quarta-feira, 2 de julho de 2014

O porco e a Parker

A minha avó Ilda oferecia regularmente cestos de ovos, morangos e figos aos médicos e funcionários do centro de saúde da sua terra. Todos os dias me lembro da avó Ilda. Se há coisas boas que aprendi com ela foi a partilhar e a ser agradecido. Não nasci invejoso, sendeiro ou intrujão mas mesmo assim vigio-me regularmente para ter a certeza que honro os compromissos que a minha avó me deixou.
Um ex-amigo confessou-se na minha casa, onde a minha mulher lhe serviu um opíparo jantar, como se ele fosse a Rainha de Inglaterra, que coleccionava canetas. Um dia, num passeio por Lisboa, numa zona que me faz lembrar o largo onde moro, na Chamusca, descobri uma Parker de colecção com um estojo onde podia guardar-se a coroa de D. Afonso Henriques. Por causa do preço lembro-me de ter começado a namorar a caneta com a altivez própria de um derriço que sabe ter a noiva na mão. Durante muitos meses, com a arte que aprendi com os homens dos sete ofícios a quem aviei muitos copos de vinho, conversei com a dona da loja, vi o fundo da tampa da caneta, confirmei os quilates do ouro do aparo, enfim, chegou uma altura em que me senti dono da caneta de tanto a ter na mão e fazer baixar o preço.
Um dia, com a Ponte 25 de Abril por cima da cabeça, de volta à lojinha, fui avisado que a caneta já tinha sido vendida. Disfarcei o desgosto e fui esmurrar a parede do edifício ao lado bem longe dos olhos da lojista para que ela não se risse de mim como eu merecia.
Recentemente, com alguma vergonha na cara, voltei à loja da caneta Parker e de outras canetas que fazem a minha delícia de coleccionador sem cheta e sem paciência de coleccionador. A caneta voltou à estante e a senhora da loja, com o ar mais natural deste mundo, disse que não se lembrava de mim, que a caneta ainda estava quente de ter chegado à loja há tão pouco tempo. No momento em que escrevo ando a renegociar a caneta; quem sabe se para oferecer a um dos meus filhos, talvez aquele que um dia melhor souber recordar as memórias da avó Ilda com quem dois deles ainda beberam café e comeram pão com ovo frito sentados à braseira.
Quanto ao ex-amigo, a quem a caneta estava destinada, terá sido vítima de um criador de porcos. Ele era o bácaro mais inteligente ao cimo da terra; gordo e redondo, sempre com as unhas sujas e grandes para não estranhar as pocilgas por onde passava no seu ofício de javardo oficioso. Quando o conheci andava disfarçado de intelectual e político. Foi nessa condição que entrou na minha casa e comeu da minha panela. É verdade que deixou um cheiro a barrasco mas nada que o eucaliptal que tenho quase ao pé da porta não tivesse ajudado a disfarçar numa casa como a minha que tem tantas janelas, verdadeiras e imaginárias, como o Palácio de Queluz. JAE

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