quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O segredo de Carlos Cunha

Carlos Cunha foi dos políticos da região que mais trabalho me deu como jornalista. Foi com ele na qualidade de Governador Civil que tive a primeira grande prova de que o Poder tem caras muito distintas. Com um relatório do IGAT na mão, que comprometia o seu trabalho à frente do município de Alcanena, ignorei várias e insistentes ameaças e fiz o que me competia. Carlos Cunha retaliou como pôde. E posso testemunhar que não foi meigo no uso das armas que tinha ao seu alcance.
Muito tempo depois, com o andar da carruagem, começaram as cedências. Um amigo comum juntou-nos num almoço num hotel de Santarém em dia de eleições para a direcção do Sport Lisboa e Benfica. Encontrámo-nos à porta do Hotel.
Cumprimentámo-nos. No início da saudação esclareceu que estava de regresso de Lisboa, onde tinha ido votar, e aproveitou para me dizer olhos nos olhos que eu era tal e qual a cara de Vale e Azevedo. Ouvi e calei. Mas estava dado o mote para o nosso almoço de”reconciliação”. Ainda hoje me lembro do prazer que me deu dizer-lhe de viva voz o que sempre me moveu e continua a mover na liderança deste projecto editorial. O nosso companheiro de mesa chegou a ameaçar abandonar o almoço a meio se não abrandássemos o discurso.
Quando se criam estados de guerra na relação entre jornalistas e políticos não há vencedores. Mas, uns mais do que outros, criam condições para irem vencendo batalhas.
Muitos anos depois, e muito tempo após Carlos Cunha abandonar a vida política activa, convidei-o para uma entrevista. Disse-lhe que passado era passado e que teria muito gosto em o entrevistar para fazer um balanço da sua vida como cidadão e como político. Não recusou mas foi adiando a resposta dando a entender que jamais chegaria o dia e oportunidade que eu procurava. Rendo-lhe essa homenagem. Para mim a recusa para uma entrevista de balanço foi uma forma de assumir que o seu tempo político tinha terminado e que não estava em condições de remexer no passado.
Mas deixemo-nos de sentimentalismo: Carlos Cunha assumiu um protagonismo político de grande relevância no concelho de Alcanena, e na região, enquanto Governador Civil e presidente da Federação do PS. Não tenho dúvidas que enquanto autarca foi uma figura importante no concelho de Alcanena. Como Governador Civil e como líder regional dos socialistas foi um mau político.
Aceitava muito mal as críticas e não lhe reconheço trabalho que o faça ficar na História por muitos anos.
Sou testemunha de relatos de várias pessoas que o acusavam, enquanto político, dos mais variados actos de abuso de poder. Mas também ouvi de amigos comuns elogios à sua capacidade de trabalho e de liderança.
Depois de deixar a vida política activa Carlos Cunha tentou refazer a sua vida criando uma empresa. Pelo que sei as coisas não lhe correram bem e faltaram-lhe as solidariedades que precisava para vencer. Caso para dizer que Carlos Cunha foi vítima do sistema que ele próprio alimentou e que continua aí a sustentar pequenos monstros que tomam conta da coisa pública.
Apesar das divergências lamento não ter conseguido conquistar-lhe a última entrevista. Não me culpo pela falta de insistência. Carlos Cunha levou consigo, na hora da sua morte, o segredo que o tornou o mais solitário dos políticos da nossa região destes últimos vinte anos.

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