem sequer passar de meia dúzia de artigos para não deixar esquecer aquilo que tenho obrigação de dar testemunho.

Começo por um assunto que não merece discussão: cada vez que escrevo um texto ou dou o coiro para contar uma história que escrutina os poderes instituídos, fico sempre com a sensação de que poderia fazer melhor; que podia ir mais longe, que não devia ter sido tão meigo a escrever. A minha condição de jornalista por conta própria, e a experiência adquirida nos 37 anos que já levo nesta profissão, deram-me uma vida de grandes desafios, mas também de grandes experiências. Cedo, muito cedo, participei no movimento associativo e empresarial e tive contacto com os grandes do jornalismo e das direcções editoriais dos principais jornais. Não fiquei no meu cantinho a entrevistar os priores das freguesias, a dirimir guerras de alecrim e manjerona, fui ao encontro, desafiei ministros e secretários de estado para defender o meu jornal quando atingimos tiragens recordes e vivíamos o tempo das vacas gordas. Uma vez consegui reunir à volta de uma mesa, na sede dos CTT, em Lisboa, oito administradores, directores e chefes só para discutirem a melhor forma de não falharem a entrega semanal à quinta-feira dos 25 mil exemplares de O MIRANTE. E só precisei de me indignar, de falar alto dos meus direitos como cliente, de fazer aquilo que ainda hoje faço embora agora já tenha quem me substitua e seja muito melhor do que eu a tratar destes assuntos.

Ao longo de mais de três dezenas de anos não falhei um congresso de jornalistas no tempo em que todos os anos discutíamos o sexo dos anjos, mas discutíamos. Hoje não há discussões, embora o sexo e os anjos continuem a ser uma boa razão para discutirmos, certamente agora mais do que nunca. Conheci e fui recebido pela maior parte dos membros do governo que tiveram a pasta da comunicação social. Fui sempre aos seus gabinetes protestar, nunca baixar a cerviz. De alguns tornei-me confidente e falei de assuntos da caserna que frequentava, mas depressa percebi que estava a ser usado. Só quem não conhece os políticos profissionais é que confia neles. Aprendi a tempo (estultícia minha porque a política está sempre presente no nosso trabalho e é difícil garantir que não estamos a ser usados quando as nossas fontes são também os nossos principais interlocutores).

Nunca quis ser accionista da agência de notícias do Estado embora tenha sido convidado e desafiado. Nunca negociei as dezenas de projectos de rádios e de jornais que me foram oferecidos ao longo destes últimos 30 anos. As minhas respostas ainda hoje são iguais às de antigamente: só quero ser jornalista de um jornal e não me interessa o futuro da concorrência se o assunto é falta de dinheiro e de bons profissionais. Fizemos duas ou três parcerias ao longo destes anos, mas sempre ao nível da distribuição para cumprirmos o desígnio de chegarmos ao máximo de leitores na região onde trabalhamos. É uma missão que nunca está terminada se o jornal for bem dirigido.

Não tenho medalhas nem quero ter; jamais aceitarei homenagens seja de quem for, e muito menos daqueles para quem trabalhei por dever de camaradagem neste sector tão difícil da comunicação social de proximidade. Ainda hoje, devido à nossa experiência no terreno, servimos de interlocutores a muita gente que já não tem como se orientar num negócio que perdeu referências, foi alvo de assalto por parte dos políticos durante as últimas décadas, e cuja existência como sempre o conhecemos está em fase terminal. Falar em associações do sector e ao serviço do sector é o mesmo que falar do triste destino que teve a protagonista do fado da Casa da Mariquinhas.

Recordo que a distribuição está nesta altura nas mãos de duas empresas distintas, mas que vivem igualmente de outros negócios muito, mas muito mais rentáveis, e que basta que uma delas tenha uma constipação para que a grande maioria dos jornais não saiam da gráfica depois de impressos. Das máquinas de impressão de jornais estamos conversados: uma boa parte de nós está a imprimir em Espanha, o que diz bem do estado a que chegámos.


