quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A leitura obrigatória de Rosa Montero e Ursula K. Le Guin

O novo livro de Rosa Montero é para maiores de 18 anos por tratar da loucura e do suicídio só para gente com juízo: Ursula K. Le Guin é outra conversa, mas vale a pena porque foi uma escritora excepcional e escreveu ficção científica que, lida agora, parece premonitória quanto aos que estamos a viver no planeta Terra.

Há algo

Do tamanho de uma ervilha seca

Que não escrevi.

Que não escrevi bem.

Não consigo dormir.


Estes versos são de uma escritora de ficção científica chamada Ursula K. Le Guin e foram transcritos do último livro de Rosa Montero com o título “O perigo de estar no meu perfeito juízo”. Rosa cita a autora várias vezes no seu último romance e já no final do livro conta algumas conversas que se enquadram no tema do seu novo e extraordinário romance sobre a loucura, principalmente a loucura dos escritores, que são muitos a encherem as 240 páginas do livro.

Ursula K. Le Guin, que eu nunca tinha lido nem sabia que existia (nunca tive interesse na leitura de ficção científica), escreveu “Os Despojados”, que já li, entretanto, e que é uma descoberta maravilhosa para quem nunca se interessou pelo tema. Ursula K. Le Guin perdeu a inspiração para escrever muito antes de morrer e Rosa Montero, que ainda escreve como uma louca, pergunta-se como é possível alguém perder a pulsão criativa, embora admita que também tem esse medo; depois concluiu: “Talvez a arte não seja mais que uma função física, um produto do estado dos nossos ossos, das nossas vísceras, dos nossos músculos. Digamos que a velhice nos vai roubando a energia, essa potência que, segundo todos os especialistas, é tão essencial no processo criativo. Digamos que a velhice nos apaga”.

“O perigo de estar no meu perfeito juízo” é um livro para maiores de 18 anos sem peneiras; uma leitura que é um perigo, ou pode transformar-se num milagre, para quem está a envelhecer e não sabe muito bem se vai ficar louco, e se é mesmo verdade que já “trazemos a escuridão dentro de nós. A morte já está no corpo enquanto vivemos. Somos seres transitórios”.

Li o livro como um adolescente que descobre uma gruta cheia de pontos luminosos, que afinal eram palavras, mas a determinada altura pareceu-me que a autora elogiava de tal modo a loucura, que leva ao suicídio, que nos ataca a todos a partir de certa idade, que tive medo de a levar a sério neste romance que é ao mesmo tempo ensaio e biografia.

Os versos iniciais deste texto são a súmula perfeita daquilo que retive deste último livro de Rosa Montero, cuja obra conheço de várias leituras. Mas há outra ainda mais extraordinária, e salvadora, no meio de tantas histórias de génios, loucos e suicidas que atravessam a cultura dos últimos séculos; Rosa Montero dá voz a Sancho Pança que diz para o seu Cavaleiro Andante: “Não morra vossa mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia”.

Não vou fazer mais publicidade ao livro de Rosa Montero porque acho que todos reconhecem a escritora e a sua genialidade. Aproveito o espaço que me resta para contar que “Os Despojados” é um livro publicado há meio século, que conta a história de um homem em busca da reconciliação de dois mundos, em Anarres, um planeta conhecido pelas extensas áreas desérticas e habitado por uma comunidade proletária. Grande parte do romance é premonitório para o que se passa nos nossos dias e os diálogos não deixam mentir. Quem quiser espreitar a vida noutro planeta deve ler “Os Despojados”, um livro de ficção onde já se recicla a urina para matar a sede, a fome e a sede são assuntos mais importantes que a limpeza, existem três oceanos cheios de vida animal mas a terra está vazia e nem sequer há insectos para fecundar as plantas; as árvores de fruta importadas são todas fecundadas à mão. JAE.

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