Nota: Na passada semana, no dia em que comecei a escrever esta crónica, fui dar um abraço ao Sérgio Carrinho que no outro dia comemorava 76 anos. Perguntei-lhe em jeito de brincadeira se ele ainda se lembrava das vezes em que o tirávamos do sério com alguns textos. A resposta foi uma grande gargalhada, depois os olhos húmidos, e depois um “grande cabrão”, quem sabe nome o nome mais carinhoso que eu merecia ser chamado, e que ele poderá esquecer a curto prazo porque a saúde começa a faltar-lhe e um dia destes também lhe faltarão, a ele e a nós, as palavras certas no momento certo. JAE.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Começou a campanha eleitoral para as eleições autárquicas e O MIRANTE vai reforçar a equipa

Os jornalistas de O MIRANTE vão ter muito trabalho pela frente se quiserem continuar a fazer a diferença. Uma coisa é a notícia do momento, aquela escrita à pressa para conquistar cliques e gostos nas redes sociais, outra é a do jornalismo de investigação, de contrapoder, a grande entrevista, a reportagem no local, como só nós temos condições para fazer e já praticamos há décadas.


Começou na região a campanha eleitoral para as eleições autárquicas de Setembro. É verdade que já anunciamos alguns candidatos, mas o anúncio da candidatura de Pedro Ribeiro a Santarém, fica a marcar definitivamente o calendário que na capital de distrito já só tem um depois. Vêm aí mais surpresas. Tão ou mais significativas quanto a candidatura do actual presidente da câmara de Almeirim a Santarém. Cada surpresa será julgada em resultado do número de eleitores do concelho. No nosso trabalho as coisas não funcionam assim, há uma lógica diferente, mas é assunto que não me parece difícil de ser entendido sem mais explicações. 

É no capítulo das surpresas que a edição online de O MIRANTE, ou de outro jornal, não consegue ganhar à edição impressa para onde escrevo este texto. Na sexta-feira anunciámos online o que já se esperava da reunião da concelhia do PS de Santarém, e em poucos minutos a informação circulou a toda a velocidade. Agora, nesta edição em papel, fazemos o melhor que sabemos, que mais ninguém na região consegue igualar. E um dia que os computadores se apaguem, ou os arquivos antigos desapareçam, como já aconteceu, ficarão estas folhas encardidas à mão de semear em qualquer biblioteca.

Os jornalistas de O MIRANTE, cuja redacção vai crescer nos próximos dias, vão ter muito trabalho pela frente se quiserem continuar a fazer a diferença. Uma coisa é a notícia do momento, aquela escrita à pressa para conquistar cliques e gostos nas redes sociais, outra é a do jornalismo de investigação, de contrapoder, a grande entrevista, a reportagem no local, como só nós temos condições para fazer e já praticamos há décadas. Claro que temos que ser melhores, principalmente a formar os mais novos da equipa, claro que trabalhamos para pequenas comunidades onde os caciques não aceitam o nosso escrutínio como aceitam os dos grandes jornais; e fazem jogo sujo, mas isso para nós nunca foi problema. Estamos habituados a dar o corpo às balas, e o jornalismo é isso mesmo: uma luta pela democracia num parlamento que tem a sua sede no meio da rua. 

Não estou aqui para fazer futurologia, mas não é preciso ser bruxo para arriscar escrever que um dia, mais tarde ou mais cedo, a maioria dos jornais vão ser como o nosso: ou escolhem uma região ou morrem, por serem insignificantes ou por não terem viabilidade económica.

Não se lêem quase 400 páginas de prosa de Aquilino Ribeiro sem que se consiga fugir à tentação de o anunciar aos amigos. Pois aqui vai. Acabei de ler Luís de Camões. Fabuloso* Verdadeiro, e mais uma vez fiquei rendido ao autor de "A Casa Grande de Romarigães" e de "Quando os Lobos Uivam", entre mais de três dezenas de romances que chegam para encher uma biblioteca. António Valdemar, o decano dos jornalistas portugueses, assina o prefácio e foi o responsável pela reedição dos textos. António Valdemar conheceu e conviveu com o Mestre Aquilino Ribeiro, por isso a sua entrega a este livro dá-lhe uma maior visibilidade. E bem merecida. Quem quiser saber do autor de Os Lusíadas tem que ler Aquilino Ribeiro. E também António Valdemar no prefácio, que é grande ajuda para o leitor desconfiado, que nunca sabe ao que vai quando se mete páginas adentro a ler sobre um poeta que morreu há 500 anos, pobre e miserável, mas que deixou uma Obra que muitos de nós ainda não conseguimos ler por falta de cultura geral. É magnífico, fabuloso e verdadeiro, perceber melhor pela pena de Aquilino Ribeiro que Camões já se insurgia contra "a generalizada corrupção instalada em Portugal". JAE .

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Abaixo os sonhos... vivam os velhoses

Já não há velhoses nem coscorões como antigamente. A massa de abóbora dá muito trabalho e exige ciência apurada na hora de cair na frigideira para fazer os filhoses. Em Lisboa ninguém sabe o que é isso de velhoses e em Santarém sabem, mas as lojas de proximidade estão às moscas porque os supermercados são mais que as moscas.

Na passada terça-feira, último dia do ano, caminhei por Lisboa e entrei nas principais pastelarias da antiga e bela cidade de Lisboa, há procura de velhoses. E não encontrei. Foi na pastelaria Mexicana que fui mais bem recebido, e me deram conversa três senhores idosos que trabalhavam ao balcão com ar atarefado. Tive que repetir o nome duas vezes em vários casos porque sempre entendiam filhoses em vez de velhoses. Com um sorriso rasgado, simpático, um dos mais novos do grupo da Mexicana disse-me que nunca venderam velhoses naquele balcão. "Deve ser algum frito tradicional de alguma região do país", afirmou o mais velho e igualmente simpático balconista da Mexicana, procurando consolar-me depois de lhes dizer que já tinha corrido Seca e Meca e não tinha encontrado o que procurava. O atendimento na Versalhes, no Galeto, nas pastelarias do Rossio e da Avenida de Roma foram um ver se te avias, sinal dos tempos em que o trabalho de balconista de pastelaria é uma roda viva, como aliás em muitas outras profissões.

Neste meio tempo liguei para quem estava do outro lado do telemóvel e fiquei a saber que o que eu tinha visto nas grandes superfícies comerciais da capital do país, por onde andei também em excursão, e depois nas pastelarias, repetia-se na capital do Ribatejo; com uma diferença, a mercearia no centro da cidade de Santarém, onde costumo comer velhoses de abóbora (também os há de cenoura e são igualmente bons) estava às moscas, e o dono do estabelecimento estava desolado porque para ele já nada é como dantes.

Como é evidente as grandes superfícies comerciais aproveitam o hábito dos portugueses seguirem o ditado de "onde mija um, mijam dois ou três", e toca de correrem todos para os espaços onde é muito mais fácil e simples encher o carrinho das compras e a variedade é muito maior. As lojas tradicionais que não têm uma lista de amigos, não fazem marketing de proximidade, não sorteiam um presunto na altura do Natal, não oferecem velhoses nem coscorões, essas estão condenadas, mais tarde ou mais cedo vão morrer na praia, mesmo que saibam nadar.

Portugal é um quintal, um jardim zoológico em obras, e acho engraçado que os meninos e os velhos da Versalhes e da Mexicana fiquem de boca aberta e sorriso escancarado quando lhes perguntamos se já não têm velhoses, e respondam, quando respondem, que não sabem o que é, e ficam a rir-se como se tivessem acabado de ouvir uma pergunta de um chimpanzé que aprendeu a falar com os visitantes do jardim zoológico. "Ah! o que você quer são sonhos , isso temos, estão ali", ouvimos algumas vezes como se os sonhos pudessem competir com os velhoses.

Depois deste episódio fui saber por que razão, até na nossa região, não há muito quem venda velhoses. Eis o motivo: a massa dá muito trabalho e é preciso ter um bom pasteleiro que não facilite, ou os velhoses ficam uma miséria e depois ninguém os quer. Fiquei a saber ainda que o mesmo se passa com os coscorões: aqueles lisos e estaladiços foram substituídos por uns de massa grossa, que se comem como uma sandes, porque os coscorões à antiga têm que ser fritos com a mesma massa dos velhoses, e precisam igualmente de um pasteleiro à antiga.

A minha mãe era um desastre, tal como eu sou, com as mãos, tanto a partir copos como pratos, e o mais que vier às mãos. Mas sabia fazer e fritar velhoses como ninguém. Ainda hoje os meus filhos falam dos velhoses da avó. Não há melhor maneira de festejar o Natal e a entrada de um novo ano que recordar os que partiram e que esperam por nós mais tarde ou mais cedo.

Neste final e início de ano vi-me a reler livros de uma vida de Rosa Montero (A Louca da Casa e A ridícula ideia de não voltar a ver-te), Lêdo Ivo; (Confissões de um poeta), Ana Hatherly (Tisanas), Jorge de Sena (Sinais de fogo), David Mourão Ferreira (Um amor feliz), Ovídeo (Metamorfoses e  Arte de Amar), Baptista Bastos (Viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura), Camilo Castelo Branco (A queda de um anjo), Rainer Maria Rilke (Uma biografia sobre Rodin de quem foi secretário) Francoise Gilot (Uma Vida com Picasso: uma biografia que já li dezenas de vezes ao longo dos anos e que continua a ser inspiradora de um tempo e de algumas vidas que me fascinam e que me fazem continuar a viajar em corpo e espírito) e Marguerite Yorcenar (a Obra ao Negro ainda é o livro que eu mais admiro pela genialidade da escrita e da trama). Claro que falo de releituras de parte destes livros, mas o pretexto é falar deles para quem no início do ano procura referências literárias e não sabe para que lado se virar). JAE.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Em defesa de Marcelo Rebelo de Sousa e do Ministério Público zurzidos por Jorge Lacão

Jorge Lacão retirou-se da política activa mas apareceu recentemente com um artigo de opinião a desancar o Ministério Público e o Presidente da República. Tudo leva a crer que o ataque tenha a ver com a nomeação de Almeida Guerra para Procurador Geral da República e a quase certeza que José Sócrates vai mesmo a julgamento.

Jorge Lacão assinou recentemente no jornal Público (edição de 26 de Dezembro) um artigo em que acusa o Ministério Público de sempre perseguir “a ambição de se constituir um estado dentro do Estado”. Depois das críticas generalizadas à classe política, descarrega ainda em cima do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, escrevendo esta pérola sobre o “Estado de direito à deriva”, título que deu ao artigo que estamos a citar: “Perante este cenário pessimista, mas não menos realista, seria de esperar que um Presidente da República, principal garante do funcionamento das instituições democráticas, se mostrasse particularmente vigilante face às crescentes ameaças à integridade dos princípios mais estruturantes do Estado de direito”. E acaba o artigo a classificar o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa como se ele fosse o culpado do desastre em que vivemos, lamentando por fim que a nossa República não tenha “servidores corajosos”.

Uma pessoa lê e não acredita: Jorge Lacão só fez política nestes últimos 50 anos. Foi quase tudo na vida pública com a camisola do PS, incluindo ministro, Secretário de Estado, vice da Assembleia da República, deputado até se cansar da política. Quando se iniciou, foi durante anos uma espécie de secretário particular de Mário Soares, o que diz bem da escola em que se formou. Resumindo, se há políticos que fizeram e dormiram na cama da República portuguesa, Jorge Lacão foi um deles. Não estou a criticar; estou a dar conta de um facto. O que leva Jorge Lacão, retirado da política por vontade própria, depois de fazer o seu caminho, a reaparecer nas páginas de um jornal a desancar o Ministério Público, prevendo uma “catástrofe” em resultado do descrédito das nossas instituições, e acusando o actual Presidente da República de estar “do lado errado da história (...) vergado a uma ideologia populista (...)  que sopra do lado da extrema direita” ?

É claro que não estou à espera que os leitores me respondam, muito menos Jorge Lacão, que foi sempre eleito deputado pelo distrito de Santarém, mais tarde pelo de Lisboa, algumas vezes com o meu voto. Tenho, no entanto, uma “desconfiança certa”, como dizia o meu avô materno, que depois de um “grão na asa” tinha algumas frases consideradas interessantes e que ficaram na memória popular do povo da minha terra: a nomeação de Almeida Guerra para Procurador Geral da República está a deixar os cabelos em pé a muita gente. Teme-se que José Sócrates vá mesmo a julgamento e que caia o Carmo e a Trindade porque vai lavar-se muita roupa suja que já devia estar no lixo ou arrumada no armário. O artigo de opinião de Jorge Lacão não mereceu qualquer referência dos habituais comentadores políticos da nossa praça. Mas não é de estranhar. Lacão ataca o Presidente da República e o Ministério Público, mas não diz ao que vem nem ao que vai. É como se Lacão estivesse agora a iniciar-se na vida política, a posicionar-se ao lado dos cães de guarda da República, contra todos os malfeitores que se aproveitaram do Estado e da Justiça desorganizada para esconder dinheiro em envelopes nos gabinetes de trabalho, ou viverem do dinheiro recebido em envelopes dos seus motoristas, entre tantas malfeitorias que se contam e nos enchem de vergonha. 

Jorge Lacão foi considerado um parlamentar brilhante, vai certamente ficar na História do Partido Socialista e do país por ter ocupado cargos de relevo. É uma tristeza lê-lo num jornal de referência a mandar bitaites contra o Presidente da República que, como todos sabemos, está em final de mandato e é tão responsável pela má governação do país e da Justiça como Jorge Lacão é pela proveniência dos 80 mil euros que o chefe de gabinete de António Costa tinha escondido em envelopes e que obrigou o ex-primeiro ministro a pedir a demissão num caso que nos envergonha, como país, até ao tutano. JAE.